O PAPEL DO TRABALHO NA TRANSFORMAÇÃO DO MACACO EM HOMEM [ * ]

Friedrich Engels

Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas. E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que isso: é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que, sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem.
Há milhares de anos atrás, em época ainda imprecisa da formação da Terra, provavelmente no final do período que os geólogos qualificam de Terciário, vivia, em um lugar não identificado da zona tropical - talvez num e extenso continente hoje submerso nas águas profundas do Oceano Índico - uma raça de macacos antropomorfos, já em estado de extraordinário desenvolvimento. Darwin nos deixou uma descrição bastante pormenorizada destes nossos antepassados: eram animais inteiramente cobertos de pêlo, com barba, orelhas pontiagudas e que viviam nas árvores, sempre em manadas.
Devido precisamente a esta maneira de viver, em que as mãos, ocupadas para se firmarem nos galhos, desempenhavam funções diferentes das dos pés, os macacos foram, pouco a pouco, dispensando-as para o ato de caminhar no chão e assumindo desta forma uma postura cada vez mais ereta. Deu-se assim o passo decisivo na transição do macaco ao homem.
Os macacos antropomorfos de nossos dias são capazes de se manter em posição ereta e de andar apenas sobre seus pés. Só o fazem, porém, premidos pela necessidade e com enorme lentidão. Normalmente andam em posição semi-ereta, utilizando-se das mãos. Em sua grande maioria apoiam-se sobre os dedos, encolhem as pernas e projetam o corpo por entre seus compridos braços, como faz um paralítico ao usar suas muletas. Podemos, mesmo em nossos dias, observar os macacos e acompanhar as diversas fases de transição entre o caminhar a quatro patas e em posição ereta. Com a ressalva, porém, de que nenhum deles anda em posição ereta habitualmente, mas só em determinadas circunstâncias.
Pelo fato da postura ter sido, para os nossos ancestrais peludos, uma norma e depois uma necessidade, podemos inferir que naquela fase suas mãos tinham que desempenhar funções cada vez mais variadas. Portanto, a divisão de funções entre pés e mãos existe mesmo entre os macacos. Como ficou dito acima, os macacos que viviam nas árvores usavam as mãos de forma diferente do uso que faziam dos pés. As mãos são usadas basicamente para apanhar e segurar os alimentos, à semelhança do que fazem alguns mamíferos inferiores com suas patas dianteiras. Certa variedade de macacos constrói seus ninhos nas árvores com as mãos; outros tipos, como o chimpanzé, vão mais longe e constroem verdadeiros telhados sobre os galhos para se protegerem do mau tempo. É com a mão que eles empunham um pedaço de pau para se defenderem dos inimigos e lançam frutas e pedras. Quando aprisionados, conseguem realizar com as mãos muita coisa que aprendem dos homens. Mas é justamente aqui que podemos perceber a enorme diferença entre a mão primitiva do macaco, inclusive a do antropóide mais evoluído, e a mão do homem, desenvolvida através de milhares de anos de trabalho. Quanto ao número e à disposição dos ossos e músculos não há diferença entre a mão do homem e do macaco; mas se tomarmos o mais primitivos dos selvagens, ele executará com suas mãos centenas de operações que nenhum dos macacos consegue realizar. Nenhum macaco conseguiu, por exemplo, construir um machado de pedra por mais rudimentar que fosse.
Portanto, as funções que no decorrer de milhares de anos de transição do macaco para o homem foram sendo adaptadas às mãos do macaco, eram funções extremamente simples. Os selvagens mais primitivos, mesmo aqueles que se presume terem regredido a estágios próximos da pura animalidade, acompanhado por uma degenerescência física, são inegavelmente superiores aos macacos da fase de transição. Se compararmos o período que antecede o aparecimento do machado feito de lasca de sílex pela mão humana com o período histórico que conhecemos, este último torna-se insignificante diante do primeiro. Mas o passo decisivo já tinha sido dado: a mão estava livre e, daí por diante, podia evoluir em destreza e habilidade, qualidades que iriam se transmitir por hereditariedade e aumentar a cada geração.
Concluímos então que a mão não é apenas um órgão de trabalho, é também produto dele. Foi graças ao trabalho, numa fase de adaptação a novas funções e à transmissão hereditária destes aperfeiçoamentos adquiridos aos músculos e ligamentos, e mais lentamente também aos ossos; devido ao emprego sempre mais amplo, variado e complexo destas habilidades é que a mão do homem pode alcançar tal perfeição a ponto de realizar, como que por magia, os quadros de um Rafael, as estátuas de Thorwaldsen e a música de Paganini.
A mão, porém, não era uma parte independente do resto do corpo. Era membro de um organismo integrado e extremamente complexo. Os benefícios adquiridos pela mão iriam repercutir no corpo, do qual era parte, sob dois aspectos.
Primeiro, pelos reflexos da chamada correlação do crescimento, lei descoberta por Darwin. Essa lei revela que, nos seres orgânicos, determinadas formas de diferentes partes do corpo estão sempre correlacionadas com outras formas de outras partes, que aparentemente nada têm a ver com as primeiras. Para exemplificar, citemos os animais cujos glóbulos vermelhos não têm núcleos e cujo ocipital se articula com a primeira vértebra por meio de dois côndilos. Estes animais, sem exceção, dispõem de glândulas mamárias para amamentarem seus filhotes. Outro exemplo é a úngula fendida de certos mamíferos, condicionada de modo geral à presença de um estômago multiocular próprio dos ruminantes. Modificações que se verificam em determinadas formas do organismo são acompanhadas de concomitantes mudanças em outras áreas sem que possamos ainda precisar a causa de tal correlação.
Como explicar, por exemplo, o caso dos gatos inteiramente brancos e de olhos azuis que são sempre ou quase sempre surdos? O gradativo desenvolvimento da mão do homem e a correspondente adaptação dos seus pés ao andar em posição ereta acarretaram, inegavelmente, por força da lei da correlação do crescimento, conseqüências para outras partes do organismo. Dada a insuficiência dos conhecimentos atuais a respeito destes processos, só nos cabe aqui acenar para eles em termos muito vagos.
Interessa-nos mais, por se poder demonstrar concretamente, estudarmos a ação direta que a mão exerceu no desenvolvimento do organismo. Foi dito anteriormente que nossos antepassados simiescos viviam em manadas; é óbvio que não seria viável explicar-se o aparecimento do homem, o mais social dos animais, buscando-se sua origem em antepassados próximos, destituídos de instinto gregário. A cada novo progresso que representava um avanço no domínio da natureza, que havia começado com o desenvolvimento da mão, decorrente do trabalho, o homem foi alargando seus horizontes e descobrindo nas coisas outras propriedades até então desconhecidas. Por outro lado, multiplicando-se circunstâncias e contingências de atividade em comum para mútuo auxílio e as vantagens para cada indivíduo, o desenvolvimento do trabalho contribuiu enormemente para que os homens consolidassem seus laços societários. Numa palavra, os homens, num determinado momento de sua evolução, tiveram necessidade de dizer algo uns aos outros. Dessa necessidade nasceu o órgão vocal: pouco a pouco, mas sem interrupção, a laringe do macaco, em estágio apenas incipiente, foi se modificando através de modulações, que por sua vez produziam modulações mais perfeitas e as articulações da boca evoluíam no mesmo ritmo ampliando o número de sons articulados.
Uma análise comparativa entre os homens e os animais nos leva à constatação de que esta teoria da origem da linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a que mais satisfaz. Tornando-se os animais, mesmo os mais evoluídos, observamos que o pouco que eles têm a se comunicar, é feito sem o emprego da palavra articulada. Os animais selvagens prescindem por completo da capacidade de falar ou de captar a linguagem humana. Porém, em se tratando de animais que foram domesticados pelo homem, a situação é bem diferente. O convívio, por exemplo, do cão e do cavalo com o homem, desenvolveu nestes animais uma percepção auditiva tão sensível à linguagem articulada que eles conseguem compreender, à sua maneira, qualquer idioma. E mais: começam a ter sentimentos que não tinham antes, como afeição ao dono, gratidão e outros. Para quem conhece bem os animais, não resta dúvida de que, em determinados casos, a impossibilidade de falar é sentida pelos animais mesmo como espécie de defeito ou carência. Defeito infelizmente incorrigível, pois seus órgãos vocais se desenvolveram exclusivamente numa só direção. Os animais que dispõem de órgãos apropriados poderão até superar, dentro de certos limites, estas deficiências. Embora as aves, como sabemos, possuam órgãos vocais radicalmente diferentes dos homens, são os únicos animais capazes de aprender a falar. O papagaio, por exemplo, apesar de sua voz estridente, é o que consegue falar melhor. Não vem ao caso dizer que o papagaio não entende o que fala. É claro que ele fica horas a fio repetindo monotonamente seu limitado vocabulário pelo simples prazer de falar e por seu instinto de sociabilidade. Note-se, contudo, que dentro do limite de suas representações, ele pode chegar até mesmo a compreender o que fala. Um papagaio ao qual se ensinou a falar palavrões - uma das distrações prediletas dos marinheiros que retornam das regiões tropicais - se é molestado e se irrita, põe-se a afalar esses palavrões, como qualquer mulher de feira e com igual fúria, e faz o mesmo quando quer guloseimas.
O trabalho, primeiro, depois a palavra articulada, constituíram-se nos dois principais fatores que atuaram na transformação gradual do cérebro do macaco em cérebro humano que, não obstante sua semelhança, é consideravelmente superior a ele quanto ao tamanho e à sua perfeição. Ao desenvolvimento do cérebro correspondeu o desenvolvimento de seus instrumentos imediatos: os órgãos sensoriais. Da mesma forma que a evolução paulatina da linguagem foi seguida da respectiva evolução do ouvido, o desenvolvimento geral do cérebro está intimamente relacionado com o aperfeiçoamento de todos os órgãos dos sentidos. A águia dispõe de uma vista, cujo alcance é imensamente superior à vista do homem, mas no homem, o olho enxerga muito mais detalhes nas coisas do que o olho da águia. O cachorro tem o olfato infinitamente mais apurado que o do homem, no entanto não chega a perceber nem a centésima parte dos odores que o homem distingue nas coisas e que lhe serve para diferenciá-las umas das outras. O sentido do tato, que no macaco é extremamente rudimentar, evolui enormemente no homem ao se desenvolver sua mão através do trabalho.
O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a evolução da consciência cada vez mais clara, sua crescente capacidade de discernimento e abstração atuaram, por sua vez, sobre o trabalho e a palavra imprimindo-lhes um processo evolutivo maior. Mesmo após a definitiva separação do homem em relação ao macaco, tal desenvolvimento prossegue ininterruptamente, agora com diferenças de grau e de sentido entre diversos povos e diferentes épocas, freado aqui e ali temporariamente, mas, no seu todo, avançado aceleradamente com um novo impulso graças à sociedade - novo elemento surgido com o homem já plenamente caracterizado como tal.
Certamente foram necessários milhares de anos, que são menos importantes na história da Terra que um segundo apenas na vida do homem [ 1 ], para que daquelas manadas de macacos trepadores em árvores surgisse a sociedade humana. Mas finalmente ela surgiu e voltamos a questionar qual seria a característica distintiva entre a manada de macacos e a sociedade humana. E de novo respondemos: o trabalho. A manada de macacos satisfazia seu apetite devorando alimentos de uma determinada área geográfica, nos limites permitidos por outras manadas vizinhas.
Fazendo suas migrações, lutando com outras manadas, iam conquistando novos espaços de alimentação; eram, porém, incapazes de produzir novos alimentos, utilizando-se somente daquilo que a terra generosamente lhes oferecia, excetuando-se a colaboração inconsciente de adubar o solo com seus próprios excrementos. O crescimento demográfico da população simiesca foi tornando impossível a retirada do alimento necessário nas regiões por ela habituada; por essa razão o índice de crescimento dessa população não evoluía mais. Os animais são os grandes destruidores das reservas alimentares, pelo fato de acabarem com o germe de novas gerações vegetais e animais. Ao contrário do caçador, o lobo por exemplo, não respeita a vida da cabra montês, matriz geradora de novos cabritos para os anos seguintes; da mesma forma agem as cabras da Grécia ao devorarem os jovens arbustos antes que se desenvolvam, deixando nuas as montanhas do país. Essa "depredação rapace", efetuada pelos animais, desempenha um grande papel na mutação das espécies, porque a adaptação aos alimentos que são obrigados a ingerir para sua sobrevivência vai modificando a composição química de seu sangue, transformando conseqüentemente toda sua constituição física. Dessa forma, desempenha um papel importante na transformação gradual das espécies, que se sucedem umas às outras.
Essa "depredação rapace" contribuiu em alto grau para a humanização de nossos antepassados, ampliando o número e as espécies de plantas utilizadas na alimentação daquela raça de macacos mais inteligente e com maior capacidade de adaptação que as demais.
Podemos dizer simplesmente que a alimentação cada vez mais variada contribuía com diferentes substâncias para o organismo, criando novas condições químicas para a transformação desses macacos em seres humanos. Mas tudo isso não pode ser considerado trabalho, no sentido exato da palavra. Pode se falar em trabalho somente a partir do momento em que surgem instrumentos elaborados, fabricados. E o que representam os instrumentos dos homens pré-históricos, cujo restos chegaram até nós, e levando-se em consideração o gênero de vida dos povos mais antigos, registrados pela história, como também dos selvagens atuais mais primitivos? Esses instrumentos, ao nosso ver, são de caça e de pesca e os primeiros eram utilizados como armas de defesa. A caça e a pesca contribuíram para a modificação da alimentação, antes exclusivamente vegetal e agora mista. Isso representa um novo e importante passo na transformação do macaco em homem. A carne, como alimentação, trouxe ao organismo, de maneira quase acabada, os ingredientes essenciais para o seu metabolismo. Desse modo, foram simplificados os processos da digestão e outros da vida vegetativa do organismo (isto é, os processos análogos aos da vida dos vegetais), economizando tempo, materiais e estímulos para que a vida propriamente animal se manifestasse. E o homem que se formava, ia cada vez mais se afastando do reino vegetal e se elevando sobre os demais animais. Do mesmo modo que a alimentação foi convertendo pouco a pouco o gato e o cão selvagens em servidores domésticos do homem, assim também o hábito de combinar a carne com a alimentação vegetal oferecia condições excelentes para fortalecer fisicamente o homem em formação e dar-lhe independência.
Porém, foi o cérebro que mais se beneficiou com essa dieta carnívora, pois passou a receber maior quantidade de substâncias necessárias ao seu desenvolvimento e adquiria, assim, maior e mais rápido aperfeiçoamento de geração em geração. Com o perdão dos vegetarianos, devemos reconhecer que a alimentação à base de carne ajudou o homem a ser homem; e pouca importância tem hoje o fato de que, em outra época da história dos povos, o emprego da carne na alimentação tenha chegado ao canibalismo (no século X, por exemplo, os antepassados dos berlinenses, os veletabos e os vilyses devoravam seus próprios pais).
O consumo de carne na alimentação é responsável por dois novos avanços importantes e decisivos: o uso do fogo e a domesticação dos animais. O fogo reduziu ainda mais o processo digestivo, porque permitia levar à boca alimento já em parte digerido. A domesticação dos animais multiplicou as reservas de carne, por ser, ao lado da caça, mas uma nova e regular fonte de alimentação, além de favorecer a obtenção do leite e seus derivados, tão ricos na sua composição quanto a carne. Esses dois novos avanços reverteram-se assim em benefício do próprio homem como novos meios de emancipação. É impossível determo-nos aqui para um exame mais minucioso das conseqüências indiretas desses novos avanços, pois nos afastaria muito de nossa temática, mas reconhecemos a importância que tiveram para o desenvolvimento do homem na sociedade. Do mesmo modo que o homem aprendeu a usar todos os alimentos comestíveis, aprendeu também a viver em qualquer clima e o fez estendendo-se por toda a região habitável de terra, sendo o único animal com capacidade e iniciativa própria para se deslocar de um lugar para outro. Os outros animais que se mostraram capazes de se aclimatarem - os animais domésticos e os insetos parasitas - não o fizeram por vontade própria, mas sim acompanhando o homem. A mudança de climas uniformemente quentes da pátria de origem para regiões mais frias, onde o inverno e o verão são bem distintos, acarretou novas exigências que obrigaram o homem a se recolher em habitações e cobrir seu corpo protegendo-se contra o frio e umidade. Desta forma, outras modalidades de trabalho foram surgindo e com elas, novas atividades que faziam o homem distanciar-se cada vez mais dos animais.
Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada indivíduo mas na sociedade como um todo, os homens foram se desenvolvendo cada vez mais, tornando-se capazes de executar operações complexas e alcançar objetivos mais elevados. O próprio trabalho foi se diversificando, aperfeiçoando-se a cada geração e estendendo-se a novas atividades. A agricultura surgiu como alternativa para a caça e a pesca, e mais tarde a fiação e tecelagem, a manipulação de metais, a olaria e a navegação. Concomitantemente ao comércio e aos ofícios (hoje profissões) apareceram as artes e a ciência; das tribos saíram as nações e os Estados. Vieram depois o direito e a política, e a religião apareceu como o reflexo fantástico das coisas na mente do homem. Com essas criações produzidas pelo cérebro e que começavam a dominar as sociedades humanas, as produções mais simples, resultado das atividades manuais, foram deixadas em segundo plano. Na família primitiva, por exemplo - numa fase mais adiantada do desenvolvimento da sociedade - a cabeça que planejava o trabalho já era capaz de sujeitar mãos alheias a realizarem o projetado por ela. A rapidez com que a civilização progredia foi atribuída exclusivamente à cabeça, ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. Daí os homens terem se habituado a explicar seus atos pelos seus pensamentos, em vez de entendê-los através de suas necessidades (refletidas, naturalmente, na cabeça que delas vai tomando consciência gradativamente). E assim, com o passar do tempo, essa concepção idealista do mundo foi dominando o cérebro dos homens, mormente após o desaparecimento do mundo antigo. Ainda hoje esta concepção é dominante, a ponto dos próprios naturalistas da escola darwiniana, ligados ao materialismo, não conseguirem elaborar com clareza um conceito sobre a origem do homem, porque essa influência idealista não lhes permite conceber o papel que o trabalho exerceu na evolução inicial do homem
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[ * ] Escrito por Friedrich Engels em junho de 1876, inicialmente como Introdução a um trabalho mais extenso que tinha por título "Três formas fundamentais de escravidão", que não foi adiante. "O Papel do trabalho na transformação do macaco em homem" foi publicado pela primeira vez em 1896 no Neue Zeit.[ 1 ] Sir William Thompsom, grande autoridade na matéria, calculou em pouco mais de cem milhões de anos o tempo transcorrido desde o momento em que a Terra se esfriou o suficiente para que nela pudessem viver as plantas e os animais (Nota de Engels).

Também os animais, como já mencionados, modificam a natureza exterior com suas atividades, mas em menor proporção que o homem. Essas transformações provocadas pelos animais no meio ambiente repercutiam nos próprios causadores, modificando-os também. Na natureza, nada acontece isoladamente: os fenômenos exercem entre si influências recíprocas, num movimento de interação universal, coisa geralmente esquecida pelos naturalistas, que não percebem a simplicidade com que isto se dá. Já vimos anteriormente como as cabras provocavam o desmatamento dos bosques na Grécia. As cabras e os porcos, desembarcados pelos primeiros navegantes na Ilha de Santa Helena, destruíram quase por completo a vegetação local, fazendo com que o terreno ficasse preparado para receber as plantas levadas depois por outros navegantes e colonizadores. Porém, essa influência duradoura dos animais na natureza é exercida de modo involuntário e constitui um fato acidental. Quanto mais o homem se afasta dos animais, mais ele exerce sobre a natureza uma influência intencional e planejada a fim de alcançar objetivos previamente projetados, ao passo que os animais nem se dão conta dos estragos que provocam na vegetação. No entanto, os homens, quando destroem a vegetação, o fazem para melhor utilizar a terra livre, semeando trigo, plantando árvores ou cultivando a videira, conscientes de que essa colheita será bem maior do que o semeado por eles. O homem transporta de um país para outro plantas úteis e animais domésticos, modificando a flora e a fauna de continentes inteiros. Por outro lado, as plantas cultivadas e os animais criados em condições artificiais sofrem uma influência tão grande das mãos do homem que chegam a se tornar irreconhecíveis. Dessa forma, nossas culturas de cereais não têm antepassados silvestres conhecidos. Até hoje não foi resolvida a questão da origem dos cães existentes atualmente, tão diferentes entre si; a mesma dúvida persiste em relação às diversas raças de cavalo atuais. Entenda-se bem que com isso não queremos negar aos animais a faculdade de atuarem sobre a natureza de forma planejada e premeditada. Pelo contrário, sabemos que a ação planejada já existe em germe no protoplasma ( a albumina viva) que reage, realizando determinados movimentos, embora muito simples, em resposta a certos estímulos do exterior. Tal reação se dá mesmo quando ainda não há célula de espécie alguma. As plantas comedoras de insetos, quando deles se apoderam, realizam um ato até certo ponto planejado, embora totalmente inconsciente. Os atos conscientes e premeditados são possíveis em animais que tenham um desenvolvimento do sistema nervoso mais evoluído. Nos mamíferos, o grau de consciência encontra-se em nível bastante elevado. Pode-se observar nas caçadas que se organizam na Inglaterra, como à raposa, infalivelmente se utiliza do seu perfeito conhecimento do lugar para esconder-se de seus perseguidores, mostrando conhecer e saber aproveitar as vantagens que o terreno lhe oferece para despistá-los. Nossos animais domésticos, que atingiram um grau muito alto de desenvolvimento, pelo fato de sua longa convivência com o homem, têm atos astuciosos, parecidos com os das crianças. Isso porque o desenvolvimento do feto humano no ventre da mãe é uma réplica fiel, mas abreviada, de toda a história do desenvolvimento físico de nossos antepassados do reino animal, através de milhões de anos, desde o estado larval. O mesmo acontece com o desenvolvimento espiritual da criança, que também repete, de maneira mais abreviada, o desenvolvimento intelectual desses mesmos antepassados, pelo menos dos mais próximos. Mas a marca da vontade não está impressa em nenhum ato planejado de qualquer animal. Só o homem faz uso dela.
Resumindo: os animais só podem utilizar a natureza e modificá-la apenas porque nela estão presentes. Já o homem modifica a natureza e a obriga a servi-lo, ou melhor: a domina.
Analisando mais profundamente, não há dúvida de que a diferença fundamental entre os homens e outros animais está na força do trabalho.
Porém, não nos deixemos entusiasmar apenas pelo fato de sermos vitoriosos em relação à natureza, pois a cada vitória assim conquistada, a sábia natureza prepara sua vingança. As primeiras conseqüências dessas vitórias podem ser previstas por nós, mas existem outras imprevisíveis e que freqüentemente podem anular as primeiras. Assim, os homens da Mesopotâmia, Grécia, Ásia Menor e outras regiões, ao devastarem seus bosques para cultivarem a terra, não podiam supor que estavam destruindo os centros de acumulação e reserva de umidade, assentando as bases da atual aridez dessas terras. Os italianos dos Alpes, ao destruírem os bosques de pinheiro das encostas meridionais, tão bem conservados nas encostas setentrionais, mal sabiam que assim destruíam as raízes da indústria de laticínios de sua região; muito menos podiam prever que deixavam secas as fontes da montanha durante a maior parte do ano, fazendo com que, no período das chuvas, a água devastasse as planícies. O cultivo da batata na Europa, por sua vez, favorecia, ao mesmo tempo, a difusão desse tubérculo farináceo e a expansão da escrofulose. Todos esses fatos vêm comprovar, a cada passo, que o domínio da natureza pelo homem é bem diferente do domínio de um conquistador sobre o povo conquistado. Este não é o domínio de alguém desligado da natureza, porque nossa carne, sangue, cérebro, pertencem à natureza, encontramo-nos em seu seio e nossa dominação sobre ela é bem diferente da dos outros seres, pois somos conscientes de suas leis e da forma correta de aplicá-las.
Dia a dia, aprendemos a compreender melhor as leis da natureza e a conhecer os efeitos imediatos e as conseqüências remotas de nossas interferências no curso normal de seu processo evolutivo. E agora, nesse século, com os grandes progressos das ciências naturais, somos capazes de prever e controlar cada vez mais as remotas conseqüências naturais de nossas atividades de produção, pelo menos das mais comuns.
Essa realidade leva os homens a sentir e compreender sua profunda unidade com a natureza, afastando a inconcebível, absurda e antinatural idéia da antítese entre espírito e matéria, homem e natureza, alma e corpo. Idéia que começa a se alastrar pela Europa, baseada na decadência da antigüidade clássica e intensificada ao máximo com o desenvolvimento do cristianismo.
Porém, se o homem levou milhares de anos para aprender, de certa forma, a prever as remotas conseqüências naturais relativas aos processos produtivos, mais tempo levou para aprender a calcular as longínquas conseqüências sociais desses mesmos atos. Fizemos algumas referências advindas da difusão da batata e da escrofulose. Mas que importância pode ter a escrofulose comparada à fome que se estendeu em 1847 pela Irlanda em conseqüência de uma doença provocada pela batata que matou um milhão de irlandeses, que se alimentavam exclusivamente, ou quase exclusivamente, deste tubérculo, e que obrigou outros dois milhões a emigrar para além-mar? Os árabes quando descobriram a forma de destilar o álcool, não poderiam nem de longe imaginar que estavam forjando uma das principais armas de extermínio da população indígena do continente americano ainda desconhecido. Mal sabia Colombo, ao descobrir a América, que estava fazendo ressurgir a escravidão, extinta há muito na Europa, além de estar estabelecendo novamente as bases para o tráfico dos negros. Os homens do século XVII e XVIII inventaram a máquina a vapor sem suspeitar que estavam criando um instrumento mais poderoso que qualquer outro e que haveria de subverter as condições sociais em todo mundo. Isso ocorreu principalmente na Europa, onde a riqueza era concentrada nas mãos de uma minoria e o direito de propriedade era negado à maioria, favorecendo à burguesia o domínio social e político e provocando depois a luta de classes entre a burguesia e o proletariado. Luta essa que só poderá terminar com o extermínio da burguesia e a abolição de todos os antagonismos de classe. Através da análise e do confronto, às vezes até cruel, dos fatos acontecidos na história dos tempos, vamos aprendendo, aos poucos, a conhecer as conseqüências sociais indiretas e mais remotas de nossas atividades produtivas, permitindo-nos dominar e controlar tais conseqüências. Contudo, para realizar tal controle é preciso algo mais que o simples conhecimento. É preciso revolucionar por completo o modo de produção existente até hoje a fim de transformar radicalmente a ordem social vigente.
Todos os modos de produção existentes até hoje, só visavam ao utilitarismo do trabalho, da maneira mais direta e imediata. Não se dava a mínima importância às conseqüências remotas, que só surgem mais tarde e cujos efeitos se manifestavam apenas graças a um processo de repetição e acumulação gradual. A primitiva propriedade comunitária da terra correspondia, por um lado, a um estágio de desenvolvimento dos homens em que seu horizonte era limitado às coisas mais imediatas e, por outro lado, pressupunha um certo excedente de terras livres, que possibilitava a neutralização de possíveis resultados adversos dessa economia primitiva. Quando esgotou-se o que restava de terras livres, começou a decadência da propriedade comunitária. Todos os modos mais elevados de produção surgidos depois, dividiam a população em classes diferentes: a dominante e a oprimida. Conseqüentemente, os interesses da classe dominante transformaram-se em agente propulsor da produção, limitando-se esta apenas para manter, bem ou mal, a existência miserável da classe oprimida. Isso é retratado, da maneira mais perfeita, pelo modo de produção capitalista, que prevalece ainda hoje na Europa Ocidental. Os capitalistas individuais que dominam a produção e a troca, só se ocupam da utilidade mais imediata de suas atividades. Ou seja, mesmo essa utilidade - em se tratando da utilidade da mercadoria produzida ou trocada - passa inteiramente para segundo plano, aparecendo como único inventivo, o lucro obtido na venda.
A economia política clássica, a ciência social da burguesia, dá preferência às conseqüências sociais que constituem o objetivo imediato das atividades realizadas pelos homens na produção e na troca. Essa é a expressão fiel do regime social, cuja fundamentação teórica é essa ciência. Uma vez que os capitalistas isolados produzem ou trocam com o único objetivo de obter lucros imediatos, só podem dar importância aos resultados mais próximos e imediatos. Se um industrial ou comerciante vende a mercadoria produzida ou comprada por ele e alcança o lucro desejado, ele se dá por satisfeito e não se importa de jeito nenhum com o que possa acontecer mais tarde com essa mercadoria ou com seu comprador. O mesmo acontece com as conseqüências naturais dessas mesmas atividades. Em Cuba, os plantadores espanhóis, ao queimarem os bosques das encostas das montanhas para obter adubo com cinza, a fim de fertilizar apenas uma geração de cafezais de alto rendimento, não davam a mínima importância às chuvas torrenciais dos trópicos, que varriam a camada vegetal do solo sem a proteção das árvores, e deixavam com a sua devastação apenas rochas desnudas! Essa forma atual de produção só dá prioridade aos resultados imediatos, os mais palpáveis, deixando de lado o que se refere às conseqüências naturais e sociais das atividades realizadas pelo homem. A tal ponto que chega a causar estranheza e surpresa o fato de tais conseqüências aparecerem depois, na maioria das vezes, diametralmente opostas aos resultados palpáveis. É o que verificamos, por exemplo, na lei da oferta e procura, a qual num primeiro momento, revela harmonia para se converter depois em desequilíbrio. Este fenômeno é comprovado a cada ciclo industrial de dez anos, como puderam sentir aqueles que com o crack [ 2 ] na Alemanha presenciaram um pequeno prelúdio. Outro exemplo é o da propriedade privada baseada no trabalho próprio, que acaba se transformando, com o seu desenvolvimento, na ausência de toda propriedade por parte dos trabalhadores, enquanto toda a riqueza se concentra mais e mais nas mãos dos que não trabalham. . . [ 3 ]

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[ 2 ] Referência à crise econômica de 1873/74 (N. da R.)[ 3 ] O manuscrito se interrompe aqui. (N. da R.)

A ORIGEM DA FAMÍLIA, DA PROPRIEDADE PRIVADA E DO ESTADO.

Friedrich Engels

Prefácio à Primeira Edição/ 1884

As páginas seguintes vêm a ser, de certo modo, a execução de um testamento. Marx dispunha-se a expor, pessoalmente, os resultados das investigações de Morgan em relação com as conclusões da sua (até certo ponto posso dizer nossa) análise materialista da história, para esclarecer assim, e somente assim, todo o seu alcance. Na América, Morgan redescobriu, à sua maneira, a concepção materialista da história – formulada por Marx, quarenta anos antes – e, baseado nela, chegou, contrapondo barbárie e civilização, aos mesmos resultados essenciais de Marx. Devo assinalar que os mestres da ciência “pré-histórica” na Inglaterra tiveram, quanto ao Ancient Society (1) de Morgan, a mesma atitude que já tinham assumido, em face de O Capital de Marx, os economistas oficiais da Alemanha, que andaram durante muito tempo a plagia-lo, com zelo igual ao empenho em silencia-lo. O meu trabalho só debilmente pode substituir aquele que o meu falecido amigo não chegou a escrever. Disponho, entretanto, não só dos excertos detalhados que Marx retirou à obra de Morgan, como também das suas anotações críticas, que reproduzo aqui sempre que oportunas.
De acordo com a concepção materialista, o fator decisivo na história é, em última instância, a produção e a reprodução da vida imediata. Mas essa produção e essa reprodução são de dois tipos: de um lado, a produção de meios de subsistência, de produtos alimentícios, roupa, habitação, e instrumentos necessários para tudo isso; do outro lado, a produção do próprio homem, a continuação da espécie. A ordem social em que vivem os homens de determinada época ou determinado país está condicionada por essas duas espécies de produção: pelo grau de desenvolvimento do trabalho, de um lado, e da família, de outro. Quanto menos desenvolvido é o trabalho, mais restrita é a quantidade dos seus produtos e, por conseqüência, a riqueza da sociedade; com tanto maior força se manifesta a influência dominante dos laços de parentesco sobre o regime social. Contudo, no quadro dessa estrutura da sociedade baseada nos laços de parentesco, a produtividade do trabalho aumenta sem cessar, e, com ela, desenvolvem-se a propriedade privada e as trocas, as diferenças de riqueza, a possibilidade de empregar força de trabalho alheia, e com isso, a base dos antagonismos de classe. Os novos elementos sociais, que, no transcurso de gerações, procuram adaptar a velha estrutura da sociedade às novas condições, até que, por fim, a incompatibilidade entre estas e aquelas leva a uma revolução completa. A sociedade antiga, baseada nas uniões gentílicas, desagrega-se, em conseqüência do choque das classes sociais recém-formadas; dá lugar a uma nova sociedade organizada em Estado, cujas unidades inferiores já não são gentílicas e sim unidades territoriais – uma sociedade em que o regime familiar está completamente submetido ás relações de propriedade e na qual têm livre curso as contradições de classe e a luta de classes, que constituem o conteúdo de toda a história escrita, até aos nossos dias.
O grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e restabelecido nos seus traços essenciais esse fundamento pré-histórico da nossa história escrita e o de ter encontrado, nas uniões gentílicas dos índios norte-americanos, a chave para decifrar importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história antiga da Grécia, Roma e Alemanha. A sua obra não foi trabalho de um dia. Levou cerca de quarenta anos a elaborar os seus dados, até conseguir dominar inteiramente o assunto. E o seu esforço não foi em vão, pois o seu livro é, atualmente, um dos poucos que fazem época.
No que a seguir se expõe, o leitor distinguirá, com facilidade, o que é de Morgan e o que eu acrescentei. Nos capítulos de história consagrados à Grécia e a Roma, não me limitei a reproduzir a documentação de Morgan, mas acrescentei todos os dados de que dispunha. A parte que trata dos celtas e dos germanos é essencialmente minha, pois os documentos de Morgan sobre o assunto eram de segunda mão; e, quanto aos germanos, salvo os escritos de Tácito, só conhecia as péssimas falsificações liberais do senhor Freeman. Tive que refazer toda a argumentação econômica, que, se era suficiente para os objetivos de Morgan, não bastava, em absoluto, para os meus. Finalmente, respondo, sem dúvida, por todas as conclusões, desde que Morgan não seja expressamente citado.
F. Engels
F. Engel
Prefácio à Quarta Edição/1891

As edições anteriores, de que se fizeram grandes tiragens, estão esgotadas há bem uns seis meses, e o editor vinha-me pedindo, já há algum tempo, que preparasse uma nova. Trabalhos mais urgentes impediram que eu o fizesse até esse momento. Desde o aparecimento da primeira edição, já se passaram sete anos, durante os quais se verificaram grandes progressos no estudo das formas primitivas da família. Foi necessário, portanto, corrigir e aumentar minuciosamente a obra, tanto mais que se pensa em estereotipar o atual texto, o que me havia impossibilitado, por algum tempo, de o corrigir.
Como disse, revi com atenção todo o livro e fiz-lhe alguns acréscimos, em que julgo ter considerado devidamente o atual estado da ciência. Além disso, faço neste prefácio uma breve exposição do desenvolvimento da história da família, desde Bachofen até Morgan, principalmente porque a escola pré-histórica inglesa, que tem um acentuado matiz chauvinista, continua a fazer todo o possível para silenciar a revolução produzida pelas descobertas de Morgan nas velhas noções da história primitiva, embora não sinta o menor escrúpulo em apropriar-se dos resultados obtidos por Morgan. Também em outros países se segue com zelo, em alguns casos, o exemplo dado pelos ingleses.
O meu trabalho foi traduzido em diversos idiomas. Primeiro, em italiano: L’origine della famiglia, della proprietá privata e dello stato, versione reviduta dall’autore, di Pasquale Martigneti, Benevento, 1885. Logo em seguida, apareceu a tradução romena: Origina familei, proprietatei private si a statului, traducere de Joan Nadejde, publicada na revista de Jassi Contemporanul, de setembro de 1885 a maio de 1886. Depois, a dinamarquesa: Familjens, Privatejendommens og Oprindelse, af Forfatteren gennemgaat Ud gave, besörget af Gerson Trier, Kobenhavn, 1888. E esta sendo impressa uma tradução francesa de Henri Ravé, baseada na presente edição alemã.
Até o início da década de sessenta, não se poderia sequer pensar numa história da família. As ciências históricas ainda se encontravam, nesse domínio, sob a influência dos Cinco Livros de Moisés. A forma patriarcal da família, pintada nesses cinco livros com maior riqueza de minúcias d que em qualquer outro lugar, não somente era admitida, sem reservas, como a mais antiga, como também se identificava – excetuando a poligamia – com a família burguesa de hoje, de modo que era como se a família não tivesse tido evolução alguma através da história. Quando muito, admitia-se que nos tempos primitivos pudesse ter havido um período de promiscuidade sexual. É certo que, além da monogamia, conheciam-se a poligamia no Oriente e a poliandria na Índia e no Tibete; mas estas três formas não podiam ser dispostas historicamente, em ordem sucessiva: figuravam juntas, umas ao lado das outras, sem nenhuma conexão. Também é verdade que, em alguns povos do mundo antigo e em algumas tribos selvagens ainda existentes, a descendência é contada por linha materna e não paterna, sendo aquela a única válida, e que, em muitos povos contemporâneos, é proibido o casamento dentro de determinados grupos maiores – naquela época ainda não estudados de perto – ocorrendo este fenômeno em todas as partes do mundo; estes fatos, certamente, eram conhecidos, e em cada dia a eles se acrescentavam novos exemplos. Mas ninguém sabia como aborda-los e, inclusive, na obra de E. B. Tylor (1865) apareciam como “costumes exóticos”, ao lado da proibição, vigente em algumas tribos selvagens, de tocar na lenha que ardesse com qualquer instrumento de ferro, e outras futilidades religiosas semelhantes.
O estudo da história da família começa, de fato, em 1861, com o Direito Materno de Bachofen. Nesse livro, o autor formula as seguintes teses: 1 – primitivamente, os seres humanos viveram em promiscuidade sexual (impropriamente chamada de heterismo por Bachofen); 2 – estas relações excluíam toda a possibilidade de estabelecer, com rigor, a paternidade, pelo que a filiação apenas podia ser contada por linha feminina, segundo o direito materno, e isso verificou-se em todos os povos antigos; 3 – como conseqüência desse fato, as mulheres, como mães, como únicos progenitores conhecidos da jovem geração, gozavam de grande apreço e respeito, alcançando, de acordo com Bachofen, o domínio absoluto (ginecocracia); 4 – a passagem para a monogamia, em que a mulher pertence a um só homem, incidia na transgressão de uma lei religiosa muito antiga (isto é, do direito imemorial que os outros homens tinham sobre aquela mulher), transgressão que devia ser castigada, ou cuja tolerância se compensava com a posse da mulher por outros, durante determinado período.
Bachofen encontrou as provas dessas teses em numerosos trechos da literatura clássica antiga, por ele reunidos com zelo singular. A passagem do “heterismo” à monogamia e do direito materno ao paterno, segundo Bachofen, processa-se – particularmente entre os gregos – em conseqüência do desenvolvimento das concepções religiosas, da introdução de novas divindades, representativas de idéias novas, no grupo dos deuses tradicionais, que eram a encarnação das velhas idéias; pouco a pouco os velhos deuses vão sendo relegados para segundo plano. Dessa maneira, pois, para Bachofen, não foi o desenvolvimento das condições reais de existência dos homens, mas o reflexo religioso dessas condições no cérebro deles, o que determinou as transformações históricas na situação social recíproca do homem e da mulher. Dentro do seu ponto de vista, Bachofen interpreta a Oréstia de Ésquilo como um quadro dramático da luta entre o direito materno agonizante e o direito paterno, que nasceu e conseguiu a vitória sobre o primeiro, na época das epopéias. Levada pela sua paixão por Egisto, seu amante, Clitemnestra mata seu marido Agamêmnon, quando este regressava da guerra de Tróia; mas Orestes, filho dela e de Agamêmnon, vinga o pai, matando a mãe. Isso faz com que se veja perseguido pelas Erínias, seres demoníacos que protegem o direito materno, segundo o qual o matricídio é o mais grave e imperdoável de todos os crimes. Apolo, no entanto, por intermédio do seu oráculo, havia incitado Orestes a matar sua mãe, e Palas Atena, que intervém como juiz (ambas as divindades representam aqui o novo direito paterno), protegem Orestes. Atena ouve ambas as partes. Todo o litígio está resumido na discussão de Orestes com as Erínias. Orestes diz que Clitemnestra cometeu um duplo crime ao matar quem era seu marido e pai de seu filho. Por que razão as Erínias o perseguiam, o visavam, em especial, se ela, a morta, tinha sido muito mais culpada? A resposta é surpreendente:
“Ela não estava unida por vínculos de sangue ao homem que assassinou.”
O assassinato de uma pessoa com a qual não houvesse vínculo de sangue, mesmo que fosse o marido da assassina, era falta que podia ser expiada – e não concernia, absolutamente, às Erínias. A sua missão era a de punir o homicídio entre consangüíneos e o pior e mais imperdoável dos crimes, segundo o direito materno: o matricídio. Nesse ponto, contudo, intervém Apolo, defensor de Orestes, e em seguida Atena submete o caso ao Areópago – o Tribunal do Júri ateniense; há o mesmo número de votos pela condenação e pela absolvição. Então, Atena, como presidente do Tribunal, vota em favor de Orestes e absolve-o. O direito paterno vence o materno. Os “deuses da jovem geração”, assim denominados pelas próprias Erínias, são mais poderosos que elas, pelo que só lhes resta a resignação e, finalmente convencidos, porem-se ao serviço do novo estado de coisas.
Essa nova e inteiramente correta interpretação da Oréstia é uma das melhores e mais belas passagens do livro, mas, ao mesmo tempo, é a prova de que Bachofen acredita, como outrora Ésquilo, nas Erínias, em Apolo e Palas Atena, isto é, crê que foram estas divindades que realizaram, na época heróica da Grécia, o milagre da destruição do direito materno e sua substituição pelo paterno. É evidente que tal concepção, que considera a religião como a alavanca decisiva na história do mundo, conduz, afinal de contas, ao mais puro misticismo. Por isso, estudar a fundo o volumoso livro de Bachofen é um trabalho árduo e, muitas vezes, pouco proveitoso. Isto, no entanto, não diminui os seus méritos de pioneiro, já que foi o primeiro a substituir as frases sobre um desconhecido e primitivo estágio de promiscuidade sexual, pela demonstração de que, na literatura clássica grega, há muitos vestígios de que entre os gregos e os povos asiáticos existiu realmente, antes da monogamia, um estado social em que não somente o homem mantinha relações sexuais com várias mulheres, mas também a mulher mantinha relações sexuais com diversos homens, sem que com isso violassem a moral estabelecida. Bachofen provou que esse costume não desapareceu sem deixar vestígios, sob a forma de necessidade, para a mulher, de se entregar, durante determinado período, a outros homens – entrega que era o preço do seu direito ao matrimônio único; que, portanto, primitivamente só se podia contar a descendência pela linha feminina, quer dizer: de mãe a mãe; que essa validez exclusiva da filiação feminina se manteve por muito tempo, mesmo no período posterior de monogamia, com a paternidade já estabelecida, ou, pelo menos, reconhecida; e, por último, que essa situação primitiva das mães, como únicos genitores certos de seus filhos, lhes assegurou, bem como às mulheres em geral, a posição social mais elevada que tiveram desde então até aos nossos dias. Na verdade, Bachofen não enunciou esses princípios com muita clareza, porque o tolhia o misticismo da suas concepções; mas o simples fato de os ter demonstrado, em 1861, tinha o significado de uma revolução.
O volumoso tomo de Bachofen estava escrito em alemão, isto é, na língua da nação que menos se interessava, então, pela pré-história da família contemporânea. Por isso, permaneceu ignorado. O sucessor mais imediato de Bachofen, nesse campo, revelou-se em 1865, sem nunca ter ouvido falar dele. Trata-se de J. F. Mac Lennan, a antítese do seu predecessor. Ao invés do místico genial, temos aqui um árido jurisconsulto; em lugar de uma exuberante e poética fantasia, as plausíveis combinações de um arrazoado de advogado. Mac Lennan encontra em muitos povos selvagens, bárbaros e até civilizados, dos tempos antigos e modernos, uma forma de matrimônio em que o noivo, só ou assistido por seus amigos, deve arrebatar a sua futura esposa da casa dos pais, simulando um rapto violento. Este costume deve ser vestígio de um outro anterior, segundo o qual os homens de uma tribo obtinham mulheres arrebatando-as, à força, de outras tribos. Mas como teria nascido esse “matrimônio por rapto”? Enquanto os homens puderam encontrar mulheres suficientes na sua própria tribo, não tiveram motivo para semelhante procedimento. Por outro lado, e com freqüência não menor, encontramos em povos não civilizados certos grupos (que em 1865 ainda eram muitas vezes identificados com as próprias tribos) no seio do quais era proibido o matrimônio, vendo-se os homens obrigados a buscar esposas – e as mulheres, esposos – fora do grupo; enquanto isso, outro costume existe, em outros povos, segundo o qual os homens de determinado grupo só devem procurar as suas esposas no seio do seu próprio grupo. Mac Lennan chama as primeiras de tribos exógamas e as segundas de endógamas; e, sem mais, estabelece logo uma antítese bem definida entre “tribos” exógamas e endógamas. E, ainda quando as suas próprias investigações sobre a exogamia lhe evidenciam que, em muitos casos, senão na maioria, ou mesmo em todos, essa antítese só existe na sua imaginação, nem por isso deixa de toma-la como base para toda a sua teoria. De acordo com ela, as tribos exógamas só podiam tomar mulheres de outras tribos, o que apenas podia ser feito mediante rapto, dada a guerra permanente entre as tribos, característica do estado selvagem.
Mais adiante, Mac Lennan pergunta: de onde provém esse costume de exogamia? Na sua opinião, as idéias de consangüinidade e incesto – que surgiram muito mais tarde – nada têm a ver com ele. A sua causa poderia ser o costume, bastante difundido entre os selvagens, de matar as crianças do sexo feminino logo após o seu nascimento. Disso resultaria um excedente de homens em cada tribo, considerada isoladamente, tendo como conseqüência imediata a posse de uma mesma mulher, em comum, por vários homens, isto é, a poliandria. Daí decorria, por sua vez, que a mãe de uma criança era conhecida, mas não o pai; por isso, a ascendência era contada pela linha materna e não paterna (direito materno). E da escassez de mulheres no seio da tribo – escassez atenuada, mas não suprimida pela poliandria – advinha, ainda, outra conseqüência, que era precisamente o rapto sistemático de mulheres de outras tribos. “Como a exogamia e a poliandria procedem de uma só causa, do desequilíbrio numérico entre os sexos, devemos considerar que, entre todas as raças exógamas, existiu primitivamente a poliandria. . . E, por isso, devemos ter como fato indiscutível que, entre as raças exógamas, o primeiro sistema de parentesco era aquele que reconhecia apenas o vínculo de sangue pelo lado materno.” (Mac Lennan, Estudos de História Antiga, 1886; “O Matrimônio Primitivo”, p. 124).
O mérito de Mac Lennan consiste em ter indicado a difusão geral e a grande importância do que ele chama a exogamia. Quanto ao fato da existência de grupos exógamos, não o descobriu e muito menos o compreendeu. Sem falar das notícias anteriores e isoladas de numerosos observadores – exatamente as fontes de Mac Lennan – Latham já havia descrito, com muita precisão e justeza (Etnologia Descritiva, 1859), esse fenômeno entre os magars da Índia, e afirmara que o fenômeno predominava em geral e se verificava em todas as partes do mundo. O próprio Mac Lennan cita esta passagem. Além disso, também o nosso Morgan observara e descrevera perfeitamente o mesmo fenômeno - e isto em 1847, nas suas cartas sobre os iroqueses (na American Review), e em 1851 na Liga dos iroqueses, ao passo que, como veremos, a mentalidade de advogado de Mac Lennan causou confusão ainda maior sobre o assunto do que a causada pela fantasia mística de Bachofen no terreno do direito materno. Outro mérito de Mac Lennan consiste em ter reconhecido como primária a ordem de descendência baseada no direito materno, conquanto, também aqui, conforme reconheceu mais tarde, Bachofen se lhe tenha antecipado. Mas também, neste ponto, ele não vê claro, pois fala, sem cessar em “parentesco apenas por linha feminina” (“hinship through females only”), empregando continuamente essa expressão exata para um período anterior, na análise de fases posteriores de desenvolvimento, em que, se é verdade que a filiação e o direito de herança continuam a contar-se exclusivamente segundo a linha materna, o parentesco por linha paterna também já está reconhecido e expresso. Observamos aqui a estreiteza de critério do jurisconsulto, que forja um termo jurídico fixo e continua a aplica-lo sem o modificar, a circunstâncias para as quais já não serve.
Parece que, apesar da sua plausibilidade, a teoria de Mac Lennan não deu ao seu autor a impressão de estar muito solidamente assente. Pelo menos, chama-lhe a atenção “o fato, digno de ser notado, de que a forma do rapto (simulado) das mulheres seja observada mais marcada e nitidamente entre os povos em que predomina o parentesco masculino (quer dizer: a descendência por linha paterna)” (pág. 140). E diz, mais adiante: “É muito estranho que, segundo as notícias que temos, o infanticídio não se pratique por sistema em toda a parte onde a exogamia e a mais antiga forma de parentesco coexistem” (pág. 146). Esses dois fatos contestam, diretamente, a sua maneira de explicar as coisas, e Mac Lennan não lhes pode opor senão novas hipóteses, ainda mais confusas.
Não obstante, a sua teoria foi acolhida na Inglaterra com grande aprovação e simpatia. Mac Lennan foi considerado por todos como o fundador da história da família e a primeira autoridade na matéria. A sua antítese entre as “tribos” exógamas e endógamas continuou a ser a base reconhecida das opiniões dominantes, apesar de certas exceções e modificações admitidas e transformou-se nos antolhos que impediam ver livremente todo o terreno explorado e, por conseguinte, todo o progresso decisivo. Em face do exagero dos méritos de Mac Lennan que esteve em voga na Inglaterra e, logo a seguir, em toda a parte, devemos assinalar que, com a sua antítese de “tribos” exógamas e endógamas, baseada na mais pura confusão, ele causou um prejuízo maior do que os serviços prestados com as suas pesquisas.
Entretanto, cedo começaram a ser conhecidos fatos e mais fatos que não cabiam no seu ordenado esquema. Mac Lennan somente conhecia três formas de matrimônio: a poligamia, a poliandria e a monogamia. Logo, porém, que a atenção foi dirigida para esse ponto, encontraram-se provas, cada vez mais numerosas, de que, entre povos não desenvolvidos, existiam outras formas de matrimônio, nas quais vários homens tinham em comum várias mulheres; e Lubbock (A Origem da Civilização, 1870) reconheceu como fato histórico este matrimônio por grupos (“communal marriage”).
Logo a seguir, em 1871, surgiu Morgan com documentos novos e, sob muitos pontos de vista, decisivos. Convencera-se que o sistema de parentesco próprio dos iroqueses, e ainda em vigor entre eles, era comum a todos os aborígines dos Estados Unidos, quer dizer, estava difundido em todo um continente, ainda quando em contradição formal com os graus de parentesco que resultam do sistema conjugal ali imperante. Incitou, então, o governo federal americano a que recolhesse informações sobre o sistema de parentesco os demais povos, de acordo com um formulário e quadros por ele próprio elaborados. e das respostas deduziu: a) que sistema de parentesco indo-americano estava igualmente em vigor na Ásia e, sob uma forma ligeiramente diferente, em muitas tribos da África e da Austrália; 2) que esse sistema tinha a sua mais completa explicação numa forma de matrimônio por grupos, que se encontrava em vias de extinção no Havaí e em outras ilhas australianas; 3) que, nessas mesmas ilhas, ao lado dessa forma de matrimônio, existia um sistema de parentesco que só podia ser explicado por uma forma de matrimônio por grupos, ainda mais primitiva, mas hoje desaparecida.
Morgan publicou os dados coligidos e as conclusões que deles tirou no seu Sistema de consangüinidade e afinidade da família humana, em 1871, levando, assim, a discussão para um campo infinitamente mais amplo. Tomou como ponto de partida os sistemas de parentesco e, reconstituindo as formas de família que lhes correspondiam, abriu novos caminhos à investigação e criou a possibilidade de se ver muito mais longe na pré-história da humanidade. A aceitação desse método anulava as frágeis construções de Mac Lennan que logo defende a sua teoria numa nova edição do Matrimônio Primitivo (Estudos de História Antiga, 1876). Embora ele próprio edifique a história da família baseando-se em simples hipóteses, e de modo extremamente artificial, exige de Lubbock e Morgan não apenas provas de cada uma das suas asseverações, mas provas irrefutáveis, as únicas admitidas pelos tribunais de justiça escoceses. E isso da parte de um homem que, apoiando-se no íntimo parentesco de tio materno e sobrinho, entre os germanos (Tácito, Germânia, cap. XX), e no relato de César de que os bretões tinham as suas mulheres em comum, por grupos de dez ou doze, e em todas as demais referências feitas pelos autores antigos a respeito da posse em comum das mulheres dos bárbaros, deduz, sem vacilar, que reinou a poliandria em todos esses povos! Parece que se está a ouvir um promotor público que se permite todas as liberdades para preparar as suas conclusões, mas exige do defensor a prova mais formal e juridicamente perfeita de cada palavra que este pronuncie.
Afirma que o matrimônio por grupos é pura invenção e, desse modo, fica muito atrás de Bachofen. Segundo ele, os sistemas de parentesco de Morgan não são mais do que simples preceitos de cortesia social, demonstrados pelo fato de que, quando os índios dirigem a palavra a um estrangeiro, a um branco, tratam-no por “irmão” ou “pai”. É como se se afirmasse que as palavras pai, mãe, irmão e irmã são simples formas de abordar uma pessoa, porque padres e abadessas católicos são igualmente tratados por “pai” e “mãe”, e os frades e freiras, da mesma forma que os maçons e os membros dos sindicatos ingleses nas suas reuniões solenes, por “irmão” e “irmã”. Numa palavra: a defesa de Mac Lennan foi extremamente fraca.
Permanecia, contudo, um ponto no qual ele era invulnerável. A antítese das “tribos” exógamas e endógamas, base do seu sistema, longe de estremecer, continuava a ser universalmente reconhecida como o fundamento de toda a história da família. Admitia-se que a demonstração dessa antítese por Mac Lennan era insuficiente, e colidia com os dados que ele próprio apresentava. Mas considerava-se como um evangelho indiscutível a antítese em si, a existência de dois tipos, que mutuamente se excluíam, de tribos autônomas e independentes, num dos quis as mulheres eram tomadas no seio da própria tribo pelos homens, ao passo que no outro isso era terminantemente proibido. Consulte-se, por exemplo, As Origens da Família, de Giraud-Teulon (1874), e ainda a obra de Lubbock, A Origem da Civilização (quarta edição, 1882).
Nessa altura, aparece o trabalho fundamental de Morgan, A Sociedade Antiga (1877), que constitui a base da obra que ofereço ao leitor. Aqui, Morgan desenvolve com plena nitidez o que, em 1871, apenas conjeturava de modo vago. A endogamia e a exogamia não formam antítese alguma; a existência de “tribos” exógamas não está provada, até hoje, em nenhuma parte. Todavia, na época em que ainda dominava o matrimônio por grupos – e provavelmente existiu em toda a parte, num dado tempo – a tribo dividiu-se num certo número de grupos, de gens consangüíneos por linha materna, entre as quais era expressamente proibido o matrimônio, de maneira que, embora os homens de uma gens, e realmente faziam-no, conseguissem suas mulheres dentro de própria tribo, tinham, no entanto, de ir busca-las fora da sua gens.
Dessa maneira, se as gens eram estritamente exógamas, a tribo – que compreendia a totalidade das gens – era, na mesma proporção, endógama. Com isso, ruiu definitivamente o que ainda restava da artificial construção de Mac Lennan.
Mas Morgan não se limitou a isso. A gens dos índios americanos serviu-lhe, ainda, para um segundo e decisivo passo na esfera das suas pesquisas. Nessa gens, organizada de acordo com o direito materno, descobriu a forma primitiva de que saiu a gens ulterior, baseada no direito paterno, como a que encontramos entre os povos civilizados da antiguidade. A gens grega e romana, que tinha sido, até então, um enigma para os historiadores, foi finalmente explicitada, tomando-se como ponto de partida a gens indígena: o que deu uma nova base ao estudo de toda a história primitiva.
A descoberta da primitiva gens de direito materno, como etapa anterior à gens de direito paterno dos povos civilizados, tem, para a história primitiva, a mesma importância que a teoria da evolução de Darwin para a biologia e a teoria da mais-valia, enunciada por Marx, para a economia política.
Essa descoberta permitiu a Morgan esboçar, pela primeira vez, uma história da família, onde pelo menos as fases clássicas da sua evolução, em linhas gerais, são provisoriamente estabelecidas, tanto quanto o permitem os dados atuais. Iniciou-se, evidentemente, uma nova era no estudo da pré-história. Em torno da gens de direito materno, gravita, hoje, toda essa ciência; a partir da sua descoberta, sabe-se em que direção encaminhar as pesquisas e o que estudar, assim como de que modo devem ser classificados os resultados. Por isso, fazem-se atualmente, nesse terreno, progressos muito mais rápidos do que antes de aparecer o livro de Morgan.
Também na Inglaterra, os estudiosos da pré-história geralmente reconhecem agora as descobertas de Morgan, ou melhor, apoderam-se desses conhecimentos. Mas quase nenhum deles reconhece francamente que é a Morgan que devemos esta revolução do pensamento. Sempre que possível, silenciam sobre o livro, e quanto ao próprio Morgan limitam-se a dirigir condescendentes elogios aos seus trabalhos anteriores; esmiúçam com zelo pequenos detalhes da sua exposição, mas omitem obstinadamente qualquer referência às suas descobertas realmente importantes.
A primeira edição da Ancient Society está esgotada; na América, vendem-se mal as publicações desse tipo; na Inglaterra, parece que a publicação desse livro foi sabotada sistematicamente, e a única edição à venda desta obra que marca realmente uma época é a tradução alemã.
Porquê essa reserva, na qual é difícil não perceber uma conspiração de silêncio, sobretudo se se têm em conta as inúmeras citações feitas por simples cortesia e outras provas de camaradagem, tão freqüentes nos trabalhos dos nossos notáveis pesquisadores da pré-história? Será talvez porque Morgan é americano e se torna muito duro para os historiadores ingleses, apesar do zelo muito meritório com que copiam documentos, terem de depender de dois estrangeiros geniais, como Bachofen e Morgan, quanto aos pontos de vista gerais indispensáveis para ordenar e agrupar esses documentos, numa palavra, quanto às suas idéias? O alemão ainda podia ser tolerado, mas o americano! Em presença de um americano, acendem-se os brios patrióticos de todo o inglês; vi, nos Estados Unidos, exemplos interessantíssimos. Acrescente-se a isso que Mac Lennan foi, de certo modo, proclamado oficialmente fundador e chefe da escola pré-histórica inglesa; que, até certo ponto, se considerava de bom-tom na pré-história falar da sua teoria histórica, artificialmente construída, com o mais profundo respeito; ela ia desde o infanticídio até à família de direito materno, passando pela poliandria e pelo matrimônio por rapto. Era considerado grave sacrilégio manifestar a menor dúvida acerca da existência de “tribos” exógamas e endógamas, que se excluíam, absolutamente, umas às outras; portanto, Morgan, ao dissipar como fumo todos esses dogmas consagrados, cometeu uma espécie de sacrilégio. Além disso, destruía esses dogmas com argumentos cuja simples exposição obrigava todo o mundo a admiti-los como evidentes. E os admiradores de Mac Lennan, que até então vacilavam, perplexos, entre a exogamia e a endogamia, sem saberem que caminho tomar, quase se viram obrigados a bater na testa e exclamar: “Como pudemos ser tão estúpidos que não descobrimos tudo isso nós próprios há muito tempo?”
E como se tantos crimes ainda não bastassem para que a escola oficial voltasse friamente as costas a Morgan, este fez transbordar o copo, não somente criticando, de um modo que lembra Fourier, a civilização e a sociedade da produção mercantil, forma fundamental da sociedade dos nossos dias, como também falando de uma transformação dessa sociedade em termos que podiam ter saído dos lábios de Karl Marx. Ele recebeu o que merecia, quando Mac Lennan indignadamente o acusou por ter “uma profunda antipatia pelo método histórico”, e quando o professor Giraud-Teulon endossou essa opinião, em Genebra, em 1884. E, no entanto, o mesmo senhor Giraud-Teulon errava impotentemente em 1874 (Origens da Família) pelo labirinto da exogamia de Mac Lennan, do qual só Morgan o libertaria! Não é necessário detalhar aqui os demais progressos que a pré-história deve a Morgan; no curso deste trabalho, encontrar-se-á o que é necessário saber sobre o assunto. Os catorze anos transcorridos desde o aparecimento da sua obra principal aumentaram bastante o acervo dos nossos dados históricos sobre as sociedades humanas primitivas. Aos antropólogos, exploradores e pesquisadores profissionais da pré-história, juntaram-se estudiosos do direito comparado, que forneceram novos dados e expressaram novos pontos de vista. Com isso, algumas hipóteses de Morgan estremeceram e até caducaram. Os novos dados, porém, não substituíram em parte alguma as suas idéias principais por outras. A ordem por ele introduz\ida na história primitiva subsiste ainda na sua essência. Pode-se mesmo dizer que essa ordem está a ser universalmente reconhecida na mesma medida em que se procura ocultar quem é o autor desse grande progresso (2) .
Friedrich Engels
Londres, 16 de junho de 1891
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(1) Ancient Society, or Researches in the lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization por Lewis H. Morgan, Londres, Mac Millan and Co. 1877. Este livro foi impresso na América e é muito difícil encontra-lo em Londres. O autor morreu há alguns anos. (Nota de Engels)
(2) Ao regressar de Nova York, em setembro de 1888, travei relações com um ex-deputado pela circunscrição de Rochester, o qual tinha conhecido Lewis Morgan. Infelizmente, não soube contar-me grande coisa sobre ele. Morgan vivera em Rochester, dedicando-se exclusivamente aos seus estudos. Um seu irmão tinha sido coronel e ocupara um posto no Ministério da Guerra em Washington; por intermédio desse irmão, conseguira que o governo se interessasse pelas suas pesquisas e fizesse publicar várias das suas obras a expensas do erário público. O meu interlocutor também o havia ajudado, por diversas vezes, quando exercia o seu mandato no Congresso. (Nota de Engels)
I
ESTÁGIOS PRÉ-HISTÓRICOS DA CULTURA

Morgan foi o primeiro que, com conhecimento de causa, tratou de introduzir uma ordem precisa na pré-história da humanidade, e a sua classificação permanecerá certamente em vigor até que uma riqueza de dados muito mais considerável nos obrigue a modifica-la.
Das três épocas principais – estado selvagem, barbárie e civilização – ele só se ocupa, naturalmente, das duas primeiras e da transição para a terceira. Subdivide cada uma das duas nas fases inferior, média e superior, de acordo com os progressos obtidos na produção dos meios de existência; porque, diz, “a habilidade nessa produção desempenha um papel decisivo no grau de superioridade e domínio do homem sobre a natureza: o homem é, de todos os seres, o único que logrou um domínio quase absoluto da produção de alimentos. Todas as grandes épocas de progresso da humanidade coincidem, de modo mais ou menos direto, com as épocas em que se ampliam as fontes de existência”. O desenvolvimento da família realiza-se paralelamente, mas não oferece critérios tão conclusivos para a delimitação dos períodos.
A) ESTADO SELVAGEM
1 – Fase inferior
Infância do gênero humano. Os homens permaneciam, ainda, nos bosques tropicais ou subtropicais e viviam, pelo menos parcialmente, nas árvores; só isso explica que continuassem a existir no meio das grandes feras selvagens. Os frutos, as nozes e as raízes serviam de alimentos; o principal progresso desse período é a formação da linguagem articulada. Nenhum dos povos conhecidos no período histórico estava nessa fase primitiva de evolução. E, embora esse período tenha durado, provavelmente, muitos milênios, não podemos demonstrar a sua existência baseando-nos em testemunhos diretos; mas, se admitirmos que o homem procede do reino animal, devemos aceitar, necessariamente, esse estado transitório.
2 – Fase média
Começa com o emprego dos peixes (incluímos aqui também os crustáceos, moluscos e outros animais aquáticos) na alimentação e com o uso do fogo. Os dois fenômenos são complementares, porque o peixe só pode ser plenamente empregado como alimento graças ao fogo. Com esta nova alimentação, porém, os homens fizeram-se independentes do clima e da localidade; seguindo o curso dos rios e as costas dos mares, puderam, ainda no estado selvagem, espalhar-se sobre a maior parte da superfície da Terra. Os toscos instrumentos de pedra sem polimento da primitiva Idade da Pedra, conhecidos com o nome de paleolíticos, pertencem todos, ou, pelo menos a sua maioria, a esse período e encontram-se espalhados por todos os continentes, constituindo uma prova dessas migrações. O povoamento de novos lugares e o incessante afã de novos descobrimentos, ligados à posse do fogo, que se obtinha pelo atrito, levaram ao emprego de novos alimentos, como as raízes e os tubérculos farináceos, cozidos em cinza quente ou em buracos no chão, e também a caça, que, com a invenção das primeiras armas – a clava e a lança – chegou a ser um alimento suplementar ocasional. Povos exclusivamente caçadores, como se afirma nos livros, quer dizer, povos que tenham vivido apenas da caça, jamais existiram, pois os frutos da mesma eram demasiado problemáticos. Como conseqüência da incerteza quanto às fontes de alimentação, parece ter nascido, nessa época, a antropofagia, para subsistir por muito tempo. Nessa fase média do estado selvagem, encontram-se, ainda nos nossos dias, os australianos e diversos polinésios.
3 – Fase superior
Começa com a invenção do arco e da flecha, graças aos quais os animais caçados vêm a ser um alimento regular e a caça uma das ocupações normais e costumeiras. O arco, a corda e a seta já constituíam um instrumento bastante complexo, cuja invenção pressupõe larga experiência acumulada e faculdades mentais desenvolvidas, bem como o conhecimento simultâneo de diversas outras invenções. Se compararmos os povos que conhecem o arco e a flecha, mas ignoram a arte da cerâmica (com a qual, segundo Morgan, começa a passagem à barbárie), encontramos já alguns indícios de residência fixa em aldeias e certa habilidade na produção de meios de subsistência, vasos e utensílios de madeira, o tecido à mão (sem tear) com fibras de cortiça, cestos de cortiça ou junco trançados, instrumentos de pedra polida (neolíticos). Na maioria dos casos, o fogo e o machado de pedra já permitiam a construção de pirogas feitas com um só tronco de árvore e, em certas regiões, a feitura de pranchas e vigas necessárias à edificação de casas. Todos esses progressos são encontrados, por exemplo, entre os índios do noroeste da América, que conheciam o arco e a flecha, mas não a cerâmica. O arco e a flecha foram, para a época selvagem, o que a espada de ferro foi para a barbárie e a arma de fogo para a civilização: a arma decisiva.
B) A BARBÁRIE
1 – Fase inferior
Inicia-se com a introdução da cerâmica. É possível demonstrar que, em muitos casos, provavelmente em todos os lugares, nasceu o costume de cobrir com argila os cestos ou vasos de madeira, a fim de torna-los refratários ao fogo; logo se descobriu que a argila moldada dava o mesmo resultado, sem necessidade do vaso interior.
Até aqui, temos podido considerar o curso do desenvolvimento como um fenômeno absolutamente geral, válido em determinado período para todos os povos, sem distinção de lugar. Mas, com a barbárie, chegamos a uma época em que se começa a fazer sentir a diferença de condições naturais entre os dois grandes continentes. O traço característico do período da barbárie é a domesticação e criação de animais e o cultivo de plantas. Pois bem: o continente oriental, o chamado mundo antigo, tinha quase todos os animais domesticáveis e todos os cereais próprios para o cultivo, exceto um; o continente ocidental, a América, só tinha um mamífero domesticável, a lhama – e, mesmo assim, apenas numa parte do sul – e um só dos cereais cultiváveis, mas o melhor, o milho. Em virtude dessas condições naturais diferentes, a partir desse momento a população de cada hemisfério desenvolve-se de maneira particular, e os sinais nas linhas de fronteira entre as várias fases são diferentes em cada um dos dois casos.
2 – Fase média
No Leste, começa com a domesticação de animais; no Oeste, com o cultivo de hortaliças por meio de irrigação e com o emprego do tijolo cru (secado ao sol) e da pedra nas construções.
Comecemos pelo Oeste, porque, nessa região, essa fase não tinha sido superada, em parte alguma, até à conquista da América pelos europeus.
Entre os índios da fase inferior da barbárie (figuram aqui todos os que vivem a leste do Mississipi) existia, já na época do seu descobrimento, algum cultivo do milho e, talvez, da abóbora, do melão e de outras plantas de horta, que constituíam parte muito essencial da sua alimentação; eles viviam em casas de madeira, em aldeias protegidas por paliçadas. As tribos do Noroeste, principalmente as do vale do rio Colúmbia, achavam-se, ainda, na fase superior do estado selvagem e não conheciam a cerâmica nem o mais simples cultivo de plantas. Ao contrário, os índios dos chamados “pueblos” no Novo México, os mexicanos, os centro-americanos e os peruanos da época da conquista, encontravam-se na fase média da barbárie; viviam em casas de adobe ou pedra em forma de fortaleza; cultivavam em plantações artificialmente irrigadas o milho e outros vegetais comestíveis, diferentes de acordo com o lugar e o clima, que eram a sua principal fonte de alimentação; e tinham até domesticado alguns animais; os mexicanos, o peru e outras aves; os peruanos, a lhama. Sabiam, além disso, trabalhar os metais, exceto o ferro; por isso ainda não podiam prescindir das suas armas e instrumentos de pedra. A conquista espanhola cortou completamente todo o desenvolvimento autônomo ulterior.
No Leste, a fase média da barbárie começou com a domesticação dos animais para o fornecimento de leite e carne, enquanto que, segundo parece, o cultivo das plantas permaneceu desconhecido ali durante muito tempo. A domesticação de animais, a criação de gado e a formação de grandes rebanhos parecem ter sido a causa do afastamento dos arianos e semitas em relação aos demais bárbaros. Os nomes com que os arianos da Europa e os da Ásia designam os animais ainda são comuns, mas os nomes com que designam as plantas cultivadas são quase sempre diferentes.
A formação de rebanhos levou, nos lugares adequados, à vida pastoril; os semitas, nas pradarias do Tibre e do Eufrates; os arianos, nos campos da Índia, de Oxus e Jaxartes, do Don e do Dnieper. Assim, foi nessas terras ricas em pastos que, pela primeira vez, se conseguiu domesticar animais. Por isso, parece às gerações posteriores que os povos pastores procediam de áreas que, na realidade, longe de terem sido o berço do gênero humano, eram quase inabitáveis para os seus selvagens avós e até para os homens da fase inferior da barbárie. E, ao contrário, desde que esses bárbaros da fase média se habituaram à vida pastoril, jamais lhes ocorreria a idéia de abandonarem voluntariamente as pradarias próximas dos rios e de voltarem aos territórios selváticos onde viviam os seus antepassados. Nem mesmo quando foram impelidos para o Norte e para o Oeste, puderam os semitas e os arianos retirar-se para as regiões florestais do Oeste da Ásia e da Europa antes que o cultivo de cereais, neste solo menos favorável, lhes permitisse alimentar os seus rebanhos, sobretudo no inverno. É mais do que provável que o cultivo de cereais tivesse nascido aqui, primeiramente, da necessidade de proporcionar forragem aos animais, e que só mais tarde tivesse importância para a alimentação do homem.
Talvez a evolução superior dos arianos e dos semitas se deva à abundância de carne e leite na sua alimentação e, particularmente, pela benéfica influência desses alimentos no desenvolvimento das crianças. Com efeito, os índios “pueblos” do Novo México, que se vêem reduzidos a uma alimentação quase exclusivamente vegetal, têm o cérebro menor que o dos índios da fase inferior da barbárie, que comem mais carne e mais peixe. Em todo caso, nessa fase desaparece, pouco a pouco, a antropofagia, que só sobrevive como um rito religioso, ou como um sortilégio, o que dá quase no mesmo.
3 – Fase superior
Inicia-se com a fundição do minério de ferro, e passe à fase da civilização com a invenção da escrita alfabética e seu emprego para registros literários. Esta fase que, como dissemos, só existiu de maneira independente no hemisfério oriental, supera todas as anteriores juntas, quanto aos processos da produção. A ela pertencem os gregos da época heróica, as tribos ítalas de pouco antes da fundação de Roma, os germanos de Tácito, os normandos do tempo dos vikings.
Antes de mais nada, encontramos aqui, pela primeira vez, o arado de ferro puxado por animais, o que torna possível lavrar a terra em grande escala – a agricultura – e produz, dentro das condições então existentes, um aumento praticamente quase limitado dos meios de existência; a par disso, encontramos também a transformação dos bosques em pastagens e terras cultiváveis, coisa impossível em grande escala sem a pá e o machado de ferro. Tudo isso acarretou um rápido aumento da população, que se instala, densamente, em pequenas áreas. Antes do cultivo dos campos, somente circunstâncias excepcionais teriam podido reunir meio milhão de homens sob uma direção central – e é de crer que isso jamais tenha acontecido.
Nos poemas homéricos, principalmente na Ilíada, encontramos a época mais florescente da fase superior da barbárie. A principal herança que os gregos levaram da barbárie para a civilização consiste nos instrumentos de ferro aperfeiçoados, nos foles de forja, no moinho à mão, na roda de olaria, na preparação do azeite e do vinho, no trabalho de metais elevado à categoria de arte, nas carretas e carros de guerra, construção de barcos com pranchas e vigas, nos princípios da arquitetura como uma arte, cidades amuralhadas com torres e ameias, nas epopéias homéricas e em toda a mitologia. Se compararmos com isso as descrições feitas por César, e até por Tácito, dos germanos que se achavam nos umbrais da fase de cultura da qual de Homero se dispunham a passar para um estádio mais elevado, veremos como foi esplêndido o desenvolvimento da produção na fase superior da barbárie.
O quadro do desenvolvimento da humanidade através do estado selvagem e da barbárie, até aos começos da civilização – quadro que acabo de esboçar, seguindo Morgan – já é bastante rico em traços característicos novos e, sobretudo, indiscutíveis, porquanto diretamente tirados da produção. No entanto, parecerá obscuro e incompleto se o compararmos com aquele que se há de descortinar diante de nós, no fim da nossa viagem; só então será possível apresentar com toda a clareza a passagem da barbárie à civilização e o forte contraste entre as duas. Por ora, podemos generalizar a classificação de Morgan da forma seguinte: Estado Selvagem – Período em que predomina a apropriação de produtos da natureza, prontos para serem utilizados; as produções artificiais do homem são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação. Barbárie – Período em que aparecem a criação de gado e a agricultura por meio do trabalho humano. Civilização – Período em que o homem continua aprendendo a elaborar os produtos naturais, período da indústria propriamente dita e da arte.
II
A FAMÍLIA

Morgan, que passou a maior parte da sua vida entre os iroqueses – ainda hoje estabelecidos no Estado de Nova York – e foi adotado por uma das suas tribos ( a dos senekas), encontrou um sistema de consangüinidade, vigente entre eles, que entrava em contradição com os seus reais vínculos de família. Reinava ali aquela espécie de matrimônio facilmente dissolúvel por ambas as partes, a que Morgan chamava “família sindiásmica”. A descendência de semelhante casal era patente e reconhecida por todos; nenhuma dúvida podia surgir quanto às pessoas a quem se aplicavam os nomes de pai, mãe, filho, filha, irmão ou irmã. Mas, o uso atual destes nomes constituía uma contradição. O iroquês não somente chama filhos e filhas aos seus próprios, mas, ainda, aos dos seus irmãos, os quais, por sua vez, lhe chamam pai. Os filhos da suas irmãs, pelo contrário, são tratados por ele como sobrinhos e sobrinhas, os quais o tratam por tio. Inversamente, a iroquesa chama filhos e filhas aos das suas irmãs. da mesma forma que os próprios, e aqueles, como estes, chamam-lhe mãe. Mas chama sobrinhos e sobrinhas aos filhos dos seus irmãos, os quais a tratam por tia. Do mesmo modo, os filhos de irmãos tratam-se entre si, por irmãos e irmãs, sucedendo o mesmo com os filhos de irmãs. Os filhos de uma mulher e os de seu irmãos tratam-se reciprocamente por primos e primas. E não são simples nomes, mas a expressão das idéias que se tem do próximo e do distante, do igual ou do desigual no parentesco consangüíneo; idéias que servem de base a um sistema de parentesco inteiramente elaborado e capaz de expressar muitas centenas de diferentes relações de parentesco de um único indivíduo. Mais ainda: esse sistema encontra-se em vigor não apenas entre todos os índios da América (até agora não foram encontradas exceções), como também existe, quase sem nenhuma modificação, entre os aborígines da Índia, as tribos dravidianas do Dekan e as tribos gauras do Industão. As expressões de parentesco dos tamilas do sul da Índia e dos senekas-iroqueses do Estado de Nova York ainda hoje coincidem em mais de duzentas relações de parentesco diferentes. E, nessas tribos da Índia, como entre os índios da América, as relações de parentesco resultantes da vigente forma de família estão em contradição com o sistema de parentesco.
Como explicar esse fenômeno? Se tomarmos em consideração o papel decisivo da consangüinidade no regime social de todos os povos selvagens e bárbaros, a importância de tão difundido sistema não pode ser explicada com mero palavreado. Um sistema que prevalece em toda a América, que existe na Ásia em povos de raças completamente diferentes, e do qual se encontram formas mais ou menos modificadas por toda a parte na África e na Austrália, tem que ser explicado historicamente – e não com frases ocas, como quis fazer, por exemplo, Mac Lennan. As designações “pai”, “filho”, “irmão”, “irmã”, não são simples títulos honoríficos, mas ao contrário, implicam sérios deveres recíprocos, perfeitamente definidos, e cujo conjunto forma uma parte essencial do regime social desses povos. E a explicação foi encontrada. Nas ilhas Sandwich (Havaí), ainda havia, na primeira metade deste século, uma forma de família em que existiam pais e mães, irmãos e irmãs, filhos e filhas, tios e tias, sobrinhos e sobrinhas do sistema de parentesco dos índios americanos e dos aborígines da Índia. Mas – coisa estranha! – o sistema de parentesco em vigor no Havaí também não correspondia à forma de família ali existente. Nesse país, todos os filhos e irmãos e irmãs, sem exceção, são irmãos e irmãs entre si e são considerados filhos comuns, não só da sua mãe e das irmãs dela, ou do seu pai e dos irmãos dele, mas também de todos os irmãos e irmãs de seus pais e de suas mães, sem distinção. Portanto, se o sistema americano de parentesco pressupõe uma forma de família mais primitiva – que não existe mais na América, mas que ainda encontramos no Havaí – o sistema havaiano, por seu lado, indica-nos uma forma de família ainda mais rudimentar, que, se bem que não seja encontrada hoje em parte alguma, deve ter existido, pois, de contrário, não poderia ter nascido o sistema de parentesco que a ela corresponde. “A família”, diz Morgan, “é o elemento ativo; nunca permanece estacionária, mas passa de uma forma inferior a uma forma superior, à medida que a sociedade evolui de um grau mais baixo para outro mais elevado. Os sistemas de parentesco, pelo contrário, são passivos; só depois de longos intervalos, registram os progressos feitos pela família, e não sofrem uma modificação radical senão quando a família já se modificou radicalmente.” Karl Marx acrescenta: “O mesmo acontece, em geral, com os sistemas políticos, jurídicos, religiosos e filosóficos”. Ao passo que a família prossegue vivendo, o sistema de parentesco fossiliza-se; e enquanto este continua de pé pela força do costume, a família ultrapassa-º Contudo, pelo sistema de parentesco que chegou historicamente até aos nossos dias, podemos concluir que existiu uma forma de família a ele correspondente, já extinta, e podemos tirar esta conclusão com a mesma segurança com que Cuvier, pelos ossos do esqueleto de um animal achados perto de Paris, pôde concluir que pertenciam a um marsupial e que os marsupiais, agora extintos, viveram ali antigamente.
Os sistemas de parentesco e formas de família, a que nos referimos, diferem dos atuais no seguinte: cada filho tinha vários pais e mães. No sistema americano de parentesco, ao qual corresponde a família havaiana, um irmão e uma irmã não podem ser pai e mãe de um mesmo filho; o sistema de parentesco havaiano, pelo contrário, pressupõe uma família em que esta é a regra. Encontramo-nos frente a uma série de formas de família que estão em contradição direta com as consideradas até hoje como únicas válidas. A concepção tradicional conhece apenas a monogamia, ao lado da poligamia de um homem e talvez da poliandria de uma mulher, silenciando – como convém ao filisteu moralizante – sobre o fato de que na prática aquelas barreiras impostas pela sociedade oficial são tácita e inescrupulosamente transgredidas. O estudo da história primitiva revela-nos, ao invés disto, um estado de coisas em que os homens praticam a poligamia e as suas mulheres a poliandria, e em que, por conseqüência, os filhos de uns e outros tinham que ser considerados comuns. É esse estado de coisas, por seu lado, que, passando por uma série de transformações, resulta na monogamia. Essas modificações são de tal ordem que o círculo compreendido na união conjugal comum, e que era muito amplo na sua origem, se estreita pouco a pouco até que, por fim, abrange exclusivamente o casal isolado, que predomina hoje.
Reconstituindo retrospectivamente a história da família, Morgan chega, de acordo com a maioria dos seus colegas, à conclusão de que existiu uma época em que imperava, no seio da tribo, o comércio sexual promíscuo, de modo que cada mulher pertencia igualmente a todos os homens e cada homem a todas as mulheres. No século passado, já se havia feito menção a esse estado primitivo, mas apenas de modo geral; Bachofen foi o primeiro – e este é um dos seus maiores méritos – que o levou a sério e procurou os seus vestígios nas tradições históricas e religiosas. Sabemos hoje que os vestígios descobertos por ele não conduzem a nenhum estado social de promiscuidade dos sexos e sim a uma forma muito posterior: o matrimônio por grupos. Aquele estado social primitivo, admitindo-se que tenha realmente existido, pertence a uma época tão remota que não podemos esperar encontrar provas diretas da sua existência, nem mesmo entre os fósseis sociais, nos selvagens mais atrasados. Cabe precisamente a Bachofen o mérito de ter posto no primeiro plano o estudo dessa questão. (1)
Ultimamente, passou a ser moda negar esse período inicial na vida sexual do homem. Pretendem poupar à humanidade essa “vergonha”. E, para isso, apóiam-se não apenas na falta de provas diretas, mas, principalmente, no exemplo do resto do reino animal. Neste, Letourneau (A Evolução do Matrimônio e da Família, 1888) foi buscar numerosos fatos, de acordo com os quais a promiscuidade sexual completa só é própria das espécies mais inferiores. Mas, de todos esses fatos, só posso tirar uma conclusão: não provam coisa alguma quanto ao homem e suas primitivas condições de existência. A união por longo tempo entre os vertebrados pode ser explicada, de modo cabal, por motivos fisiológicos; nas aves, por exemplo, deve-se à necessidade de proteção à fêmea enquanto esta choca os ovos; os exemplos de fiel monogamia que se encontram entre as aves nada provam quanto ao homem, pois o homem não descende da ave. E, se a estrita monogamia é o ápice da virtude, então a palma deve ser dada à tênia solitária que, em cada um dos seus cinqüenta a duzentos anéis, possui um aparelho sexual masculino e feminino completo, e passa a vida inteira coabitando consigo mesma em cada um desses anéis reprodutores.
Mas, se nos limitarmos aos mamíferos, neles encontramos todas as formas de vida sexual: a promiscuidade, a união por grupos, a poligamia, a monogamia; só falta a poliandria, à qual apenas os seres humanos podiam chegar. Mesmo os nossos parentes mais próximos, os quadrúmanos, apresentam todas as variedades possíveis de ligação entre machos e fêmeas; e se nos restringirmos a limites ainda mais estreitos, considerando exclusivamente as quatro espécies de macacos antropomorfos, deles Letourneau só nos pode dizer que vivem ora na monogamia ora na poligamia; ao passo que Saussure, segundo Giraud-Teulon, declara que são monógamos. Ficam longe de qualquer prova, também, as recentes afirmações de Westermarck (A História do Matrimônio Humano, 1891) sobre a monogamia do macaco antropomorfo. Em resumo, os dados são de tal ordem que o honrado Letourneau está de acordo em que “não há nos mamíferos relação alguma entre o grau de desenvolvimento intelectual e a forma de união sexual”. E Espinas (As Sociedades Animais, 1877) diz, com franqueza: “A horda é o mais elevado dos grupos sociais que pudemos observar nos animais. Parece composta de famílias, mas, já em sua origem, a família e a horda são antagônicas, desenvolvem-se em razão inversa uma da outra”.
Pelo que acabamos de ver, nada de positivo sabemos sobre a família e outros agrupamentos sociais dos macacos antropomorfos; os dados que possuímos contradizem-se frontalmente e não há por que estranha-lo. Como são contraditórias, e necessitadas de serem examinadas e comprovadas criticamente, as notícias que temos das tribos humanas no estado selvagem! Pois bem, as sociedades dos macacos são muito mais difíceis de observar que as dos homens. Por isso, enquanto não dispusermos de uma informação ampla, devemos recusar qualquer conclusão proveniente de dados que não inspirem crédito.
Entretanto, o trecho de Espinas que citamos dá-nos melhor ponto de apoio para a investigação. A horda e a família, nos animais superiores, não são completamente recíprocos e sim fenômenos antagônicos. Espinas descreve bem de que modo o ciúme dos machos no período do cio relaxa ou suprime momentaneamente os laços sociais da horda. “Onde a família está intimamente unida, não vemos formarem-se hordas, salvo raras exceções. Pelo contrário, as hordas constituem-se quase naturalmente onde reinam a promiscuidade ou a poligamia. . . Para que surja a horda, é necessário que os laços familiares se tenham relaxado e o indivíduo tenha recobrado a sua liberdade. É por isso que só raramente encontramos bandos organizados entre os pássaros. . . Por outro lado, é nos mamíferos que vamos encontrar sociedades mais ou menos organizadas, justamente porque o indivíduo neste caso não é absorvido pela família. . . Assim, pois, a consciência coletiva da horda não pode ter na sua origem um inimigo maior do que a consciência coletiva da família. Não hesitamos em dize-lo: se se desenvolveu uma sociedade superior à família, isso foi devido somente ao fato de que a ela se incorporaram famílias profundamente alteradas, conquanto isso não exclua a possibilidade de que, precisamente por este motivo, aquelas famílias possam mais adiante reconstituir-se sob condições infinitamente mais favoráveis”. (Espinas, cap. 1, citado por Giraud-Teulon em Origens do Matrimônio e da Família, 1884, págs. 518-520).
Como vemos, as sociedades animais têm um certo valor para tirarmos conclusões concernentes às sociedades humanas, mas somente num sentido negativo. Pelo que sabemos, o vertebrado superior apenas conhece duas formas de família: a poligâmica e a monogâmica. Em ambos os casos só se admite um macho adulto, um marido. Os ciúmes do macho, a um só tempo laço e limite da família, opõem-na à horda; a horda, forma social mais elevada, torna-se impossível em certas ocasiões, e em outras, relaxa-se ou dissolve-se durante o período do cio; na melhor das hipóteses, o seu desenvolvimento vê-se contido pelos ciúmes dos machos. Isso é suficiente para provar que a família animal e a sociedade humana primitiva são coisas incompatíveis; que os homens primitivos, na época em que lutavam por sair da animalidade, ou não tinham nenhuma noção de família ou, quando muito, conheciam uma forma não encontrada entre animais. Um animal tão sem meios de defesa como aquele que se estava a tornar homem pôde sobreviver em pequeno número, inclusive numa situação de isolamento, em que a forma de sociabilidade mais evoluída era o casal, forma que Westmarck, baseando-se em informações de caçadores, atribui ao gorila e ao chimpanzé. Mas, para sair da animalidade, para realizar o maior progresso que a natureza conhece, era preciso mais um elemento: substituir a falta de poder defensivo do homem isolado pela união de forças e pela ação comum da horda. Partindo das condições conhecidas em que vivem hoje os macacos antropomorfos, seria simplesmente inexplicável a passagem à humanidade; estes macacos dão-nos mais a impressão de linhas colaterais desviadas e em vias de extinguir-se, e que, no mínimo, se encontram em processo de decadência. Isso basta para se rechaçar todo o paralelo entre as suas formas de família e as do homem primitivo.
A tolerância recíproca entre os machos adultos e a ausência de ciúmes constituíram a primeira condição para que se pudessem formar estes grupos numerosos e estáveis, em cujo seio, unicamente, podia operar-se a transformação do animal em homem. E, com efeito, que encontrarmos como forma mais antiga e primitiva da família, cuja existência indubitável nos demonstra a História, e que ainda hoje podemos estudar em certos lugares? O matrimônio por grupos, a forma de casamento em que grupos inteiros de homens e grupos inteiros de mulheres, se pertencem mutuamente, deixando bem pouca margem para os ciúmes. Além disso, numa fase posterior de desenvolvimento, encontrarmos a poliandria, forma excepcional, que exclui, em medida ainda maior, os ciúmes, e que, por isso, é desconhecida entre os animais. Todavia, como as formas de matrimônio por grupos que conhecemos são acompanhados de condições tão peculiarmente complicadas que nos indicam, necessariamente, a existência de formas anteriores mais simples de relações sexuais e assim, em última análise, um período de promiscuidade correspondente à passagem da animalidade à humanidade – as referências aos matrimônios animais conduzem-nos, de novo, ao mesmo ponto de onde devíamos ter partido de uma vez para sempre.
Que significam relações sexuais sem entraves? Significam que não existiam os limites proibitivos vigentes hoje ou numa época anterior para essas relações. Já vimos caírem as barreiras dos ciúmes. Se algo pôde ser estabelecido irrefutavelmente, foi que o ciúme é em sentimento que se desenvolveu relativamente tarde. O mesmo acontece com a idéia de incesto. Não só na época primitiva irmão e irmã eram marido e mulher, como também ainda hoje, em muitos povos, é lícito o comércio sexual entre pais e filhos. Bancroft (As Raças Nativas dos Estados da Costa do Pacífico na América do Norte, 1875, tomo I) testemunha a existência destas relações entre os kaviatos do Estreito de Behring, os kadiakos das cercanias do Alasca e os tinnehs do interior da América do Norte inglesa; Letourneau reuniu numerosos fatos idênticos entre os índios chipevas, os kukus do Chile, os caribes, os karens da Indochina; e isso deixando de lado o que contam os antigos gregos e romanos a respeito dos partos, dos persas, dos citas e dos hunos, etc. Antes da invenção do incesto (porque é uma invenção e das ais valiosas), o comércio sexual entre pais e filhos não podia ser mais repugnante do que entre outras pessoas de gerações diferentes, coisa que ocorre nos nossos dias até nos países mais católicos, sem produzir grande horror. Velhas “donzelas” de mais de setenta anos casam-se, se não bastante ricas, com jovens de uns trinta anos. Mas, se despojarmos as formas de família mais primitivas que conhecemos das concepções de incesto que lhes correspondem (concepções completamente diferentes das nossas e muitas vezes em contradição direta com elas), chegaremos a uma forma de relações carnais que só pode ser chamada de promiscuidade sexual, no sentido de que ainda não existiam as restrições impostas mais tarde pelo costume. Mas disto não se deduz, de modo algum, que na prática quotidiana imperasse inevitavelmente a promiscuidade. As uniões temporárias por pares não ficam excluídas, em absoluto, e ocorrem, na maioria dos casos, mesmo no matrimônio por grupos.
E se Westermarck, o último a negar este estado primitivo, dá o nome de matrimônio a todo o caso em que os dois sexos convivem até ao nascimento de um pimpolho, pode-se dizer que tal matrimônio podia muito bem verificar-se nas condições da promiscuidade sexual sem contradize-la em nada, isto é, sem contradizer a inexistência de barreiras impostas pelo costume às relações sexuais. É verdade que Westermarck parte do ponto de vista de que “a promiscuidade supõe a supressão das inclinações individuais”, de tal sorte que “a sua forma por excelência é a prostituição”. Parece-me, ao contrário, que será impossível formar a menor idéia das condições primitivas enquanto elas forem observadas através da janela de um lupanar. Voltaremos a falar desse assunto quando tratarmos do matrimônio por grupos.
Segundo Morgan, deste estado primitivo de promiscuidade, provavelmente bem cedo, formaram-se:
1 – A família consangüínea
A primeira etapa da família. Nela, os grupos conjugais classificam-se por gerações: todos os avôs e avós, nos limites da família, são maridos e mulheres entres si; o mesmo sucede com seus filhos, quer dizer, com os pais e mães; os filhos destes, p or sua vez, constituem o terceiro círculo de cônjuges comuns; e os seus filhos, isto é, os bisnetos dos primeiros, o quarto círculo. Nesta forma de família, os ascendentes e descendentes, os pais e os filhos, são os únicos que, reciprocamente, estão excluídos dos direitos e deveres (poderíamos dizer) do matrimônio. Irmãos e irmãs, primos e primas, em primeiro, segundo e restantes graus, são todos, entre si, irmãos e irmãs, e por isso mesmo maridos e mulheres uns dos outros. O vínculo de irmão e irmã pressupõe, por si, nesse período, a relação carnal mútua (2).
Exemplo típico de tal família seriam os descendentes de um casal, em cada uma de cujas gerações sucessivas todos fossem entre si irmãos e irmãs e, por isso mesmo, maridos e mulheres uns dos outros.
A família consangüínea desapareceu. Nem mesmo os povos mais atrasados de que fala a história apresentam qualquer exemplo seguro dela. Mas o que nos obriga a reconhecer que ela deve ter existido é o sistema de parentesco havaiano, ainda vigente em toda a Polinésia, e que expressa graus de parentesco consangüíneo que só puderam surgir com essa forma de família; e somos levados à mesma conclusão por todo o desenvolvimento ulterior da família, que pressupõe essa forma como estágio preliminar necessário.
2 – A família punaluana
Se o primeiro progresso na organização da família consiste em excluir os pais e filhos das relações sexuais recíprocas, o segundo foi a exclusão dos irmãos. Esse progresso foi infinitamente mais importante que o primeiro e, também, mais difícil, dada a maior igualdade nas idades dos participantes. Foi ocorrendo pouco a pouco, provavelmente começando pela exclusão dos irmãos uterinos (isto é, irmãos por parte da mãe), a princípio em casos isolados e depois, gradativamente, como regra geral (no Havaí ainda havia exceções no presente século) e acabando pela proibição do matrimônio até entre irmãos colaterais (quer dizer, segundo os nossos atuais nomes de parentesco, entre primos carnais, primos em segundo e terceiro graus). Segundo Morgan, esse progresso constitui “uma magnífica ilustração de como atua o princípio da seleção natural”. Sem dúvida, nas tribos onde este progresso limitou a reprodução consangüínea, deve ter havido um progresso mais rápido e mais completo que naquelas onde o matrimônio entre irmãos e irmãs continuou a ser uma regra e uma obrigação. Até que ponto se fez sentir a ação desse progresso demonstra-o a instituição da gens, nascida diretamente dele e que ultrapassou em muito os seus fins iniciais. A gens formou a base da ordem social da maioria, senão da totalidade, dos povos bárbaros do mundo, e dela passamos, na Grécia e em Roma, sem transições, à civilização.
Cada família primitiva teve que cindir-se, o mais tardar depois de algumas gerações. A economia doméstica do comunismo primitivo, que domina exclusivamente ainda grande parte da fase média da barbárie, prescrevia uma extensão máxima da comunidade familiar, variável segundo as circunstâncias, porém, mais ou menos determinada em cada localidade. Mas, apenas surgida a idéia da impropriedade da união sexual entre filhos da mesma mãe, ela deve ter exercido a sua influência na cisão das velhas comunidades domésticas (Hausgemeinden) e na formação de outras novas comunidades, que não coincidiam necessariamente com o grupo de famílias. Um ou mais grupos de irmãs convertiam-se no núcleo de uma comunidade, e os seus irmãos carnais, no núcleo de outra. Da família consangüínea saiu, dessa ou de outra maneira análoga, a forma de família à qual Morgan dá o nome de família punaluana. De acordo com o costume havaiano, certo número de irmãs carnais ou mais afastadas (isto é, primas em primeiro, segundo e outros graus) eram mulheres comuns de maridos comuns, dos quais ficavam excluídos, entretanto, os seus próprios irmãos. Esses irmãos, por seu lado, não se chamavam entre si irmãos, pois já não tinham necessidade de sê-lo, mas “punalua”, quer dizer, companheiro íntimo, como quem diz “associé”. De igual modo, uma série de irmãos uterinos ou mais afastados tinham em casamento comum certo número de mulheres, com exclusão das suas próprias irmãs, e essas mulheres chamavam-se entre si “punalua”. Este é o tipo clássico de uma formação de família (Familien-formation) que sofreu, mais tarde, uma série de variações, e cujo traço característico essencial era a comunidade recíproca de maridos e mulheres no seio de um determinado círculo familiar, do qual foram excluídos, todavia, no princípio, os irmãos carnais e, mais tarde, também os irmãos mais afastados das mulheres, ocorrendo o mesmo com as irmãs dos maridos.
Esta forma de família indica-nos agora, com a mais perfeita exatidão, os graus de parentesco, tal como os expressa o sistema americano. Os filhos das irmãs de minha mãe são também filhos desta, assim como os filhos dos irmãos de meu pai o são também deste; e todos eles são meus irmãos e irmãs. Mas os filhos dos irmãos de minha mãe são sobrinhos e sobrinhas desta, assim como os filhos das irmãs de meu pai são sobrinhos e sobrinhas deste; e todos são meus primos e primas. Com efeito, enquanto os maridos das irmãs de minha mãe são também maridos desta e, igualmente, as mulheres dos irmãos de meu pai são também mulheres deste – de direito, se nem sempre de fato – a proibição das relações sexuais entre irmãos e irmãs pela sociedade levou à divisão dos filhos de irmãos e irmãs, até então indistintamente considerados irmãos e irmãs, em duas classes: uns continuam a ser, como antes, irmãos e irmãs (colaterais); outros – de um lado os filhos dos irmãos, do outro os filhos das irmãs – não podem continuar como irmãos e irmãs, já não podem ter progenitores comuns, nem o pai , nem a mãe, nem os dois juntos; e por isso torna-se necessária, pela primeira vez, a categoria dos sobrinhos e sobrinhas, dos primos e primas. O sistema de parentesco americano, que parece inteiramente absurdo em qualquer forma de família que, de um ou outro modo, se baseia na monogamia, explica-se de maneira racional e justifica-se, naturalmente, até nos seus mais pequenos pormenores, pela família punaluana. A família punaluana, ou qualquer forma análoga, deve ter existido pelo menos na mesma medida em que prevaleceu este sistema de parentesco.
Essa forma de família, cuja existência no Havaí está demonstrada, teria sido também demonstrada provavelmente em toda a Polinésia se os piedosos missionários, tal como no passado os frades espanhóis na América, tivessem podido ver nessas relações anticristãs algo mais que uma simples “abominação” (3). Quando César nos diz dos bretões – os quais, naquele tempo, estavam na fase média da barbárie – que “cada dez ou doze homens têm mulheres comuns, com a particularidade de, na maioria dos casos, serem irmãos e irmãs, e pais e filhos”, a melhor explicação que se pode dar para isso é o matrimônio por grupos. As mães bárbaras não têm dez ou doze filhos em idade de manter mulheres comuns; mas o sistema americano de parentesco, que corresponde à família punaluana, dá origem a um grande número de irmãos, posto que todos os primos carnais ou remotos de um homem são seus irmãos. É possível que a expressão “pais com seus filhos” seja um equívoco de César; esse sistema, entretanto, não exclui absolutamente que se encontrem num mesmo grupo conjugal pai e filho, mãe e filha, mas apenas que nele se encontrem pai e filha, mãe e filho. Essa forma de família fornece-nos, também, a explicação mais simples para os relatos de Heródoto e de outros escritores antigos sobre a comunidade de mulheres entre os povos selvagens e bárbaros.
O mesmo se pode dizer do que Watson e Kaye contam acerca dos tikus do Audh, ao norte do Ganges, no seu livro A População da Índia (1868/1872): “Coabitam (quer dizer, fazem vida sexual) quase sem distinção, em grandes comunidades; e quando dois indivíduos se consideram marido e mulher, o vínculo que os une é puramente nominal”.
Na imensa maioria dos casos, a instituição da gens parece ter saído diretamente da família punaluana. É certo que o sistema de classes australianos também representa um ponto de partida para a gens; os australianos têm a gens, mas ainda não têm a família punaluana, e sim uma forma mais primitiva de grupo conjugal.
Em todas as formas de família por grupos, não se pode saber com certeza quem é o pai de uma criança, mas sabe-se quem é a mãe. Ainda que ele chame filhos seus a todos os da família comum, e tenha deveres maternais para com eles, nem por isso deixa de distinguir seus próprios filhos entre os demais. É claro, portanto, que em toda parte onde existe o matrimônio por grupos a descendência só pode ser estabelecida do lado materno, e, por conseguinte, apenas se reconhece a linhagem feminina. Encontram-se nesse caso, de fato, todos os povos selvagens e todos os povos que se acham na fase inferior da barbárie; ter sido o primeiro a fazer essa descoberta foi a segunda grande façanha de Bachofen. Ele designa o reconhecimento exclusivo da filiação materna e as relações de herança dele deduzidas com o nome de direito materno. Conservo essa expressão por motivo de brevidade, mas ela é inexata, porque naquela fase da sociedade ainda não existia direito, no sentido jurídico da palavra.
Tomemos agora, na família punaluana, um dos dois grupos típicos concretamente, o de uma série de irmãs carnais e colaterais (isto é, descendentes de irmãs carnais em primeiro, segundo e outros graus), com seus filhos e seus irmãos carnais ou colaterais por linha materna (os quais, de acordo com nossa premissa, não são seus maridos), e teremos exatamente o círculo dos indivíduos que, mais adiante, aparecerão membros de uma gens, na forma primitiva desta instituição. Todos têm por tronco comum uma mãe e, em virtude dessa origem, os descem dentes femininos formam gerações de irmãs. Porém, os maridos de tais irmãs já não podem ser seus irmãos; logo, não podem descender daquele tronco materno e não pertencem a este grupo consangüíneo, que mais tarde chega a constituir a gens, embora seus filhos pertençam a tal grupo, pois a descendência por linha materna é a única decisiva, por ser a única certa. Uma vez proibidas as relações sexuais entre todos os irmãos e irmãs - inclusive os colaterais mais distantes – por linha materna, o grupo de que falamos se transforma numa gens, isto é, constitui-se num círculo fechado de parentes consangüíneos por linha feminina, que não se podem casar uns com os outros; e, a partir de então, este círculo se consolida cada vez mais por meio de instituições comuns, de ordem social e religiosa, que o distingue das outras gens da mesma tribo. Adiante voltaremos, com maiores detalhes, a essa questão. Se considerarmos, contudo, que a gens surge da família punaluana, não só necessária mas naturalmente, teremos fundamento para considerar quase indubitável a existência anterior dessa forma de família em todos os povos em que podem ser comprovadas instituições gentílicas, isto é, em quase todos os povos bárbaros e civilizados.
Quando Morgan escreveu seu livro, nossos conhecimentos sobre o matrimônio por grupos eram muito limitados. Sabia-se de alguma coisa do matrimônio por grupos entre os australianos organizados em classes e, além disso, Morgan já havia publicado em 1871 todos os dados que possuía a respeito da família punaluana no Havaí. A família punaluana propiciava, por um lado, a explicação completa do sistema de parentesco vigente entre os índios americanos e que tinha sido o ponto de partida de todas as investigações de Morgan; por outro lado, era a base para a dedução da gens do direito materno; e, finalmente, era um grau de desenvolvimento muito mais alto que o das classes australianas. Compreende-se, pois, que Morgan a concebesse como estágio de desenvolvimento imediatamente anterior ao matrimônio sindiásmico e lhe atribuísse uma difusão geral nos tempos primitivos. Desde então, chegamos a conhecer outra série de formas de matrimônio por grupos, e agora sabemos que Morgan foi longe demais nesse ponto. No entanto, em sua família punaluana, ele teve a felicidade de encontrar a mais elevada, a clássica forma do matrimônio por grupos, a forma que explica de maneira mais simples a passagem a uma forma superior.
Se houve um considerável enriquecimento nas noções que temos do matrimônio por grupos, devemo-lo, sobretudo, ao missionário inglês Lorimer Fison, que, durante anos, estudou essa forma de família em sua terra clássica, a Austrália. Entre os negros australianos do monte Cambier, no sul da Austrália, foi onde encontrou o mais baixo grau de desenvolvimento. A tribo inteira divide-se, ali, em duas grandes classes: os krokis e os komites. São terminantemente proibidas as relações sexuais no seio de cada uma dessas classes; em compensação, todo homem de uma dessas classes é marido nato de toda mulher da outra, e reciprocamente. Não são os indivíduos, mas os grupos inteiros, que estão casados uns com os outros, classe com classe. E note-se que ali não há, em parte alguma, restrições por diferenças de idade ou de consangüinidade especial, salvo a determinada pela divisão em duas classes exógamas. Um kroki tem, de direito, por esposa, toda mulher komite; e, como sua própria filha, como filha de uma komite, é também komite, em virtude do direito materno, é, por causa disso, esposa nata de todo kroki, inclusive de seu pai. Em qualquer caso, a organização por classes, tal como se nos apresenta, não opõe a isto nenhum obstáculo. Assim, pois, ou essa organização apareceu em uma época em que, apesar da tendência instintiva de se limitar o incesto, não se via ainda qualquer mal nas relações sexuais entre filhos e pais - e, então, o sistema de classes deve ter nascido diretamente das condições do intercurso sexual sem restrições - ou, ao contrário, quando se criaram as classes, estavam já proibidas, pelo costume, as relações sexuais entre pais e filhos, e, então, a situação atual assinala a existência anterior da família consangüínea e constitui o primeiro passo dado para dela sair. Esta última hipótese é a mais verossímil. Que eu saiba, não se encontram exemplos de união conjugal entre pais e filhos na Austrália; e, além disso, a forma posterior da exogamia, a gens baseada no direito materno, pressupõe tacitamente a proibição desse comércio como coisa que havia sido já estabelecida antes do seu aparecimento.
O sistema das duas classes encontra-se não só na região do monte Gambier, ao sul da Austrália, mas, ainda, nas margens do rio Darling, mais a leste, e em Queensland, no nordeste, de modo que está bastante difundido. Este sistema apenas exclui os matrimônios entre irmãos e imãs, entre filhos de irmãos e entre filhos de irmãs por linha materna, porque estes pertencem à mesma classe; os filhos de irmão e irmã, ao contrário, podem casar-se uns com os outros. Um novo passo no sentido da proibição do casamento entre consangüíneos observamos entre os kamilarois, às margens do Darling, na Nova Gales do Sul, onde duas classes originárias se cindiram em quatro, e onde cada uma dessas quatro classes casa-se, inteira, com outra determinada. As duas primeiras classes são esposos natos, uma da outra; mas, segundo a mãe pertença à primeira ou à segunda, passam os filhos à terceira ou à quarta. Os filhos destas duas últimas classes, igualmente casadas uma com a outra, pertencem, de novo, à primeira e à segunda. De sorte que sempre uma geração pertence à primeira e à segunda classe, a geração seguinte, à terceira e à quarta, e a que vem imediatamente depois, de novo à primeira e à segunda classe. Do que se deduz que filhos de irmão e irmã (por linha materna) não podem ser marido e mulher, porém podem sê-lo os netos de irmão e irmã. Este tão complicado sistema enreda-se ainda mais, pois enxerta-se nele, mais tarde, a gens baseada no direito materno; nesse ponto, contudo, não podemos, aqui, entrar em minúcias. Observamos, pois, que a tendência para impedir o matrimônio entre consangüíneos manifesta-se aqui e ali, mas de maneira espontânea, em tentativas, sem ume, consciência clara dos fins objetivados.
O matrimônio por grupos, que, na Austrália, é também um matrimônio por classes, a união conjugal em massa de toda uma classe de homens, freqüentemente dispersa pelo continente inteiro, com toda uma classe de mulheres não menos dispersa, esse matrimônio por grupos, visto de perto, não é monstruoso como o figura a fantasia dos filisteus, acostumados à sociedade da prostituição. Ao contrário, transcorreram muitos anos antes de que se viesse a suspeitar de sua existência, a qual, na verdade, foi posta de novo em dúvida só muito recentemente. Aos olhos do observador superficial, parece uma monogamia de vínculos bastante frouxos e, em alguns lugares, uma poligamia acompanhada de infidelidade ocasional. É necessário consagrar-lhe anos de estudo, como fizeram Fison e Howitt, para descobrir nessas relações conjugais ( que na prática, recordam muito bem à generalidade dos europeu os costumes de suas pátrias) a lei em virtude da qual o negro australiano, a milhares de quilômetros de seu lar, nem por isso deixa de encontrar, entre gente cuja linguagem não compreende - e amiúde em cada acampamento, em cada tribo - mulheres que se lhe entregam voluntariamente, sem resistência; lei por força da qual quem tem várias mulheres cede uma a seu hóspede para ele passar a noite. Ali, onde o europeu vê imoralidade e ausência de qualquer lei, reina, de fato, uma lei rigorosa. As mulheres pertencem à classe conjugal do forasteiro e são, por conseguinte, suas esposas natas; a mesma lei moral que destina um a outro, proíbe, sob pena de infâmia, todo intercurso sexual fora das classes conjugais que se pertencem reciprocamente. Mesmo nos lugares onde se pratica o rapto das mulheres, que ocorre amiúde e em várias regiões é regra geral, a lei das classes é mantida escrupulosamente.
No rapto das mulheres, encontram-se, já, indícios da passagem à monogamia, pelo menos na forma de casamento sindiásmico; quando um jovem, com ajuda de seus amigos, rapta á força ou pela sedução, uma jovem, ela é possuída por todos um em seguida ao outro, mas depois passa a ser esposa do promotor do rapto. E, inversamente, se a mulher roubada foge da casa de seu marido e é recolhida por outro, torna-se esposa deste último, perdendo o primeiro suas prerrogativas. Ao lado e no seio do matrimônio por grupos, que, em geral, continua existindo, encontram-se, pois, relações exclusivistas, uniões por casais, a prazo mais ou menos longo, e também a poligamia; de maneira que também aqui o matrimônio por grupos vai se extinguindo, ficando o problema reduzido a saber-se quem, sob a influência européia, desaparecerá primeiro da cena: o matrimônio por grupos ou os negros australianos que ainda o praticam.
O matrimônio por classes inteiras, tal como existe na Austrália, é, em todo caso, uma forma muito atrasada e muito primitiva do matrimônio por grupos, ao passo que a família punaluana constitui, pelo que nos é dado conhecer, o seu grau superior de desenvolvimento. O primeiro parece ser a forma correspondente ao estado social dos selvagens nômades; a segunda já pressupõe o estabelecimento fixo de comunidades comunistas e conduz diretamente ao grau imediatamente superior de desenvolvimento. Entre essas duas formas de matrimônio, encontraremos ainda, sem dúvida, graus intermediários; este é um terreno para pesquisas que apenas foi descoberto, e no qual somente se deram os primeiros passos.
3 – A família sindiásmica
No regime de matrimônio por grupos, ou talvez antes, já se formavam uniões por pares, de duração mais ou menos longa; o. homem tinha uma mulher principal (ainda não se pode dizer que fosse uma favorita) entre suas numerosas esposas, e era para ela o esposo principal entre todos os outros. Esta circunstância contribuiu bastante para a confusão produzida na mente dos missionários, que vêem no matrimônio por grupos ora uma comunidade promíscua das mulheres, ora um adultério arbitrário. A medida, porém, que evoluíam as gens e iam-se fazendo mais numerosas as classes de "irmãos" e "irmãs", entre os quais agora era impossível o casamento, a união conjugal por pares, baseada no costume, foi-se consolidando. O impulso dado pela gens á proibição do matrimônio entre, parentes consangüíneos levou as coisas ainda mais longe. Assim, vemos que entre os iroqueses e entre a maior parte dos índios da fase inferior da barbárie, está proibido o matrimônio entre todos os parentes reconhecidos pelo seu sistema, no qual há algumas centenas de parentescos diferentes. Com esta crescente complicação das proibições de casamento, tornaram-se cada vez mais impossíveis as uniões por grupos, que foram substituídas pela família sindiásmica. Neste estágio, um homem vive com uma mulher, mas de maneira tal que a poligamia e a infidelidade ocasional continuam a ser um direito dos homens, embora a poligamia seja raramente observada, por causas econômicas; ao mesmo tempo, exige-se a mais rigorosa fidelidade das mulheres, enquanto dure a vida em comum, sendo o adultério destas cruelmente castigado. O vínculo conjugal, todavia, dissolve-se com facilidade por uma ou por outra parte, e depois, tal como outrora, os filhos continuam a pertencer exclusivamente à mãe.
Nessa exclusão, cada vez maior, que afeta os parentes consangüíneos do laço conjugal, a seleção natural continua a produzir seus efeitos. Segundo Morgan, o "matrimônio entre gens não consangüíneas engendra uma raça mais forte, tanto física como mentalmente; mesclavam-se duas tribos adiantadas, e os novos crânios e cérebros cresciam naturalmente até que compreendiam as capacidades de ambas as tribos". As tribos que haviam adotado o regime das gens estavam chamadas, pois, a predominar sobre as mais atrasadas, ou a arrastá-las com seu exemplo.
A evolução da família nos tempos pré-históricos, portanto, consiste numa redução constante do círculo em cujo seio prevalece a comunidade conjugal entre os sexos, círculo que originariamente abarcava a tribo inteira. A exclusão progressiva, primeiro dos parentes próximos, depois dos parentes distantes e, por fim até das pessoas vinculadas apenas por aliança, torna impossível na prática qualquer matrimônio por grupos; como último capítulo, não fica senão o casal, unido por vínculos ainda frágeis - essa molécula com cuja dissociação acaba o matrimônio em geral. Isso prova quão pouco tem a ver a origem da monogamia com o amor sexual individual, na atual acepção da palavra. Prova-o ainda melhor a prática de todos os povos que se acham nesta fase de seu desenvolvimento. Enquanto nas anteriores formas de família os homens nunca passavam por dificuldades para encontrar mulheres, e tinham até mais do que precisavam, agora as mulheres escasseavam e era necessário procurá-las. Por isso começam, com o matrimônio sindiásmico, o rapto e a compra de mulheres, sintomas bastante difundidos, mas nada além de sintomas de uma transformação muito mais profunda que se havia efetuado. Mac Lennan, esse escocês pedante, transformou, por arte de sua fantasia, tais sintomas, que não passam de simples métodos de adquirir mulheres, em diferentes classes de famílias, sob a forma de "matrimônio por rapto", e "matrimônio por compra". Além do mais, entre os índios da América e em outras tribos (no mesmo estágio), o arranjo de um matrimônio não concerne aos interessados, aos quais muitas vezes nem se consulta, e sim a suas mães. Comumente, desse modo, ficam comprometidos dois seres que nem sequer se conhecem e de cujo casamento só ficam sabendo quando chega o momento do enlace. Antes do casamento, o noivo dá presentes aos parentes gentílicos da noiva (quer dizer: aos parentes desta por parte de mãe, excluídos os parentes por parte de pai e o próprio pai) e esses presentes são considerados como o preço pelo qual o homem compra a jovem núbil que lhe cedem. O matrimônio é dissolúvel à vontade de cada um dos cônjuges. Em numerosas tribos, contudo, como, por exemplo, entre os iroqueses, formou-se, pouco a pouco, uma opinião pública hostil a essas separações; em caso de disputas entre os cônjuges, intervinham os parentes gentílicos de cada parte e só se esta mediação não surtisse efeito é que se levava a cabo o rompimento, permanecendo o filho com a mulher e ficando cada uma das partes livre para casar novamente.
A família sindiásmica, demasiado débil e instável por si mesma para fazer sentir a necessidade ou simplesmente o desejo de um lar particular, não suprime, em absoluto, o lar comunista que nos apresenta a época precedente. Mas lar comunista significa predomínio da mulher na casa; tal como o reconhecimento exclusivo de uma mãe própria, na impossibilidade de conhecer com certeza o verdadeiro pai; significa alto apreço pelas mulheres, isto é, pelas mães. Uma das idéias mais absurdas que nos transmitiu a filosofia do século XVIII é a de que na origem da sociedade a mulher foi escrava do homem. Entre todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior, média e até (em parte) superior da barbárie, a mulher não só é livre como, também, muito considerada. Artur Wright, que foi durante muitos anos missionário entre os iroqueses-senekas, pode atestar qual é a situação da mulher, ainda no matrimônio sindiásmico: "A respeito de suas famílias, na época em que ainda viviam nas antigas casas-grandes (domicílios comunistas de muitas famílias) . . . predominava sempre lá um clã (uma gens) e as mulheres arranjavam maridos em outros clãs (gens) . . . Habitualmente as mulheres mandavam na casa; as provisões eram comuns, mas - ai do pobre marido ou amante que fosse preguiçoso ou desajeitado demais para trazer sua parte ao fundo de provisões da comunidade ! Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa, podia, a qualquer momento, ver-se obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora. E era inútil tentar opor resistência, porque a casa se convertia para ele num inferno; não havia remédio senão o de voltar ao seu próprio clã (gens) ou, o que costumava acontecer com freqüência, contrair novos matrimônio em outro. As mulheres constituíam a grande força dentro dos clãs (gens) e, mesmo, em todos os lugares. Elas não vacilavam, quando a ocasião exigia, em destituir um chefe e rebaixá-lo á condição de mero guerreiro." A economia doméstica comunista, em que a maioria das mulheres, se não a totalidade, é de uma mesma gens, ao passo que os homens pertencem a outras gens diferentes, é a base efetiva daquela preponderância das mulheres que, nos tempos primitivos, esteve difundida por toda parte - fenômeno cujo descobrimento constitui o terceiro mérito de Bachofen. Posso acrescentar que os relatos dos viajantes e dos missionários acerca do trabalho excessivo com que se sobrecarregam as mulheres entre os selvagens e os bárbaros não estão, de modo algum, em contradição com o que acabo de dizer. A divisão do trabalho entre os dois sexos depende de outras causas que nada têm a ver com a posição da mulher na sociedade. Povos nos quais as mulheres se vêem obrigadas a trabalhar muito mais do que lhes caberia, segundo nossa maneira de ver, têm freqüentemente muito mais consideração real por elas que os nossos europeus. A senhora civilizada, cercada de aparentes homenagens, estranha a todo trabalho efetivo, tem uma posição social bem inferior à mulher bárbara, que trabalha duramente, e, no seio do seu povo, vê-se respeitada como uma verdadeira dama (lady, frowa, frau = senhora) e o é de fato por sua própria posição.
Novas investigações acerca dos povos do noroeste e sobretudo no sul da América, que ainda se acham na fase superior do estado selvagem, deverão dizer-nos se o matrimônio sindiásmico substituiu ou não por completo hoje, na América, o matrimônio por grupos. Quanto aos sul-americanos, são referidos tão variados exemplos de licença sexual que se torna difícil admitir o desaparecimento completo do antigo matrimônio por grupos. Em todo caso, ainda não desapareceram todos os seus vestígios. Pelo menos, em quarenta tribos da América do Norte, o homem que se casa com a moça mais idosa tem direito a tomar igualmente como mulheres a todas as irmãs da mesma, logo que cheguem à idade própria. Isto é um vestígio da comunidade de maridos para todo um grupo de irmãs. Dos habitantes da península da Califórnia ( fase superior do estado selvagem), conta Bancroft que têm certas festividades em que se reúnem várias "tribos" para praticar o intercurso sexual mais promíscuo. Com toda a evidência são gens, que, nessas festas, conservam uma baga reminiscência do tempo em que as mulheres de uma gens tinham por maridos comuns todos os homens de outra, e reciprocamente. O mesmo costume impera ainda na Austrália. Em alguns povos, acontece que os anciãos, os chefes e os feiticeiros sacerdotes praticam, em proveito próprio, a comunidade de mulheres e monopolizam a maior parte delas; em compensação, porém, durante certas festas e grandes assembléias populares, são obrigados a admitir a antiga posse comum e a permitir que suas mulheres se divirtam com os homens jovens. Westermarck (págs. 28 e 29) dá uma série de exemplos de saturnais desse gênero, nas quais ressurge, por pouco tempo, a antiga liberdade de intercurso sexual: entre os hos, os santalas, os pandchas e os cotaros, na índia, em alguns povos africanos, etc. Westermarck deduz, de maneira assaz estranha, que estes fatos não constituem restos do matrimônio por grupos - cuja existência ele nega - e sim restos do período do cio, que os homens primitivos tiveram em comum com os animais.
Chegamos ao quarto grande descobrimento de Bachofen: o da grande difusão da forma de transição do matrimônio por grupos ao matrimônio sindiásmico. Aquilo que Bachofen representa como uma penitência pela transgressão de antigos mandamentos dos deuses, uma penitência imposta à mulher para ela comprar seu direito à castidade, não passa, em resumo, de uma expressão mística do resgate mediante o qual a mulher se liberta da antiga comunidade de maridos e adquire para si o direito de não se entregara mais de um homem. Esse resgate consiste em deixar-se possuir, durante um determinado período: as mulheres babilônicas estavam obrigadas a entregar-se uma vez por ano, no templo de Milita, outros povos da Ásia Menor enviavam suas filhas ao templo de Anaitis, onde, durante anos inteiros, elas deveriam praticar o amor livre com os favoritos que escolhessem, antes de lhes ser concedida permissão para casarem-se; em quase todos os povos asiáticos de entre o Mediterrâneo e o Ganges há práticas análogas, disfarçadas em costumes religiosos.
O sacrifício de expiação, que desempenha o papel do resgate, torna-se, com o tempo, cada vez mais ligeiro - como nota Bachofen: "A oferenda, repetida a cada ano, cede lugar a um sacrifício feito uma única vez; ao heterismo das matronas, segue-se o das jovens solteiras; verifica-se a prática antes do matrimônio, ao invés de durante o mesmo; e em lugar de abandonar-se a todos, sem ter o direito de escolher, a mulher já não se entrega senão a certas pessoas." (Direito Materno, pág. xix )
Em outros povos não existe esse disfarce religioso; entre alguns deles - os trácios, os celtas, etc., na antiguidade, em grande número de aborígines da Índia, nos povos malaios, nos ilhéus da Oceania e entre muitos índios americanos, hoje as jovens gozam de maior liberdade sexual até contraírem matrimônio. Assim acontece, sobretudo, na América do Sul, conforme podem atestá-lo quantos hajam penetrado um pouco em seu interior. De uma rica família de origem índia, refere Agassiz (Viagem pelo Brasil, Boston, 1886, pág. 226) que, tendo conhecido a filha da casa, perguntou-lhe por seu pai, supondo que seria o marido de sua mãe, oficial do exército em campanha contra o Paraguai; mas a mãe lhe respondeu, com um sorriso: "Não tem pai, é filha da fortuna". "As mulheres índias ou mestiças falam sempre neste tom, sem considerar vergonhoso ou censurável, de seus filhos ilegítimos; e essa é a regra, ao passo que o contrário parece ser a exceção. Os filhos[ . . . ], amiúde conhecem apenas sua mãe, porque todos os cuidados e todas as responsabilidades recaem sobre ela; nada sabem a respeito do pai, nem parece possa ocorrer á mulher a idéia de que ela ou seus filhos tenham o direito de reclamar dele alguma coisa." O que aqui parece assombroso ao homem civilizado é simplesmente a regra no matriarcado e no matrimônio por grupos.
Em outros povos, os amigos e parentes do noivo, ou os convidados para a celebração das bodas, exercem, durante o próprio casamento , o direito à noiva, por costume imemorial, e ao noivo só chega a vez por último, depois de todos; isso acontecia nas ilhas Baleares e entre os augilas africanos, na Abissínia. Há povos, ainda, em que um personagem oficial, chefe da tribo ou da gens, cacique, xamã, sacerdote ou príncipe, aquele que representa a coletividade, é quem exerce com a mulher que se casa o direito da primeira noite (jus primae noctis). Apesar de todos os esforços neo-românticos para contestá-lo, esse jus primae noctis continua existindo, em nossos dias, como uma relíquia do matrimônio por grupos, entre a maioria dos habitantes do território do Alasca ( Bancroft: Tribos Nativas, I, pág. 81), entre os tanus do norte do México ( op. cit., pág. 584 ) e entre outros povos; e existiu durante toda a Idade Média, pelo menos nos países de origem céltica, onde nasceu diretamente do matrimônio por grupos; em Aragão, por exemplo. Enquanto em Castela o camponês nunca foi servo, em Aragão reinou a servidão mais abjeta até a sentença ou édito arbitrai de Fernando, o Católico, em 1486, documento onde se diz: "Julgamos e determinamos que os senhores (senyors, barões) supraditos tampouco poderão passar a primeira noite com a mulher que haja tomado de um camponês, nem poderão, igualmente, durante a noite das núpcias, depois que a mulher se tenha deitado na cama, passar a perna por cima da cama ou da mulher, em sinal de sua soberania. Nem poderão os supraditos senhores servir-se das filhas ou filhos dos camponeses contra a vontade deles, com ou sem pagamento." ( Citado, segundo o texto original em catalão, por Sugenheim. A Servidão, São Petersburgo, 1861, pág. 35).
Afora isso, Bachofen tem evidente razão quando afirma que a passagem do que ele chama de "heterismo" ou "Sumpfzeugung" à monogamia realizou-se essencialmente graças às mulheres. Quanto mais as antigas relações sexuais perdiam seu caráter inocente primitivo e selvático, por forçado desenvolvimento das condições econômicas e, paralelamente, por força da decomposição do antigo comunismo, e da densidade cada vez maior da população, tanto mais envilecedoras e opressivas devem ter parecido essas relações para as mulheres, que com maior força deviam ansiar pelo direito à castidade, como libertação, pelo direito ao matrimônio, temporário ou definitivo, com um só homem. Esse progresso não podia ser devido ao homem, pela simples razão, que dispensa outras, de que jamais, ainda em nossa época, lhe passou pela cabeça a idéia de renunciar aos prazeres de um verdadeiro matrimônio por grupos. Só depois de efetuada pela mulher a passagem ao casamento sindiásmico, é que foi possível aos homens introduzirem a estrita monogamia - na verdade, somente para as mulheres.
A família sindiásmica aparece no limite entre o estado selvagem e a barbárie, no mais das vezes durante a fase superior do primeiro, apenas em certos lugares durante a fase inferior da segunda. É a forma de família característica da barbárie, como o matrimônio por grupos é a do estado selvagem e a monogamia é a da civilização. Para que a família sindiásmica evoluísse até chegar a uma monogamia estável, foram necessárias causas diversas daquelas cuja ação temos estudado até agora. Na família sindiásmica já o grupo havia ficado reduzido à sua última unidade, à sua molécula biatômica: um homem e uma mulher. A seleção natural realizara sua obra, reduzindo cada vez mais a comunidade dos matrimônios; nada mais havia a fazer nesse sentido. Portanto, se não tivessem entrado em jogo novas forças impulsionadoras de ordem social, não teria havido qualquer razão para queda família sindiásmica surgisse outra forma de família. Mas tais força impulsionadoras entraram em jogo.
Deixemos agora a América, terra clássica da família sindiásmica. Não há indícios que nos permitam afirmar que nela se tenha desenvolvido alguma forma superior de família, que nela tenha existido a monogamia estável, em qualquer tempo ou lugar, antes do descobrimento e da conquista. O contrário aconteceu no Velho Mundo.
Aqui, a domesticação de animais e a criação do gado haviam aberto mananciais de riqueza até então desconhecidos, criando relações sociais inteiramente novas. Até a fase inferior da barbárie, a riqueza duradoura limitava-se pouco mais ou menos à habitação, às vestes, aos adornos primitivos e aos utensílios necessários para a obtenção e preparação dos alimentos: o barco, as armas, os objetos caseiros mais simples. O alimento devia ser conseguido todo dia, novamente. Agora, com suas manadas de cavalos, camelos, asnos, bois, carneiros, cabras e porcos, os povos pastores, que iam ganhando terreno ( os ários, no indiano País dos Cinco Rios e no vale do Ganges, assim como nas estepes de Oxus e Jaxartes, na ocasião esplendidamente irrigadas, e os semitas no Tigre e no Eufrates), haviam adquirido riquezas que precisavam apenas de vigilância e dos cuidados mais primitivos para reproduzir-se em proporção cada vez maior e fornecer abundantíssima alimentação de carne e leite. Desde então, foram relegados a segundo plano todos os meios anteriormente utilizados; a caça, que em outros tempos era uma necessidade, transformou-se em passatempo.
A quem, no entanto, pertenceria essa riqueza nova ? Não há dúvida de que, na sua origem, pertenceu à gens. Mas bem cedo deve ter-se desenvolvido a propriedade privada dos rebanhos. É bem difícil dizer se o autor do chamado primeiro livro de Moisés considerava o patriarca Abraão proprietário de seus rebanhos por direito próprio, por ser o chefe de uma comunidade familiar, ou em virtude de seu caráter de chefe hereditário de uma gens. Seja como for, o certo é que não devemos imaginá-lo como proprietário, no sentido moderno da palavra. É indubitável, também, que, nos umbrais da história autenticada já encontramos em toda parte os rebanhos como propriedade particular dos chefes de família, com n mesmo título que os produtos artístico da barbárie, os utensílios de metal, os objetos de luxo e, finalmente, o gado humano: os escravos.
A escravidão já tinha sido inventada. O escravo não tinha valor algum para os bárbaros da fase inferior. Por isso os índios americanos relativamente aos seus inimigos vencidos agiam de maneira bastante diferente da usada na fase superior. A tribo vencedora matava os homens derrotados, ou adotava-os como irmãos; as mulheres eram tomadas como esposas, ou, juntamente com seus filhos sobreviventes, adotadas de qualquer outra forma. Nessa fase, a força de trabalho do homem ainda não produz excedente apreciável sobre os gastos de sua manutenção. Ao introduzirem-se, porém, a criação do gado, a elaboração dos metais, a arte do tecido e, por fim, a agricultura, as coisas ganharam outra fisionomia. Principalmente depois Sue os rebanhos passaram definitivamente á propriedade da família, deu-se com a força de trabalho o mesmo que havia sucedido com as mulheres, antes tão fáceis de obter e que agora já tinham seu valor de troca e eram compradas. A família não se multiplicava com tanta rapidez quanto o gado. Agora eram necessárias mais pessoas para os cuidados com a criação; podia ser utilizado para isso o prisioneiro de guerra que, além do mais, poderia multiplicar-se tal como o gado.
Convertidas todas essas riquezas em propriedade particular das famílias, e aumentadas depois rapidamente, assestaram um rude golpe na sociedade alicerçada no matrimônio sindiásmico e na gens baseada no matriarcado. O matrimônio sindiásmico havia introduzido na família um elemento novo. junto á verdadeira mãe tinha posto o verdadeiro pai, provavelmente mais autêntico que muitos "pais" de nossos dias. De acordo com a divisão do trabalho na família de então, cabia ao homem procurar a alimentação e os instrumentos de trabalho necessários para isso; conseqüentemente, era, por direito, o proprietário dos referidos instrumentos, e em caso de separação levava-os consigo, da mesma forma que a mulher conservava os seus utensílios domésticos. Assim, segundo os costumes daquela sociedade, o homem era igualmente proprietário do novo manancial de alimentação, o gado, e, mais adiante, do novo instrumento de trabalho, o escravo. Mas, consoante o uso daquela mesma sociedade, seus filhos não podiam herdar dele, pois, quanto a este ponto, as coisas se passavam da maneira que iremos adiante referir..
Com base no direito materno, isto é, enquanto a descendência só se contava por linha feminina, e segundo a primitiva lei de herança imperante na gens, os membros dessa mesma gens herdavam, no principio, do seu parente gentílico falecido. Seus gens deveriam ficar, pois, dentro da gens. Devido á sua pouca importância, esses gens passavam, na prática, desde os tempos mais remotos, aos parentes gentílicos mais próximos, isto é, aos consangüíneos por linha materna. Entretanto, os filhos de um homem falecido não pertenciam á gens daquele, mas á de sua mãe; ao princípio, herdavam da mãe, como os demais consangüíneos desta; depois, provavelmente, foram seus primeiros herdeiros, mas não podiam sê-lo de seu pai, porque não pertenciam á gens do mesmo, na qual deveriam ficar os seus gens. Desse modo, pela morte do proprietário de rebanhos, esses passavam em primeiro lugar aos seus irmãos e irmãs, e aos filhos destes ou aos descendentes das irmãs de sua mãe; quanto aos seus próprios filhos, ficavam deserdados.
Dessa forma, pois, as riquezas, á medida que iam aumentando, davam, por um lado, ao homem uma posição mais importante que a da mulher na família, e, por outro lado, faziam com que nascesse nele a idéia de valer-se desta vantagem para modificar, em proveito de seus filhos, a ordem da herança estabelecida. Mas isso não se poderia fazer enquanto permanecesse vigente a filiação segundo o direito materno. Esse direito teria que ser abolido, e o foi. E isto não foi tão difícil quanto hoje nos parece. Tal revolução. - uma das mais profundas que a humanidade já conheceu - não teve necessidade de tocar em nenhum dos membros vivos da gens. Todos os membros da gens puderam continuar sendo o que até então haviam sido. Bastou decidir simplesmente que, de futuro, os descendentes de um membro masculino permaneceriam na gens, mas os descendentes de um membro feminino sairiam dela, passando à gens de seu pai. Assim, foram abolidos a filiação feminina e o direito hereditário materno, sendo substituídos pela filiação masculina e o direito hereditário paterno. Não sabemos a respeito de como e quando se produziu essa revolução entre os povos cultos, pois isso remonta aos tempos pré-históricos. Mas os dados reunidos, sobretudo por Bachofen, acerca dos numerosos vestígios do direito materno, demonstram plenamente que tal revolução ocorreu; e com que facilidade, verificamo-lo em muitas tribos índias onde acaba de efetuar-se, ou se está realizando, em parte pelo influxo do incremento das riquezas e modificações no gênero de vida (migração dos bosques para os prados), em parte pela influência moral da civilização e dos missionários. De oito tribos do Missouri, seis estão regidas pela linhagem e ordem de herança masculinas, duas pelas femininas. Entre os schawnees, os miamies e os delawares adotou-se o costume de dar aos filhos um nome pertencente à gens paterna, para fazê-los passar a esta, a fim de poderem herdar de seu pai. "Casuística inata nos homens a de mudar as coisas mudando-lhes os nomes! E achar saídas para romper com a tradição sem sair dela, sempre que um interesse direto dá o impulso suficiente para isso" (Marx). Resultou daí uma espantosa confusão, que só podia ser remediada - e parcialmente o foi - com a passagem ao patriarcado. "Esta parece ser a transição mais natural" (Marx). Quanto ao que os especialistas em Direito Comparado podem dizer-nos sobre o modo como se deu essa transição entre os povos civilizados do Mundo Antigo - quase tudo são hipóteses -, veja-se Kovalévski, Quadro das Origens e da Evolução da Família e da Propriedade, Estocolmo, 1890.
O desmoronamento do direito materno, a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo. O homem apoderou-se também da direção da casa; a mulher viu-se degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em simples instrumento de reprodução. Essa baixa condição da mulher, manifestada sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e, ainda mais, entre os dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocada, dissimulada e, em certos lugares, até revestida de formas de maior suavidade, mas de maneira alguma suprimida.
O primeiro efeito do poder exclusivo dos homens, desde o momento em que se instaurou, observamo-lo na forma intermediária da família patriarcal, que surgiu naquela ocasião. O que caracteriza essa família, acima de tudo, não é a poligamia, da qual logo falaremos, e sim a "organização de certo número de indivíduos, livres e não livres, numa família submetida ao poder paterno de seu chefe. Na forma semítica, esse chefe de família vive em plena poligamia, os escravos têm uma mulher e filhos, e o objetivo da organização inteira é o de cuidar do gado numa determinada área." Os traços essenciais são a incorporação dos escravos e o domínio paterno; por isso a família romana é o tipo perfeito dessa forma de família. Na sua origem, a palavra família não significa o ideal - mistura de sentimentalismo e dissensões domésticas do filisteu de nossa época; - a princípio, entre os romanos, não se aplicava sequer ao par de cônjuges e aos seus filhos, mas somente aos escravos. Famulus quer dizer escravo doméstico e família é o conjunto dos escravos pertencentes a um mesmo homem. Nos tempos de Gaio, a família "id est patrimonium" ( isto é, herança) era transmitida por testamento. A expressão foi inventada pelos romanos para designar um novo organismo social, cujo chefe mantinha sob seu poder a mulher, os filhos e certo número de escravos, com o pátrio poder romano e o direito de vida e morte sobre todos eles. "A palavra não é, pois, mais antiga que o férreo sistema familiar das tribos latinas que nasceu ao introduzirem-se a agricultura e a escravidão legal, depois da cisão entre os gregos e latinos arianos." E Marx acrescenta: "A família moderna contém, em germe, não apenas a escravidão (servitus) como também a servidão, pois, desde o começo, está relacionada com os serviços da agricultura. Encerra, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolvem, mais adiante, na sociedade e em seu Estado."
Esta forma de família assinala a passagem do matrimônio sindiásmico á monogamia. Para assegurar a fidelidade da mulher e, por conseguinte, a paternidade dos filhos, aquela é entregue, sem reservas, ao poder do homem: quando este a mata, não faz mais do que exercer o seu direito.
Com a família patriarcal, entramos no domínio da História escrita, onde a ciência do Direito Comparado nos pode prestar grande auxílio. Efetivamente, essa ciência nos permitiu aqui fazer importantes progressos. A Máxím Kovalévski (Quadro das Origens e da Evolução da Família e da Propriedade, Estocolmo, 1890, págs. 60/100), devemos a idéia de que a comunidade familiar patriarcal (patriarchalische Hausgenossenchaft), conforme ainda existe entre os sérvios e os búlgaros com o nome de zádruga (que pode traduzir-se mais ou menos por confraternidade) ou bratswo (fraternidade) e, sob uma forma modificada, entre os orientais, constituiu o estágio de transição entre a família de direito materno - fruto do matrimônio por grupos - e a monogamia moderna. Isso parece provado, pelo menos quanto aos povos civilizados de Mundo Antigo, os árias e os semitas.
A zádruga dos eslavos do sul constitui o melhor exemplo ainda existente de uma comunidade familiar dessa espécie. Abrange muitas gerações de descendentes de um mesmo pai, os quais vivem juntos, com suas mulheres, sob um mesmo teto; cultivam suas terras em comum, alimentam-se e vestem-se de um fundo comum e possuem coletivamente a sobra dos produtos. A comunidade está sujeita à administração superior do dono da casa (domàcin), que a representa ante o mundo exterior, tem o direito de alienar as coisas de menor valor, movimenta as finanças, é responsável por elas, tal como pela boa marcha dos negócios. É eleito, e para isso não precisa ser o de mais idade. As mulheres e o trabalho das mesmas estão sob a direção da dona da casa (domàcica), que costuma ser a mulher do domàcin. Esta, igualmente, tem voz - e amiúde decisiva - na escolha de maridos para as jovens solteiras. Porém o poder supremo pertence ao conselho de família, á assembléia de todos os adultos da comunidade, homens e mulheres. Perante esta assembléia, o chefe de família presta contas, e é ela que resolve as questões importantes, ministra justiça entre todos os membros da comunidade, decide sobre as compras e vendas mais importantes, sobretudo as de terras, etc.
Há pouco mais de dez anos que se comprovou, na Rússia, a existência de grandes comunidades familiares desse gênero; e hoje todo o mundo reconhece que elas têm, nos costumes populares russos, raízes tão profundas quanto a obschina ou comunidade rural. Figuram no mais antigo código russo - a Pravda de Yaroslav - com o mesmo nome (verv) com que aparecem nas leis da Dalmácia; e nas fontes históricas tchecas e polonesas também podemos encontrar referências a seu respeito.
Também entre os germanos, segundo Heusler (Instituições do Direito Alemão), a unidade econômica primitiva não é a família isolada, no sentido moderno da palavra, e sim uma "comunidade familiar" (Hausgenossenschaft) que se compõe de várias gerações com suas respectivas famílias e que inclui freqüentemente indivíduos não livres. A família romana refere-se, também, a essa espécie de comunidade, e, por causa disso, o poder absoluto do pai sobre os demais membros da família, por certo privados inteiramente de direitos quanto a ele, tem sido posto muito em dúvida ultimamente. Comunidades familiares assim devem ter existido entre os celtas da Irlanda; subsistiram na França, no Nivernais, coro o nome de parçonneries, até a Revolução Francesa - e ainda não se extinguiram no Franco-Condado. Nos arredores de Louans (Saone e Loire), vêem-se grandes casarões de camponeses com uma sala comum, central, muito alta, que chega até a cumeeira do telhado; em torno se encontram os dormitórios, aos quais se sobe por escadas de seis a oito degraus; nesses casarões moram diversas gerações da mesma família.
A comunidade familiar, com cultivo do solo em comum, já era mencionada, na índia, por Nearco, ao tempo de Alexandre Magno, e ainda existe no Punjabe e em todo o noroeste do país. O próprio Kovalévski pôde encontrá-la no Cáucaso. Na Argélia ainda existe, nas Cabilas. Diz-se que existiu até na América; esforços são feitos para identificá-la com as "calpullis" no antigo México, descritas por 7urita; por outro lado, Cunow (Ausland 1890, números 42/44) , demonstrou, com bastante clareza, que, na época da conquista, existia no Peru uma espécie de marca ( que, curiosamente, ali também se chamava marca), com partilha periódica das terras cultiváveis e, conseqüentemente, cultivo individual.
Em todo caso, a comunidade familiar patriarcal, com posse e cultivo do solo em comum, adquire agora uma significação bem diferente da que tinha antes. Já não podemos duvidar do grande papel de transição que desempenhou, entre os civilizados e outros povos na antiguidade, no período entre a família de direito materno e a família monogâmica. Adiante falaremos a respeito de outra conclusão de Kovalévski, a saber: que a comunidade familiar foi igualmente o estágio de transição que precedeu a marca ou comunidade rural, com cultivo individual do solo e partilha a princípio periódica e depois definitiva - dos campos e pastos.
Quanto à vida em família no seio de tais comunidades familiares, deve-se ressaltar que, pelo menos na Rússia, os donos da casa têm fama de abusar muito de sua situação, no que concerne às mulheres mais jovens da comunidade, principalmente suas noras, com as quais muitas vezes formam um harém; as canções populares russas são bastante eloqüentes a esse respeito.
Antes de passar à monogamia - à qual o fim do matriarcado imprime um rápido desenvolvimento - devemos dizer algumas palavras sobre a poligamia e a poliandria. Estas duas formas de matrimônio só podem ser exceções, artigos de luxo da história, digamo-lo, a não ser que se verifiquem simultaneamente, em um mesmo país, o que, como sabemos, não ocorre. Pois bem: como os homens excluídos da poligamia não se podiam consolar com as mulheres deixadas de lado pela poliandria, e como o número de homens e mulheres, independentemente das instituições sociais, tem sido sempre quase igual, até nossos dias, nenhuma dessas duas formas de matrimônio se generalizou. Na realidade, a poligamia de um homem era, evidentemente, um produto da escravidão e limitava-se a alguns poucos casos excepcionais. Na família patriarcal semítica, o próprio patriarca e, no máximo, alguns de seus filhos vivem como polígamos, contentando-se obrigatoriamente os demais com uma só mulher. Assim sucede, ainda hoje, em todo o Oriente: a poligamia é um privilégio dos ricos e dos poderosos, e as mulheres são recrutadas sobretudo na compra de escravas; a massa do povo é monógama. Uma exceção parecida é a da poliandria na Índia e no Tibete, nascida do matrimônio por grupos e cuja interessante origem fica por ser estudada mais a fundo. Na prática, parece bem mais tolerante que o ciumento regime dos haréns muçulmanos. Entre os naires da índia, pelo menos, três, quatro ou mais homens têm uma mulher em comum; mas cada um deles pode ter, em conjunto com outros homens, uma segunda, uma terceira, uma quarta mulher, ou mais. E surpreendente que Mac Lennan, ao descrevê-los, não tenha descoberto uma nova categoria de matrimônio - o matrimônio por clubes - nesses clubes conjugais, de vários dos quais um homem pode fazer parte. Por certo, o sistema de clubes conjugais nada tem a ver com a poliandria efetiva; ao contrário, como já o notou Giraud-Teulon, é uma forma particular (spezialisierte) do matrimônio por grupos; os homens vivem na poligamia, e as mulheres na poliandria
4 – A família monogâmica
Nasce, conforme indicamos, da família sindiásmica, no período de transição entre a fase média e a fase superior da barbárie; seu triunfo definitivo é um dos sintomas da civilização nascente. Baseia-se no predomínio do homem; sua finalidade expressa é a de procriar filhos cuja paternidade seja indiscutível; e exige-se, essa paternidade, indiscutível porque os filhos, na qualidade de herdeiros diretos, entrarão, um dia, na posse dos gens de seu pai. A família monogâmica diferencia-se do matrimônio sindiásmico por uma solidez muito maior dos laços conjugais, que já não podem ser rompidos por vontade de qualquer das partes. Agora, como regra, só o homem pode rompê-los e repudiar sua mulher. Ao homem, igualmente, se concede o direito á infidelidade conjugal, sancionado ao menos pelo costume (o Código de Napoleão outorga-o expressamente, desde que ele não traga a concubina ao domicílio conjugal), e esse direito se exerce cada vez mais amplamente, à medida que se processa a evolução da sociedade.Quando a mulher, par acaso, recorda as antigas práticas sexuais e intenta renová-las, é castigada mais rigorosamente do que em qualquer outra época anterior.
Entre os gregos, encontramos, com toda a sua severidade, a nova forma de família. Enquanto a situação das deusas na mitologia, como assinala Marx, nos fala de um período anterior, em que as mulheres ocupavam uma posição mais livre e de maior consideração, nos tempos heróicos já vemos a mulher humilhada pelo predomínio do homem e pela concorrência das escravas. Leia-se na Odisséia, como Telêmaco interrompe sua mãe e lhe impõe silêncio. Em Homero, os vencedores aplacam seus apetites sexuais nas jovens capturadas, escolhendo os chefes para si, por turno e segundo a sua categoria, as mais formosas; e é sabido que toda a Ilíada gira em torno de uma disputa mantida entre Aquiles e Agamenon por causa de uma escrava. Junto a cada herói, mais ou menos importante, Homero fala da jovem cativa que vive em sua tenda e dorme em seu leito. Essas jovens eram, ainda, conduzidas ao país natal dos heróis, á casa conjugal, conforme Agamenon fez com Cassandra em Ésquilo. Os filhos nascidos dessas escravas recebem uma pequena parte da herança paterna e são considerados homens livres; assim, Teucro, que é filho natural de Telamon, tem direito de usar o nome de seu pai.
Quanto á mulher legítima, exige-se dela que tolere tudo isso e, por sua vez, guarde uma castidade e uma fidelidade conjugal rigorosas. É certo que a mulher grega da época heróica é mais respeitada que a do período civilizado; todavia, para o homem, não passa, afinal de contas, da mãe de seus filhos legítimos, seus herdeiros, aquela que governa a casa e vigia as escravas - escravas que ele pode transformar ( e transforma) em concubinas, à sua vontade. A existência da escravidão junto á monogamia, a presença de jovens e belas cativas que pertencem, de corpo e alma, ao homem, é o que imprime desde a origem um caráter específico á monogamia que é monogamia só para a mulher, e não para o homem. E, na atualidade, conserva-se esse caráter.
Quanto aos gregos de uma época mais recente, devemos distinguir entre os dóricos e os jônios. Os primeiros, dos quais Espanta é o exemplo clássico, sob muitos aspectos têm relações conjugais muito mais primitivas que as pintadas por Homero. Em Esparta existe um matrimônio sindiásmico modificado pelo Estado conforme as concepções ali dominantes e que conserva inúmeros vestígios do matrimônio por grupos. As uniões estéreis são rompidas: o rei Anaxândrides (por volta do ano 650 antes de nossa era) tomou uma segunda mulher, sem deixar a primeira, que era estéril, e mantinha dois domicílios conjugais; por essa mesma época, o rei Ariston, tendo duas mulheres sem filhos, tomou outra, mas despediu uma das duas primeiras. Além disso, vários irmãos podiam ter uma mulher comum; o homem que preferia a mulher de seu amigo podia partilhá-la com ele; e era considerado decente pôr a própria mulher à disposição de um vigoroso "garanhão" (como diria Bismarck ), ainda que este não fosse um concidadão. De um trecho de Plutarco, em que uma espartana envia a seu marido um amante que a perseguia com suas propostas, pode-se, inclusive, deduzir, conforme Schömann, uma liberdade de costumes ainda maior. Por esta razão, era coisa inaudita o adultério efetivo, a infidelidade da mulher às escondidas de seu marido. Por outro lado, a escravidão doméstica era desconhecida em Esparta, pelo menos no seu apogeu; os servos ilotas viviam separados, nas terras de seus senhores, e, por conseguinte, entre os cidadãos livres espartanos era menor a tentação de se divertirem com as mulheres daqueles.
Por todas essas razões, as mulheres tinham, em Esparta, uma situação de maior respeito que entre os outros gregos. As casadas espartanas e a elite das hetairas atenienses são as únicas mulheres das quais os antigos falam com consideração e das quais se deram ao trabalho de recolher os ditos.
Outra coisa bem diversa se passava entre os jônios, para os quais é característico o regime de Atenas. As donzelas aprendiam apenas a fiar, tecer e coser, e quando muito, a ler e a escrever. Eram praticamente cativas e só lidavam com outras mulheres. Habitavam um aposento separado, situado no alto ou atrás da casa; os homens, sobretudo os estranhos, não entravam ali com facilidade - e as mulheres se retiravam quando chegava algum visitante. Não saíam, as mulheres, sem que as acompanhasse uma escrava; dentro de casa, eram literalmente submetidas à vigilância; Aristófanes fala de cães molossos para espantar adúlteros e, nas cidades asiáticas, para vigiar as mulheres, havia eunucos - os quais, desde os tempos de Heródoto, eram fabricados em Quios para serem comerciados, e não serviam apenas aos bárbaros, a crer-se em Wachsmuth. Em Eurípides, a mulher é designada como oikurema, isto é, algo destinado a cuidar da casa (a palavra é neutra) e, além da procriação dos filhos, não passava de criada principal para o ateniense. O homem tinha seus exercícios ginásticos e suas discussões públicas, coisas de que a mulher estava excluída; costumava ter escravas à sua disposição e dispunha, na época florescente de Atenas, de uma prostituição bastante extensa e, em todo caso, protegida pelo Estado. Aliás, foi precisamente com base nessa prostituição que se desenvolveram aquelas mulheres gregas que se destacaram do nível geral da mulher do Mundo Antigo por seu talento e gosto artístico, da mesma forma que as espartanas se sobressaíram por seu caráter. Mas o fato de que, para se converter realmente em mulher, fosse preciso antes ser hetaira, constitui a mais severa condenação da família ateniense.
Com o tempo, essa família ateniense chegou a ser o tipo pelo qual modelaram suas relações domésticas não apenas o resto dos jônios como, ainda, todos os gregos da metrópole e das colônias. Entretanto, apesar do seqüestro e da vigilância, as gregas achavam muitas e freqüentes ocasiões para enganar os seus maridos. Estes, que se teriam ruborizado de demonstrar o menor amor às suas mulheres, divertiam-se com toda espécie de jogos amorosos com hetairas; mas o envilecimento das mulheres refluiu sobre os próprios homens e também os envilece, levando-os às repugnantes práticas da pederastia e a desonrarem seus deuses e a si próprios, pelo mito de Ganimedes.
Essa foi a origem da monogamia, tal como pudemos observá-la no povo mais culto e desenvolvido da antigüidade. De modo algum foi fruto do amor sexual individual, com o qual nada tinha em comum, já que os casamentos, antes como agora, permaneceram casamentos de conveniência. Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que só pudessem ser seus para herdar dele. Quanto ao mais, o casamento era para eles uma carga, um dever para com os deuses, o Estado e seus antepassados, dever que estavam obrigados a cumprir. Em Atenas, a lei não apenas impunha o matrimônio como, ainda, obrigava o marido a um mínimo determinado do que se chama de obrigações conjugais.
A monogamia não aparece na história, portanto, absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mulher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio. Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de um sexo pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, na pré-história. Num velho manuscrito inédito, redigido em 1846 por Marx e por mim, encontro a seguinte frase: "A primeira divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a procriação dos filhos”. Hoje posso acrescentar: o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher, na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino. A monogamia foi um grande progresso histórico, mas, ao mesmo tempo, iniciou, juntamente com a escravidão e as riquezas privadas, aquele período, que dura até nossos dias, no qual cada progresso é simultaneamente um retrocesso relativo, e o bem-estar e o desenvolvimento de uns se verificam às custas da dor e da repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que atingem seu pleno desenvolvimento nessa sociedade.
A antiga liberdade relativa de relações sexuais não desapareceu completamente com o triunfo do matrimônio sindiásmico, nem mesmo com o da monogamia. "O antigo sistema conjugal, reduzido a limites mais estreitos pela gradual desaparição dos grupos punaluanos, continuou acompanhando a família que evoluía e ficou ligado a ela até os alvores da civilização... ; desapareceu, por fim, com a nova forma de heterismo, que acompanha o gênero humano até a plena civilização, qual uma sombra negra se projetando sobre a família." Morgan entende por heterismo as relações extraconjugais - existentes junto com a monogamia - dos homens com mulheres não casadas, relações que, como se sabe, florescem sob as mais variadas formas durante toda a época da civilização e se transformam, cada vez mais, em aberta prostituição. Esse heterismo descende, em linha reta, do matrimônio por grupos, do sacrifício pessoal que as mulheres faziam para adquirir direito à castidade. A entrega por dinheiro foi, a princípio, um ato religioso: era praticada no templo da deusa do amor e, primitivamente, o dinheiro ia para as arcas do templo. As hieródulas de Anaitis, na Armênia, de Afrodite em Corinto, tal como as bailarinas religiosas agregadas aos templos da Índia, conhecidas pelo nome de bayaderas ( corruptela do português bailadeira), foram as primeiras prostitutas. O sacrifício da entrega, no início, dever de todas as mulheres, passou a ser exercido, mais tarde, apenas por essas sacerdotisas, em substituição a todas as demais. Em outros povos, o heterismo provém da liberdade sexual concedida às jovens antes do matrimônio; assim, pois, é também um resto do matrimônio por grupos, mas que chegou até nós por outros caminhos.
Com a diferenciação na propriedade, isto é, já na fase superior da barbárie, aparece, esporadicamente, o trabalho assalariado junto ao trabalho dos escravos; e, ao mesmo tempo, como seu correlativo necessário, a prostituição profissional das mulheres livres aparece junto à entrega forçada das escravas. Desse modo, pois, é dúbia a herança que o matrimônio por grupos legou à civilização - e tudo que a civilização produz é também dúbio, ambíguo, equívoco, contraditório: de um lado a monogamia, de outro, o heterismo, incluída a sua forma extrema, a prostituição. O heterismo é uma instituição social como outra qualquer, e mantém a antiga liberdade sexual... em proveito dos homens. Embora seja, de fato, não apenas tolerado, mas praticado livremente sobretudo pelas classes dominantes, ele é condenado em palavras. E essa reprovação, na realidade, nunca se dirige contra os homens que o praticam e sim, somente, contra as mulheres, que são desprezadas e repudiadas, para que se proclame uma vez mais, como lei fundamental da sociedade, a supremacia absoluta do homem sobre o sexo feminino.
Mas, na própria monogamia, desenvolve-se uma segunda contradição. Junto do marido, que amenizava a existência com o heterismo, acha-se a esposa abandonada. E não pode haver um termo de uma contradição sem que lhe corresponda o outro, como não se pode ter nas mãos uma maçã inteira, depois de se ter comido sua metade. Esta, no entanto, parece ter sido a opinião dos homens, até que as mulheres lhes puseram outra coisa na cabeça. Com a monogamia, apareceram duas figuras sociais constantes e características, até então desconhecidas: o inevitável amante da mulher casada e o marido corneado. Os homens haviam conseguido vencer as mulheres, mas as vencidas se encarregaram, generosamente, de coroar os vencedores. O adultério, proibido e punido rigorosamente, mas irreprimível, chegou a ser uma instituição social inevitável, junto à monogamia e ao heterismo. No melhor dos casos, a certeza da paternidade baseava-se agora, como antes, no convencimento moral, e para resolver a contradição insolúvel o Código de Napoleão dispôs em seu artigo 312: "L'enfant conçu pendant le mariage a pour père le mari". ( "O filho concebido durante o matrimônio tem por pai o marido:”). É este o resultado final de três mil anos de monogamia.
Assim, nos casos em que a família monogâmica reflete fielmente sua origem histórica e manifesta com clareza o conflito entre o homem e a mulher, originado pelo domínio exclusivo do primeiro, teremos um quadro em miniatura das contradições e antagonismos em meio aos quais se move a sociedade, dividida em classes desde os primórdios da civilização, sem poder resolvê-los nem superá-los. Naturalmente que só me refiro aqui aos casos de monogamia em que a vida conjugal transcorre conforme as prescrições do caráter original desta instituição, mas na qual a mulher se rebela contra o domínio do homem. Que não é em todos os casamentos que assim ocorre, sabe-o melhor do que ninguém o filisteu alemão, que não sabe mandar nem em sua casa nem no Estado, e cuja mulher veste com plenos direitos as calças de que não é digno. Mas, nem por isso, deixa de acreditar-se muito superior ao seu companheiro de infortúnios da França, a quem sucedem coisas bem mais desagradáveis, com maior freqüência do que a ele mesmo.
Por certo, a família monogâmica não se revestiu, em todos os lugares e épocas, da forma clássica e rígida que teve entre os gregos. A mulher era mais livre e mais considerada entre os romanos, os quais, na qualidade de futuros conquistadores do mundo, tinham das coisas um conceito mais amplo, apesar de menos refinado que o dos gregos. O romano acreditava suficientemente garantida a fidelidade da sua mulher pelo direito de vida e morte que tinha sobre ela. Além disso, a mulher, lá, podia romper o vínculo matrimonial à sua vontade, tal como o homem. Mas o maior progresso no desenvolvimento da monogamia realizou-se, indubitavelmente, com a entrada dos germanos na história; e assim foi porque, dada a sua pobreza, parece que, naquele tempo, a monogamia ainda não se tinha desenvolvido plenamente entre eles, desprendendo-se do casamento sindiásmico. Tiramos esta conclusão à base de três circunstâncias mencionadas por Tácito: em primeiro lugar, juntamente com a santidade do matrimônio ("contentam-se com uma só mulher, e as mulheres vivem cercadas por seu pudor"), a poligamia existia para os grandes e os chefes de tribo – situação análoga à dos americanos, entre os quais existia o matrimônio sindiásmico. Em segundo lugar, a passagem do direito materno ao direito paterno devia ter-se realizado recentemente, pois o irmão da mãe (o parente gentílico mais próximo, segundo o matriarcado) quase era tido como um parente mais próximo do que o próprio pai - o que também corresponde ao ponto de vista dos índios americanos, entre os quais tinha Marx encontrado, como costumava dizer, a chave para compreender os nossos tempos primitivos. E, em terceiro lugar, as mulheres, entre os germanos, gozavam da mais elevada consideração e exerciam grande influência, até nos assuntos públicos - o que é diametralmente oposto à supremacia masculina da monogamia. Todos estes são pontos nos quais os germanos estão quase inteiramente de acordo com os espartanos, entre os quais, conforme vimos, também não tinha desaparecido de todo o matrimônio sindiásmico. Assim, desse ponto de vista, igualmente, aparecia com os germanos um elemento inteiramente novo, que se impôs em âmbito mundial. A nova monogamia que resultou da mistura dos povos, entre as ruínas do mundo romano, revestiu a supremacia masculina de formas mais suaves e deu às mulheres uma posição muito mais considerada e livre, pelo menos aparentemente, do que as que ela já tivera - na idade clássica. Graças a isso foi possível, a partir da monogamia - em seu seio, a seu lado, ou contra ela, segundo as circunstâncias - , o maior progresso moral que lhe devemos: o amor sexual individual moderno, anteriormente desconhecido no mundo.
Mas devia-se este progresso, seguramente, à circunstância de viverem os germanos ainda sob o regime da família sindiásmica, e de terem levado à monogamia, da forma que puderam, a situação da mulher correspondente à da família sindiásmica; não se devia, de modo algum, à legendária e maravilhosa pureza de costumes ingênita nos germanos, a qual se reduzia ao fato de que, na prática, o matrimônio sindiásmico não revela as mesmas agudas contradições morais da monogamia. Pelo contrário, em suas migrações, particularmente ao sudeste, em direção às estepes do Mar Negro, povoadas por nômades, os germanos sofreram sensível decadência do ponto de vista moral, adquirindo desses nômades, além da arte da equitação, feios vícios antinaturais, sobre os quais temos os testemunhos expressos de Amiano, quanto aos taifalienses, e de Procópio, quanto aos hérulos.
Mas se a monogamia foi, de todas as formas de família conhecidas, a única em que se pôde desenvolver o amor sexual moderno, isso não quer dizer, de modo algum, que ele se tenha desenvolvido de maneira exclusiva, ou ainda preponderante, sob forma de amor mútuo dos cônjuges. A própria natureza da monogamia, solidamente baseada na supremacia do homem, exclui tal possibilidade. Em todas as classes históricas ativas, isto é, em todas as classes dominantes, o matrimônio continuou sendo o que tinha sido desde o matrimônio sindiásmico, coisa de conveniência, arranjada pelos pais. A primeira forma do amor sexual aparecida na história, o amor sexual como paixão, e por certo como paixão possível para qualquer homem (pelo menos das classes dominantes), como paixão que é a forma superior da atração sexual (o que constitui precisamente seu caráter específico), essa primeira forma, o amor cavalheiresco da Idade Média, não foi, de modo algum, amor conjugal. Longe disso, na sua forma clássica, entre os provençais, voga a todo pano para o adultério, que é cantado por seus poetas. A flor da poesia amorosa provençal são as albas ( em alemão Tagelieder - cantos do alvorecer). Pintam, com vivas cores, como o cavaleiro deita com sua amada, mulher de outro, enquanto na rua permanece um vigia, que o chama quando começa a clarear a madrugada (alba), para que possa escapar sem ser visto. A cena da separação é geralmente o ponto culminante do poema. Os franceses do norte e os nossos valentes alemães adotaram este gênero de poesia e, ao mesmo tempo, o amor cavalheiresco que lhe corresponde; o nosso antigo Wolfram von Eschenbach deixou sobre este sugestivo tema três encantadores Tagelieder, que prefiro aos seus três longos poemas épicos.
O casamento burguês assume duas feições, em nossos dias. Nos países católicos, agora, como antes, os pais são os que proporcionam ao jovem burguês a mulher que lhe convém, do que resulta naturalmente o mais amplo desenvolvimento da contradição que a monogamia encerra: heterismo exuberante por parte do homem e adultério exuberante por parte da mulher. E se a Igreja Católica aboliu o divórcio, é provável que seja porque terá reconhecido que contra o adultério, como contra a morte, não há remédio que valha. Nos países protestantes, ao contrário, a regra geral é conceder ao filho do burguês mais ou menos liberdade para procurar mulher dentro da sua classe; por isso, o amor pode ser até certo ponto a base do matrimônio, e assim se supõe sempre que seja, para guardar as aparências, o que está muito de acordo com a hipocrisia protestante. O marido já não pratica o heterismo tão freqüentemente e a infidelidade da mulher é mais rara, mas, como em todas as classes de matrimônio, os seres humanos continuam sendo o que eram antes, e como os burgueses dos países protestantes são, em sua maioria, filisteus, essa monogamia protestante vem a dar, mesmo tomando o termo médio dos melhores casos, em um aborrecimento mortal, sofrido em comum, e que se chama felicidade doméstica. O melhor espelho destes dois tipos de matrimônio é a novela: a novela francesa, para a maneira católica; a novela alemã, para a protestante. Em ambos os casos, o homem "consegue o seu"; na novela alemã, o jovem consegue a moça; na novela francesa, o marido ganha um par de cornos. Qual dos dois sai pior recompensado ? Nem sempre é possível dizê-lo. Por isso, o clima de aborrecimento da novela alemã inspira aos leitores da burguesia francesa o mesmo horror que a "imoralidade" da novela francesa inspira ao filisteu alemão, embora nesses últimos tempos, desde que "Berlim está se tornando uma grande capital", a novela alemã começou a tratar um pouco menos timidamente o heterismo e o adultério, bem conhecidos ali há já bastante tempo.
Mas, em ambos os casos, o matrimônio baseia-se na posição social dos contraentes e, portanto, é sempre um matrimônio de conveniência. Também nos dois casos, esse matrimônio de conveniência se converte, com freqüência, na mais vil das prostituições, às vezes por parte de ambos os cônjuges, porém, muito mais habitualmente, por parte da mulher; esta só se diferencia da cortesã habitual pelo fato de que não aluga o seu corpo por hora, como uma assalariada, e sim que o vende de uma vez, para sempre, como uma escrava. E a todos os matrimônios de conveniência cai como uma luva a frase de Fourier: "Assim como em gramática duas negações equivalem a uma afirmação, de igual maneira na moral conjugal duas prostituições equivalem a uma virtude." Nas relações com a mulher, o amor sexual só pode ser, de fato, uma regra entre as classes oprimidas, quer dizer, em nossos dias, o proletariado, estejam ou não estejam autorizadas oficialmente essas relações. Mas, desaparecem também, nesses casos, todos os fundamentos da monogamia clássica. Faltam aqui, por completo, os bens de fortuna, para cuja conservação e transmissão por herança foram instituídos, precisamente, a monogamia e o domínio do homem; e, por isso, aqui também falta todo o motivo para estabelecer a supremacia masculina. Mais ainda, faltam até os meios de consegui-lo: o direito burguês, que protege essa supremacia, só existe para as classes possuidoras e para regular as relações destas classes com os proletários. Isso custa dinheiro e, por força da pobreza do operário, não desempenha papel algum na atitude deste para com sua mulher. Neste caso, o papel decisivo cabe a outras relações pessoais e sociais. Além disso, sobretudo desde que a grande indústria arrancou a mulher ao lar para atirá-la ao mercado de trabalho e à fábrica, convertendo-a, freqüentemente, em sustentáculo da casa, ficaram desprovidos de qualquer base os restos da supremacia do homem no lar proletário, excetuando-se, talvez, certa brutalidade no trato com as mulheres, muito arraigada desde o estabelecimento da monogamia. Assim, pois, a família do proletário já não é monogâmica no sentido estrito da palavra, nem mesmo com o amor mais apaixonado e a fidelidade mais absoluta dos cônjuges, e apesar de todas as bênçãos espirituais e temporais possíveis. Por isso, o heterismo e o adultério, eternos companheiros da monogamia, desempenham aqui um papel quase nulo; a mulher reconquistou, na prática, o direito de divórcio e os esposos preferem se separar quando já não se podem entender um com o outro. Resumindo: o matrimônio proletário é monogâmico no sentido etimológico da palavra, mas de modo algum em seu significado histórico.
Certamente os nossos jurisconsultos acham que o progresso da legislação vai tirando cada vez mais às mulheres qualquer razão de queixa. Os sistemas legislativos dos países civilizados modernos vão reconhecendo, progressivamente, que, em primeiro lugar, o matrimônio, para ser válido, deve ser um contrato livremente firmado por ambas as partes, e, em ;segundo lugar, que durante a sua vigência as partes devem ter mesmos direitos e deveres. Se estas duas condições fossem realmente postas em prática, as mulheres teriam tudo aquilo e podem desejar.
Essa argumentação - tipicamente jurídica - é exatamente mesma de que se valem os republicanos radicais burgueses para dissipar os receios dos proletários. Supõe-se que o contrato de trabalho seja livremente firmado por ambas as partes. Mas considera-se livremente firmado desde o momento em que a lei estabelece no papel a igualdade de ambas as partes. A força que a diferença de situação de classe dá a uma das partes, a pressão que esta força exerce sobre a outra, a situação econômica real de ambas; tudo isso não interessa à lei. Enquanto dura o contrato de trabalho, continua a suposição de que as duas partes desfrutam de direitos iguais, desde que uma ou outra não renuncie expressamente a eles. E, se a situação econômica concreta do operário o obriga a renunciar até à última aparência de igualdade de direitos, a lei - novamente - nada tem a ver com isso.
Quanto ao matrimônio, mesmo a legislação mais progressista dá-se por inteiramente satisfeita desde o instante em que os interessados fizeram inscrever formalmente em ata o seu livre consentimento. O que se passa fora dos bastidores do tribunal, na vida real, e como se expressa este consentimento, não são questões que cheguem a inquietar a lei ou o legislador. Entretanto, a mais simples comparação entre as legislações de países diversos pode demonstrar ao jurista o que representa esse livre consentimento. Nos países onde a lei assegura aos filhos uma parte da herança da fortuna paterna, e onde, por conseguinte, eles não podem ser deserdados - na Alemanha, nos países que seguem o direito francês, etc. - os filhos necessitam do consentimento dos pais para contrair matrimônio. Nos países onde se pratica o direito inglês, de acordo com o qual o consentimento paterno não é uma condição legal para o casamento, os pais gozam de absoluta liberdade de testar, e podem, caso queiram, deserdar os filhos. Está claro que, apesar disso, e talvez por isso mesmo, a liberdade para contrair matrimônio, entre as classes que têm algo a herdar, não é, de fato, nem um pouquinho maior na Inglaterra e na América do que na França e na Alemanha.
Não é melhor o estado de coisas quanto à igualdade jurídica do homem e da mulher no casamento. A desigualdade legal, que herdamos de condições sociais anteriores, não é causa e sim efeito da opressão econômica da mulher. No antigo lar comunista, que compreendia numerosos casais com seus filhos, a direção do lar, confiada às mulheres, era uma indústria socialmente tão necessária quanto a busca de víveres, de que ficavam encarregados os homens. As coisas mudaram com a família patriarcal e, ainda mais, com a família individual monogâmica. O governo do lar perdeu seu caráter social. A sociedade já nada mais tinha a ver com ele. O governo do lar se transformou em serviço privado; a mulher converteu-se na primeira criada, sem mais tomar parte na produção social. Só a grande indústria de nossos dias lhe abriu de novo - embora apenas para a proletária - o caminho da produção social. Mas isso se fez de maneira tal que, se a mulher cumpre os seus deveres no serviço privado da família, fica excluída do trabalho social e nada pode ganhar; e, se quer tomar parte na indústria social e ganhar sua vida de maneira independente, lhe é impossível cumprir com as obrigações domésticas. Da mesma forma que na fábrica, é isso que acontece à mulher em todos os setores profissionais, inclusive na medicina e na advocacia. A família individual moderna baseia-se na escravidão doméstica, franca ou dissimulada, da mulher, e a sociedade moderna é uma massa cujas moléculas são as famílias individuais.
Hoje, na maioria dos casos, é o homem que tem que ganhar os meios de vida, alimentar a família, pelo menos nas classes possuidoras; e isso lhe dá uma posição dominadora, que não exige privilégios legais especiais. Na família, o homem é o burguês e a mulher representa o proletário. No mundo industrial, entretanto, o caráter específico da opressão econômica que pesa sobre o proletariado não se manifesta em todo o seu rigor senão quando suprimidos todos os privilégios legais da classe dos capitalistas e juridicamente estabelecida a plena igualdade das duas classes. A república democrática não suprime o antagonismo entre as duas classes; pelo contrário, ela não faz senão proporcionar o terreno no qual o combate vai ser decidido. De igual maneira, o caráter particular do predomínio do homem sobre a mulher na família moderna, assim como a necessidade e o modo de estabelecer uma igualdade social efetiva entre ambos, não se manifestarão com toda a nitidez senão quando homem e mulher tiverem, por lei, direitos absolutamente iguais. Então é que se há de ver que a libertação da mulher exige, como primeira condição, a reincorporação de todo o sexo feminino á indústria social, o que, por sua vez, requer a supressão da família individual enquanto unidade econômica da sociedade.
Como vimos, há três formas principais de matrimônio, que correspondem aproximadamente aos três estágios fundamentais da evolução humana. Ao estado selvagem corresponde o matrimônio por grupos, à barbárie, o matrimônio sindiásmico, e à civilização corresponde a monogamia com seus complementos: o adultério e a prostituição. Entre o matrimônio sindiásmico e a monogamia, intercalam-se, na fase superior da barbárie, a submissão das mulheres escravas aos homens e a poligamia.
Conforme ficou demonstrado por tudo que foi exposto, a peculiaridade do progresso manifestado nessa sucessão de formas de matrimônio consiste em que se foi tirando cada vez mais às mulheres (mas não aos homens) a liberdade sexual do matrimônio por grupos. Com efeito, o matrimônio por grupos continua existindo, ainda hoje, para os homens. Aquilo que para a mulher é um crime de graves conseqüências legais e sociais, para o homem é algo considerado honroso, ou, quando muito, uma leve mancha moral 'que se carrega com satisfação. Quanto mais o heterismo antigo se modifica, porém, em nossa época, pela produção capitalista de mercadorias á qual se adapta - mais se transforma em franca prostituição e mais desmoralizadora se torna a sua influência. E, para dizer a verdade, desmoraliza muito mais aos homens que às mulheres. A prostituição, entre as mulheres, degrada apenas as infelizes que caem em suas garras, e mesmo a .estas num grau menor do que se costuma julgar. Em compensação, envilece o caráter do sexo masculino inteiro. Nessas circunstâncias, é de se advertir que, em noventa por cento dos casos, o noivado prolongado é uma verdadeira escola preparatória para a infidelidade conjugal.
Caminhamos presentemente para uma revolução social, em que as atuais bases econômicas da monogamia vão desaparecer, tão seguramente como vão desaparecer as da prostituição, complemento daquela. A monogamia nasceu da concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos - as de um homem – e do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos deste homem, excluídos os filhos de qualquer outro. Para isso era necessária a monogamia da mulher, mas não a do homem; tanto assim que a monogamia daquela não constituiu o menor empecilho á poligamia, oculta ou descarada, deste. Mas a revolução social iminente, transformando pelo menos a imensa maioria das riquezas duradouras hereditárias - os meios de produção - em propriedade social, reduzirá ao mínimo todas essas preocupações de transmissão por herança. E agora cabe a pergunta: tendo surgido de causas econômicas, a monogamia desaparecerá quando desaparecerem essas causas?
Poder-se-ia responder, e não sem fundamento: longe de desaparecer, antes há de se realizar plenamente a partir desse momento. Porque com a transformação dos meios de produção em propriedade social desaparecem o trabalho assalariado, o proletariado, e, conseqüentemente, a necessidade de se prostituírem algumas mulheres, em número estatisticamente calculável. Desaparece a prostituição e, em lugar de decair, a monogamia chega enfim a ser uma realidade - também para os homens.
Em todo caso, modificar-se-á muito a posição dos homens. Mas, também, há de sofrer profundas transformações a das mulheres, a de todas elas. Quando os meios de produção passarem a ser propriedade comum, a família individual deixará de ser a unidade econômica da sociedade. A economia doméstica converter-se-á em indústria social. O trato e a educação das crianças tornar-se-ão público; a sociedade cuidará, com o mesmo empenho, de todos os filhos, sejam legítimos ou naturais. Desaparecerá, assim, o temor das "conseqüências", que é hoje o mais importante motivo social tanto do ponto de vista moral como do ponto de vista econômico - que impede uma jovem solteira de se entregar livremente ao homem que ama. Não bastará isso para que se desenvolvam, progressivamente, relações sexuais mais livres, e também para que a opinião pública se torne menos rigorosa quanto à honra das virgens e à desonra das mulheres ? E por último: não vimos que, no mundo moderno, a prostituição e a monogamia, ainda que antagônicas, são inseparáveis, como pólos de uma mesma ordem social? Pode a prostituição desaparecer sem levar consigo, na queda, a monogamia ?
É agora que intervém um elemento novo, um elemento que existia no máximo em embrião, quando nasceu a monogamia: o amor sexual individual.
Antes da Idade Média, não se pode dizer que existisse amor sexual individual. É óbvio que a beleza pessoal, a intimidade, as afinidades, etc. deviam despertar nos indivíduos de sexos diferentes o desejo de relações sexuais; que, tanto para os homens como para as mulheres, não era de todo indiferente com quem ter as relações mais íntimas. Mas daí ao amor sexual moderno ainda vai uma grande distância. Em toda a antiguidade, são os pais que combinam os casamentos, em vez dos interessados; e estes conformam-se, tranqüilamente. O pouco amor conjugal que a antiguidade conhece não é uma inclinação subjetiva, e sim, mais concretamente, um dever objetivo; não é a base, e sim o complemento do matrimônio. O amor, no sentido moderno da palavra, somente se apresenta na antiguidade fora da sociedade oficial. Os pastores, cujas alegrias e penas de amor nos são cantadas por Teócrito ou Moscos, e por Longo no seu Dafne e Cloé, não passam de simples escravos que não têm participação no Estado, esfera em que se move o cidadão livre. Mas, excluídos os escravos, não encontramos relações amorosas senão como um produto da decomposição do mundo antigo, quando este já está em pleno declínio; e são relações mantidas com mulheres que também vivem fora da sociedade oficial, hetairas, isto é, estrangeiras ou libertas: em Atenas, às vésperas de sua queda, e em Roma, sob os imperadores. Se havia ali relações amorosas entre cidadãos e cidadãs livres, todas eram mero adultério. E o amor sexual, tal como nós o entendemos, era algo tão pouco importante para o velho Anacreonte - o cantor clássico do amor na antiguidade -, que mesmo o sexo da pessoa amada lhe era completamente indiferente.
O nosso amor sexual difere essencialmente do simples desejo sexual, do ecos dos antigos. Em primeiro lugar, porque supõe reciprocidade no ser amado, igualando, nesse particular, a mulher e o homem, ao passo que no ecos antigo se fica longe de consultá-la sempre. Em segundo lugar, o amor sexual atinge um grau de intensidade e de duração que transforma em grande desventura, talvez a maior de todas, para os amantes, a falta de relações íntimas ou a separação; para que se possuam não recuam diante de coisa alguma e arriscam mesmo suas vidas, o que não acontecia na antiguidade, senão em caso de adultério. E, por fim, surge um novo critério moral para jurar as relações sexuais. Já não se pergunta apenas - "São legítimas ou ilegítimas ?" - pergunta-se também: "São filhas do amor e de um afeto recíproco ?" É evidente que, na prática feudal ou burguesa, esse critério não é mais respeitado do que qualquer outro critério moral; passa por cima dele; equivalente aos demais, é reconhecido em teoria, no papel. E, por ora, não se pode pedir mais.
A Idade Média parte do ponto em que se deteve a Antigüidade, com seu amor sexual em embrião, isto é, parte do adultério. Já descrevemos o amor cavalheiresco, que inspirou Tagelieder. Deste amor, que tende a destruir o matrimônio, ao amor que lhe há de servir de base, há um longo caminho que a cavalaria jamais percorreu até o fim. Mesmo quando passamos dos frívolos povos latinos aos virtuosos alemães, vemos, no poema dos Nibelungos, que Krimhilda, embora esteja secretamente apaixonada por Siegfried e este por ela, quando Gunther lhe anuncia que a prometeu a um cavaleiro cujo nome não diz, responde apenas: "Não me precisais suplicar, farei aquilo que me ordenais; estou disposta, senhor, de boa-vontade, a unir-me àquele que me dais por marido. Não ocorre, de modo algum, a Krimhilda a idéia de que seu amor possa ser levado em conta naquele assunto. Gunther pede a mão de Brunilda e Etzel a de Krimhilda, sem jamais as terem visto. Do mesmo modo, em Gutrun, Sigebant da Irlanda intenta casar-se com a norueguesa Ute, Hetel de Hegelingen com Hilda da Irlanda e, finalmente, Siegfried de Morlândia, Hartmut da Ormânia e Herwig da Seelândia, pedem, os três, a mão de Gutrun; e só aqui acontece que esta se pronuncia livremente pelo último. Normalmente, a noiva do jovem príncipe é escolhida pelos pais dele, se ainda vivem, ou se não pelo próprio príncipe, aconselhado pelos grandes senhores feudais cuja opinião tem muito peso nesses casos. E certamente não pode ser de outro modo. Para o cavaleiro ou barão, como também para o príncipe, o matrimônio é um ato político, uma questão de aumento do poder mediante novas alianças; o interesse da Casa é que decide, não as inclinações do indivíduo. Como poderia, assim, caber ao amor a última palavra na determinação dos casamentos ?
O mesmo acontece com os burgueses das corporações, nas cidades da Idade Média. Os próprios privilégios que os protegem, as cláusulas dos regulamentos gremiais, as complicadas fronteiras que os separam legalmente, ora de outras corporações, ora de seus companheiros da mesma corporação, ou dos seus oficiais e aprendizes, tornavam bastante estreito o círculo em que podiam buscar esposas adequadas. Nesse complexo sistema, evidentemente, não era o gosto pessoal e sim a conveniência de família que determinava qual a mulher que mais convinha.
Na maioria dos casos, portanto, e até o final da Idade Média, o matrimônio continuou sendo o que tinha sido desde sua origem: um contrato não firmado pelas partes interessadas. A princípio, vinha-se ao mundo já casado com todo um grupo de seres do outro sexo. Depois, na forma posterior de matrimônio por grupos, é de se crer que as condições fossem análogas, mas com estreitamento progressivo do círculo. No matrimônio sindiásmico, é regra que as mães combinem entre si o casamento de seus filhos; também aqui, o fator decisivo é o desejo de que os novos laços de parentesco robusteçam a posição do jovem par na gens e na tribo. E., quando a propriedade privada se sobrepôs à propriedade coletiva, quando os interesses da transmissão por herança fizeram nascer a preponderância do direito paterno e da monogamia, o matrimônio começou a depender inteiramente de considerações econômicas. Desaparece a forma de matrimônio por compra, mas, em essência, continua sendo praticado cada vez mais, e de modo que não só a mulher tem seu preço, como também o homem, embora não segundo suas qualidades pessoais e sim conforme a importância de seus bens. Na prática, e desde o princípio, se havia alguma coisa inconcebível para as classes dominantes era que a inclinação mútua dos interessados pudesse ser a razão por excelência do matrimônio. Isto só se passava nos romances ou entre as classes oprimidas - que não se contavam para nada.
Tal era a situação com que se encontrou a produção capitalista quando, a partir da era dos descobrimentos geográficos, se pôs a conquistar o domínio do mundo através do comércio universal e da indústria manufatureira. É de se supor que este modo de matrimônio lhe conviesse excepcionalmente, e isso era realmente verdade. E, entretanto - a ironia da história do mundo é insondável - seria precisamente o capitalismo que abriria nesse modo de matrimônio a brecha decisiva. Ao transformar todas as coisas em mercadorias, a produção capitalista destruiu todas as antigas relações tradicionais e substituiu os costumes herdados e os direitos históricos pela compra e venda, pelo "livre" contrato. O jurisconsulto inglês H. S. Maine acreditou ter feito um descobrimento extraordinário ao dizer que nosso progresso em relação às épocas anteriores consiste em que passamos from status to contract, isto é, de uma ordem de coisas herdada para outra livremente consentida uma afirmação que, na medida em que é correta, já se encontrava de há muito no Manifesto Comunista.
Mas, para firmar contratos, é necessário que haja pessoas que possam dispor livremente de si mesmas, de suas ações e de seus bens, e que se defrontem em igualdade de condições. Criar essas pessoas "livres" e "iguais" foi exatamente uma das principais tarefas da produção capitalista. Apesar de que, no começo, isto não se fez senão de uma maneira meio inconsciente e, além do mais, sob o disfarce da religião, a partir da Reforma luterana e calvinista, ficou firmemente assentado o principio de que o homem não é completamente responsável por suas ações senão quando as pratica com pleno livre arbítrio, e que é um dever ético a oposição a tudo que o constrange prática de um ato imoral. Mas como pôr de acordo esse princípio com as práticas, usuais até então, para contratar o casamento ? Segundo o conceito burguês, o matrimônio era um contrato, uma questão de Direito, e certamente a mais importante de todas, pois dispunha do corpo e da alma de dois seres humanos para toda a vida. É verdade que, naquela época, o matrimônio era o acordo formal de duas vontades; sem o "sim" dos interessados, nada se fazia. Sabia-se, contudo, muito bem, como se obtinha o "sim" e quais eram os verdadeiros autores do matrimônio. Mas, uma vez que para todos os demais contratos se exigia a liberdade real para decidir, por que não era exibida a liberdade neste contrato ? Os jovens que deviam ser unidos não tinham também o direito de dispor livremente deles mesmos, de seu corpo e de seus órgãos ? Não se havia posto em moda, graças á cavalaria, o amor sexual ?Contra o amor adúltero da cavalaria, não seria o amor conjugal a verdadeira forma burguesa do amor? Mas, se o dever dos esposos era o amor recíproco, não seria dever dos que se amavam o de não casarem senão um com o outro, e não com alguma outra pessoa qualquer? E este direito dos que se amavam não seria superior ao direito do pai e da mãe, dos parentes e demais "casamenteiros" tradicionais ? Desde o momento em que o direito á livre investigação pessoal penetrava na Igreja e na religião, poderia acaso deter-se ante a intolerável pretensão da velha geração de dispor do corpo, da alma, dos bens de fortuna, da ventura e da desventura da geração mais jovem ?
Forçosamente essas questões deveriam surgir numa época em que se afrouxavam todos os antigos vínculos sociais e em que eram sacudidos os fundamentos de todas as concepções tradicionais. A Terra havia se tornado rapidamente dez vezes maior; em lugar de apenas um quadrante do hemisfério, o globo inteiro se estendia agora ante os olhos dos europeus ocidentais, que se apressaram a tomar posse dos outros sete quadrantes. E, ao mesmo tempo que as antigas e estreitas fronteiras do país natal, caíam as milenárias barreiras impostas ao pensamento da Idade Média. Um horizonte infinitamente mais extenso se abria ante os olhos e o espírito do homem. Que importância podiam ter a reputação de honorabilidade e os respeitáveis privilégios corporativos, transmitidos de geração em geração, para o jovem que era atraído pelas riquezas das Índias, pelas minas de ouro e prata do México e do Potosi ? Aquela foi a época da cavalaria andante da burguesia; porque também esta teve o seu romantismo e o seu delírio amoroso, mas numa base burguesa e, em última análise, com objetivos burgueses.
Assim, sucedeu que a burguesia nascente, sobretudo a dos países protestantes, onde se sacudiu de uma maneira mais profunda a ordem de coisas existente, foi reconhecendo cada vez mais a liberdade de contrato para o matrimônio e pôs em prática a sua teoria, da maneira que descrevemos. O matrimônio continuou sendo um matrimônio de classe, mas no seio da classe concedeu-se aos interessados certa liberdade de escolha. E, no papel, tanto na teoria moral como nas narrações poéticas, nada ficou tão inquebrantavelmente estabelecido como a imoralidade de todo casamento não baseado num amor sexual recíproco e num contrato de cônjuges efetivamente livres. Em resumo: proclamava-se como um direito do ser humano o matrimônio por amor, e não só como droit de I’homme, mas também, e por exceção, como um droit de la femme..
Mas este direito humano diferia em um ponto de todos os demais chamados direitos humanos. Ao passo que estes, na prática, estavam reservados para a classe dominante - a burguesia - e reduziam-se direta ou indiretamente a letra morta para a classe oprimida - o proletariado - , aqui se confirma ainda uma vez a ironia da história. A classe dominante continuou submetida às influências econômicas conhecidas e, somente por exceção, apresenta casos de casamento realizados verdadeiramente com toda a liberdade; enquanto que esses Casamentos, como já vimos, constituem a regra nas classes oprimidas.
O matrimônio, pois, só se realizará com toda a liberdade quando, suprimidas a produção capitalista e as condições, de propriedade criadas por ela, forem removidas todas as considerações econômicas acessórias que ainda exercem uma influência tão poderosa na escolha dos esposos. Então, o matrimônio já não terá outra causa determinante que não a inclinação recíproca.
E, desde que o amor sexual é, por sua própria natureza, exclusivista - embora em nossos dias esse exclusivismo só se realize plenamente sobre a mulher - o matrimônio baseado no amor sexual será, por sua própria natureza, monogâmico. Vimos quanta razão tinha Bachofen em considerar o progresso do matrimônio por grupos ao matrimônio por pares como obra devida sobretudo à mulher; apenas a passagem do casamento sindiásmico à monogamia pode ser atribuída ao homem, e historicamente consistiu, na essência, num rebaixamento da posição das mulheres e numa facilitação da infidelidade dos homens. Por isso, quando chegarem a desaparecer as considerações econômicas em virtude das quais as mulheres foram obrigadas a aceitar essa infidelidade masculina habitual - a preocupação pela própria subsistência e, ainda mais, pelo futuro dos filhos - a igualdade alcançada pela mulher, a julgar por toda a nossa experiência anterior, influirá muito mais no sentido de tornar os homens monógamos do que no de tornar as mulheres poliandras.
Mas o que, sem sombra de dúvida, vai desaparecer da monogamia é o conjunto dos caracteres que lhe foram impressos pelas relações de propriedade a que deve sua origem. Esses caracteres são, em primeiro lugar, a preponderância do homem e, depois, a indissolubilidade do matrimônio. A preponderância do homem no matrimônio é conseqüência evidentemente de sua preponderância econômica e desaparecerá por si mesma com esta última. A indissolubilidade do matrimônio é conseqüência, em parte, das condições econômicas que engendraram a monogamia e, em parte, uma tradição da época em que, mal compreendida ainda, a vinculação dessas condições econômicas com a monogamia foi exagerada pela religião. Atualmente, já está fendida por mil lados. Se o matrimônio baseado no amor é o único moral, só pode ser moral o matrimônio onde o amor persiste. Mas a duração do acesso de amor sexual é muito variável, segundo os indivíduos, particularmente entre os homens; em virtude disso, quando o afeto desaparece ou é substituído por um novo amor apaixonado, o divórcio será um benefício, tanto para ambas as partes como para a sociedade. Apenas deverá poupar-se ao casal o ter que passar pelo lodaçal inútil de um processo de divórcio.
Assim, pois, o que podemos conjecturar hoje acerca da regularização das relações sexuais após a iminente supressão da produção capitalista é, no fundamental, de ordem negativa, e fica limitado principalmente ao que deve desaparecer. Mas o que sobreviverá ? Isso se verá quando uma nova geração tenha crescido: uma geração de homens que nunca se tenham encontrado em situação de comprar, à custa de dinheiro, nem com a ajuda de qualquer outra força social, a conquista de uma mulher; e uma geração de mulheres que nunca se tenham visto em situação de se entregar a um homem em virtude de outras considerações que não as de um amor real, nem de se recusar a seus amados com receio das conseqüências econômicas que isso lhes pudesse trazer. E, quando essas gerações aparecerem, não darão um vintém por tudo que nós hoje pensamos que elas deveriam fazer. Estabelecerão suas próprias normas de conduta e, em consonância com elas, criarão uma opinião pública para julgar a conduta de cada um. E ponto final.
Voltemos, todavia, a Morgan, de quem nos afastamos muito. O estudo histórico das instituições sociais que se desenvolveram durante o período da civilização excede os limites de seu livro. Por isso, ele se ocupa muito pouco dos destinos da monogamia durante este período. Também ele vê na evolução da família monogâmica um progresso, uma aproximação da plena igualdade de direitos entre ambos os sexos, sem considerar, entretanto, que esse objetivo tenha sido alcançado. Mas - diz - "se se reconhece o fato de que a família tenha atravessado sucessivamente quatro formas e se encontra atualmente na quinta forma, coloca-se a questão de saber se esta forma pode ser duradoura no futuro. A única coisa que se pode responder é que a família deve progredir na medida em que progrida a sociedade, que deve modificar-se na medida em que a sociedade se modifique; como sucedeu até agora. A família é produto do sistema social e refletirá o estado de cultura desse sistema. Tendo a família monogâmica melhorado a partir dos começos da civilização e, de uma maneira muito notável, nos tempos modernos, é lícito pelo menos supor que seja capaz de continuar seu aperfeiçoamento até que chegue à igualdade entre os dois sexos. Se, num futuro remoto, a família monogâmica não mais atender às exigências sociais, é impossível predizer a natureza da família que lhe sucederá".
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(1) Bachofen prova quão pouco compreendeu daquilo que descobrira, ou antes adivinhara, ao designar tal estado primitivo com o nome de “heterismo”. Quando os gregos introduziram esta palavra no seu idioma, o heterismo significava para eles contato carnal de homens solteiros ou monógamos com mulheres não casadas; o heterismo supunha sempre, portanto, uma forma definida de matrimônio, fora da qual esse comércio sexual se realiza, e admite a prostituição, pelo menos como possibilidade. Jamais a palavra foi empregada em sentido diverso: assim a emprego eu, assim a usou Morgan. Bachofen leva todas as suas importantíssimas descobertas a um plano de inacreditável misticismo, pois imagina que as relações entre homens e mulheres, a transformarem-se com a evolução histórica, têm origem nas idéias religiosas da humanidade em cada época, e não nas suas condições reais de existência. (Nota de Engels)
(2) Em uma carta escrita na primavera de 1882, Marx condena, nos mais ásperos termos, o falseamento dos tempos primitivos nos Nibelungos de Wagner. “Onde já se viu que o irmão abrace a irmã como uma noiva?” A estes “deuses da luxúria” wagnerianos, que, no estilo moderno, tornam mais picantes as suas aventuras amorosas com certa dose de incesto, responde Marx: “Nos tempos primitivos, a irmã era esposa e isso era moral”. (Nota de Engels)
(3).Os vestígios das relações sexuais sem restrições, que Bachofen acredita ter descoberto no seu “Sumpfzeugang”, referem-se ao matrimônio por grupos, do qual é hoje impossível duvidar. “Se Bachofen acha licenciosos os matrimônios punaluanos, um homem daquela época consideraria a maior parte dos casamentos atuais entre primos próximos ou distantes, por linha paterna ou materna, tão incestuoso como os casamentos entre irmãos consangüíneos”. (Marx). (Nota de Engels)
III
A GENS IROQUESA

Chegamos, agora, a outro descobrimento de Morgan, pelo menos tão importante quanto a reconstituição da forma primitiva da família através dos sistemas de parentesco. A demonstração de que os grupos de consangüíneos, designados por nomes de animais no seio de uma tribo de índios americanos, são essencialmente idênticos às genes dos gregos e às gentes dos romanos; de que a forma americana é a forma original da gens, sendo a forma greco-romana uma forma posterior, derivada; de que toda a organização social dos gregos e romanos dos tempos primitivos em gens, fratria e tribo encontra seu fiel paralelo na organização dos indígenas americanos; de que a gens ( na medida em que podemos julgar pelas nossas fontes atuais de conhecimento ) é uma instituição comum a todos os bárbaros até sua passagem à civilização e mesmo depois dela; essa demonstração esclareceu, de repente, as partes mais difíceis da antiga história grega e romana e, ao mesmo tempo, revelou-nos os traços fundamentais do regime social da época primitiva, anterior à criação do Estado. Por muito simples que isso pareça depois de conhecido, só muito recentemente Morgan o descobriu. Em seu trabalho anterior, publicado em 1871, ele ainda não tinha conseguido desvendar esse segredo, cujo descobrimento fez calar por algum tempo os historiadores ingleses da pré-história, normalmente loquazes.
A palavra latina gens, que Morgan usa para designar esse grupo de consangüíneos, procede, como a palavra grega de idêntico significado (genos), da raiz ariana comum gan (em alemão - onde, segundo a regra, o g ariano é substituído pelo k - kan), que significa "engendrar". Da mesma forma, significam linhagem ou descendência as palavras gens, em latim; genos, em grego; dschanas, em sânscrito; kuni, em gótico (consoante a regra já referida); kyn, no antigo escandinavo e anglo-saxão; kin, em inglês; e künne, no médio-alto-alemão. Contudo, gens em latim e genos em grego empregam-se especialmente para designar esse grupo que se jacta de constituir uma descendência comum ( do pai comum da tribo, no presente caso) e que está unido por certas instituições sociais e religiosas, formando uma comunidade particular, cuja origem e natureza permaneceram até agora, apesar de tudo, obscuras para todos os nossos historiadores.
Já vimos anteriormente, na família punaluana, o que é a gens em sua forma primitiva. Compõe-se de todas as pessoas que, pelo matrimônio punaluano, e de acordo com as concepções que nele necessariamente dominam, formam a descendência reconhecida de uma determinada antepassada, fundadora da gens. Sendo incerta a paternidade nessa forma de família, é válida apenas a filiação feminina. Como os irmãos não podem casar com as irmãs, e - só com mulheres de outra origem, os filhos procriados por essas mulheres ficam fora da gens, por força do direito materno. Assim, não permanecem no grupo senão os descendentes das filhas de cada geração; os descendentes dos filhos passam às gens de suas respectivas mães. Que sucede, então, com este grupo consangüíneo, desde que constituído como grupo à parte, em face de grupos similares no seio de uma mesma tribo ?
Como forma clássica dessa gens primitiva, Morgan toma a dos iroqueses e, em geral, a dos senekas. Nessa tribo há oito gens, cada uma das quais com o nome de um animal: 1ª, lobo; 2ª, urso; 3ª, tartaruga; 4ª, castor; 5ª, cervo; 6ª, narceja; 7ª, garça; 8ª, falcão. Em todas as gens há os seguintes costumes:
1.São eleitos o sachem ( dirigente em tempo de paz) e o caudilho (chefe militar). O sachem deve ser escolhido dentro da própria gens e suas funções são internamente hereditárias, no sentido de serem imediatamente ocupadas em caso de vacância. O chefe militar pode ser escolhido fora da gens e, ás vezes, seu posto pode permanecer vago. Nunca é eleito sachem o filho do anterior, dada a vigência entre os iroqueses do direito materno, segundo o qual o filho pertence a outra gens, mas são eleitos freqüentemente o irmão do sachem anterior ou o filho de sua irmã. Todos, homens e mulheres, tomam parte na eleição. Mas ela deve ser ratificada pelas outras sete gens, e só depois de cumprida .esta condição é que o eleito é empossado, pelo conselho comum de toda a federação iroquesa. Mais adiante se verá a importância disso. O poder do sachem no seio da gens é paternal, de caráter puramente moral. Ele não dispõe de qualquer meio coercitivo. Além disso, por força mesmo de seu posto, é membro do conselho da tribo dos senekas e do conselho da federação de todos os iroqueses. O chefe militar unicamente pode dar ordens nas expedições militares.
2. A gens pode depor, à sua vontade, o sachem e o chefe militar. Nessas ocasiões, igualmente, tomam parte na votação tanto os homens como as mulheres. Os chefes depostos passam a ser, de imediato, simples guerreiros, pessoas privadas, como as demais. Também o conselho da tribo pode depor o sachem, mesmo contra a vontade das gens.
3. Nenhum membro da geras tem direito a casar-se no seio dela. Esta é a regra fundamental da gens, o vínculo que a mantém unida; é a expressão negativa do parentesco consangüíneo, parentesco muito positivo, em virtude da qual os indivíduos nela compreendidos realmente chegam a constituir uma gens. Com a descoberta deste simples fato, Morgan tornou clara, pela primeira vez, a natureza da gens. Como esta tinha sido pouco compreendida até então, dão-nos prova os relatos anteriormente feitos sobre os selvagens e as bárbaros, relatos onde os diferentes grupamentos que formavam a organização gentílica são por ignorância e indiscriminadamente denominados tribo, clã, thum, etc., e dos quais se dizia, de vez em quando, que no seio deles era proibido o casamento. Essa a origem da irreparável confusão, na qual Mac Lennan, como um Napoleão, pôs ordem com esta sentença inapelável: todas as tribos se dividem em tribos nas quais o casamento entre seus membros é proibido (exógamas) e tribos nas quais o casamento é permitido (endógamas). E, depois de ter embrulhado definitivamente as coisas, lançou-se às mais profundas investigações para descobrir qual das duas categorias fantásticas de sua invenção - a exogamia e a endogamia - era a mais antiga. Este absurdo desapareceu automaticamente com o descobrimento da gens baseada no parentesco consangüíneo e a conseqüente impossibilidade do casamento de seus membros entre si. É óbvio que, na fase em que encontrarmos os iroqueses, a proibição do matrimônio dentro da gens é observada de maneira inflexível.
4. A propriedade dos que faleciam passava aos demais membros da gens, pois não devia sair dela. Dado o montante reduzido do que um iroquês pudesse deixar por sua morte, a herança era dividida entre os parentes gentílicos mais próximos, quer dizer, entre seus irmãos e irmãs carnais, e o irmão de sua mãe, se o defunto era homem; e, se era mulher, entre seus filhos e irmãs carnais, excluídos os irmãos da falecida. Por ser assim, marido e mulher não podiam herdar um do outro, nem os filhos podiam herdar do pai.
5. Os membros da gens deviam-se mutuamente ajuda e proteção, sobretudo auxílio para vingar injúrias feitas por estranhos. Cada indivíduo confiava sua segurança à proteção da gens - e podia fazê-lo; qualquer agravo contra ele atingia a gens inteira. Daí, dos laços de sangue na gens, nasceu a obrigatoriedade da vingança, reconhecida integralmente pelos iroqueses. Se um estranho matava um dos membros da gens, todos os outros estavam obrigados a vingá-lo. Procurava se, primeiro, uma mediação; a gens do assassino se reunia em conselho e fazia propostas de solução pacífica à gens da vítima, oferecendo, quase sempre, a expressão do seu pesar e alguns valiosos presentes; se estes fossem aceitos, o assunto estava encerrado. Em caso contrário, a gens ofendida designava um ou mais vingadores, cujo dever era perseguir e matar o assassino. Se isto acontecia, a gens deste último não tinha qualquer direito a queixar-se - estavam acertadas as contas.
6. A gens tem nomes característicos, ou uma série de nomes, que somente ela, em toda a tribo, tem o direito de usar, de maneira que o nome de um indivíduo indica imediatamente a gens a que ele pertence. Um nome gentílico implica sempre, pois, em direitos gentílicos.
7. A gens pode adotar estranhos, admitindo-os, dessa maneira, na tribo. Os prisioneiros de guerra não condenados à morte, adotados por uma das gens, tornavam-se membros da tribo dos senekas, entrando na posse de todos os direitos gentílicos e tribais. Fazia-se a adoção por proposta individual de algum membro da gens, algum homem que tomava o estrangeiro por irmão ou irmã, ou alguma mulher que o tomava como filho. A admissão solene era necessária para confirmação. Freqüentemente, reforçavam-se as gens reduzidas em número por causas excepcionais, adotando em massa membros de outra gens, com o consentimento desta última. Entre os iroqueses, a admissão solene na gens fazia-se em sessão pública do conselho da tribo, o que tornava esta solenidade praticamente uma cerimônia religiosa.
8. É difícil provar nas gens índias a existência de solenidades religiosas especiais; e, no entanto, as cerimônias religiosas dos índios estão mais ou menos relacionadas com as gens. Nas seis festas anuais dos iroqueses, os sachens e os caudilhos militares, por força mesmo de seus cargos, eram. incluídos entre os "guardiães da fé" e exerciam funções sacerdotais.
9. A gens tem um lugar comum para enterrar seus mortos. O dos iroqueses do Estado de Nova York já desapareceu em meio ao cerco dos brancos, mas existiu outrora. E ainda existe entre outros índios, por exemplo, os tuscaroras, parentes próximos dos iroqueses. Mesmo quando cristãos, os tuscaroras têm no cemitério uma determinada fila de sepulturas para cada gens, de jeito que, ali, a mãe fica enterrada com os filhos numa fila e o pai em outra. E, também entre os iroqueses, toda a gens do morto vem ao enterro e se ocupa do túmulo, dos discursos fúnebres, etc.
10. A gens tem um conselho, a assembléia democrática de seus membros adultos, homens e mulheres, todos com o mesmo direito de voto. Esse conselho elege e depõe o sachem e o chefe militar, tal como os demais "guardiães da fé"; decide o preço do sangre (Wergeld) ou a vingança pelo assassinato de um membro da Gens; e adota os estrangeiros. Em síntese: é o poder soberano da gens.
Tais são as atribuições de uma típica gens indígena. "Seus membros são todos indivíduos livres, cada um obrigado a defender a liberdade dos outros; têm os mesmos direitos pessoais; nem os sachens nem os chefes militares pretendem ter qualquer espécie de preeminência; formam, no conjunto, uma coletividade fraternal, unida pelos vínculos de sangue. Liberdade, igualdade e fraternidade, esses são, embora nunca formulados, os princípios cordiais da gens, e esta última é por sua vez a unidade de todo um sistema social, a base da saciedade indígena organizada. Isso explica o indomável espírito de independência e a dignidade pessoal que toda a gente observa nos índios."
Na época do descobrimento da América, os índios de toda a América do Norte estavam organizados em gens, de acordo com o direito materno. Só em algumas tribos, como entre os dakotas, a gens havia desaparecido e, em outras, como entre os ojibwas e os omahas, estava organizada de acordo com o direito paterno.
Em numerosíssimas tribos indígenas que compreendem mais de cinco ou seis gens, encontramos três, quatro ou mais gens reunidas em um grupo especial, que Morgan, traduzindo fielmente o termo indígena para o seu correspondente grego, chama fratria (irmandade). Assim, os senekas têm duas fratrias; a primeira compreende a gens de 1 a 4 e a Segunda as gens de 5 a 8. Um estudo mais profundo mostra que estas fratrias representam quase sempre as gens primitivas em que se cindiu, no começo, a tribo; porque, dada a proibição do matrimônio no seio da gens, cada tribo devia necessariamente compreender pelo menos duas gens para ter uma existência independente. Na medida em que a tribo aumentava em número, cada gens tornava a se cindir em duas ou mais, que, desde então, apareciam, cada uma delas, como uma gens particular, ao passo que a gens primitiva, que abrange todas as gens-filhas, continua existindo como fratria. Entre os senekas e a maior parte dos índios, as gens de uma das fratrias são irmãs entre si, ao passo que as da outra são suas primas, nomes que - como vimos - têm no sistema de parentesco americano um significado muito real e muito expressivo. Originariamente, nenhum seneka podia casar-se no seio de sua fratria; entretanto, este costume desapareceu rapidamente, ficando limitada a proibição à gens. Segundo uma tradição que prevalece entre os senekas, o "urso" e o "cervo" foram as duas gens primitivas das quais surgiram, com o tempo, as demais. Uma vez sedimentada, essa nova organização foi se modificando de acordo com as necessidades. A fim de manter o equilíbrio, se se extinguiam as gens de uma fratria, fazia-se, às vezes, a incorporação a ela de gens inteiras de outras fratrias. Por isso, encontramos, em diferentes tribos, gens do mesmo nome agrupadas em fratrias distintas.
As funções da fratria entre os iroqueses são em parte sociais, em parte religiosas: 1) O jogo da pelota é disputado pelas fratrias, uma contra a outra; cada uma designa os seus melhores jogadores, e os demais índios, formando grupos por fratrias, assistem à peleja e apostam na vitória dos seus. 2) No conselho da tribo, sentam-se juntos os sachens e os chefes militares de cada fratria, colocando-se frente a frente os dois grupos. E cada orador se dirige aos representantes de cada fratria como a uma corporação distinta. 3) Se, na tribo, se cometia um homicídio, e o assassino e a vítima não pertenciam à mesma fratria, a geras ofendida apelava freqüentemente para as suas geras irmãs, que celebravam um conselho de fratria e se dirigiam à outra fratria como corporação, com o objetivo de que por esta fosse igualmente convocado um conselho para se resolver o assunto. Neste caso, a fratria aparece de novo como a gens primitiva, e com muito maiores probabilidades de êxito que a gens sozinha, sua filha, mais débil. 4) Em caso de falecimento de pessoa importante, a fratria aposta ficava encarregada de organizar e dirigir o funeral, para que a fratria do defunto dele participasse como conjunto de parentes que o choravam. Se morria um sachem era a fratria oposta que anunciava a vacância de seu cargo no conselho federal dos iroqueses. 5) O conselho da fratria intervinha igualmente quando se elegia um sachem. A ratificação do eleito pelas gens irmãs era usualmente considerada quase segura; mas as gens da outra fratria podiam opor-se à eleição. Nesse caso, reunia-se o conselho desta fratria e, se a oposição fosse mantida, a eleição era declarada nula. 6) Os iroqueses tinham, a princípio, mistérios religiosos particulares, que os brancos chamavam "medicine lodges". Tais mistérios eram celebrados entre os senekas por duas associações religiosas, correspondentes às duas fratrias, com um ritual especial para a iniciação de novos membros. 7 ) Se, como é quase certo, as quatro linhagens (gens) que habitavam, ao tempo da conquista, os quatro bairros de Tlacalá, eram quatro fratrias, isto prova que as fratrias constituíam também unidades militares, como acontecia entre os gregos e em outras uniões gentílicas análogas entre os germanos; cada uma dessas quatro linhagens ia à guerra como exército independente, com seu uniforme e sua bandeira própria, sob comando de um chefe próprio.
Assim como várias gens formam uma fratria, de igual modo, na forma clássica, várias fratrias constituem uma tribo; em alguns casos nas tribos mais débeis, falta o elo intermediário, a fratria. Que é, pois, que caracteriza uma tribo indígena da América ?
1. Um território próprio e um nome particular. Fora do local onde estava instalada, cada tribo possuía, ainda, um extenso território para a caça e a pesca. Além deste, estendia-se uma ampla zona neutra, que chegava até ó território da tribo mais próxima, zona que era mais estreita entre as tribos de mesma língua, e, mais larga entre as que não possuíam o mesmo idioma. Esta zona vinha a ser o mesmo que o bosque limítrofe dos germanos, o deserto que os suevos de César criavam ao redor de seu território, o isarnholt (em dinamarquês jarnved, limes Danicus) entre dinamarqueses e alemães, o sachsenwald e o branibor (eslavo: bosque protetor), que deu seu nome ao Brandemburgo, entre alemães e eslavos. Este território, compreendido dentro de fronteiras tão incertas, era , o país comum da tribo, reconhecido como tal pelas tribos vizinhas, e que ela mesma defendia contra os invasores. Na maioria dos casos, a imprecisão das fronteiras não suscitou inconvenientes na prática senão quando a população cresceu de modo considerável. Os nomes das tribos parecem ser devidos ao acaso mais que a uma escolha intencional; com o tempo, sucedeu freqüentemente que uma tribo fosse conhecida entre suas vizinhas por um nome diferente daquele que ela mesma se dava, como ocorreu com os alemães, aos quais os celtas chamavam de germanos, tornando-se este o seu primeiro nome histórico coletivo.
2. Um dialeto particular, próprio só desta tribo. De fato, a tribo e o dialeto são substancialmente uma e a mesma coisa. A formação de novas tribos e novos dialetos, em conseqüência de uma cisão, acontecia ainda até há pouco tempo na América e não deve ter cessado por completo. Onde duas tribos enfraquecidas se fundem em uma só, ocorre excepcionalmente que, na mesma tribo, sejam falados dois dialetos muito próximos. A força numérica média das tribos americanas é de umas duas mil almas; entretanto, os cherokees contam aproximadamente vinte e seis mil, o maior número de índios nos Estados Unidos que falam o mesmo dialeto.
3. O direito de dar posse solene aos sachens e chefes militares eleitos pelas gens.
4. O direito de depô-los, ainda que contra a vontade das suas respectivas gens. Como os sachens e os chefes militares são membros do conselho tribal, esses direitos da tribo quanto a eles explicam-se por si mesmos. Onde se haja formado uma federação de tribos e onde o conjunto destas se ache representado por um conselho da federação esses direitos passam ao conselho.
5. Idéias religiosas (mitologia) e ritos comuns. "Os índios eram, á sua maneira bárbara, um povo religioso". Sua mitologia ainda não foi estudada criticamente. Personificavam, já, suas idéias religiosas (espíritos de todas as espécies), mas a fase inferior da barbárie em que estavam desconhece ainda as representações plásticas, os chamados ídolos. Há entre eles um culto da natureza, dos elementos, que tende para o politeísmo. As diferentes tribos tinham suas festividades regulares, com formas de culto determinadas, principalmente danças e jogos. A dança, principalmente, era parte essencial de todas as solenidades religiosas. Cada tribo celebrava separadamente suas próprias festas.
6. Um conselho de tribo para os assuntos comuns. Compunha-se dos sachens e chefes militares de todas as gens seus legítimos representantes, porquanto podiam sempre ser depostos e substituídos. O conselho deliberava em público, diante dos demais membros da tribo, aos quais se permitia tomar a palavra e expressar sua opinião; o conselho é que decidia. Como regra geral, o conselho ouvia todo assistente que desejasse falar; também as mulheres opinavam, através de um orador escolhido por elas. Entre os iroqueses as resoluções definitivas deviam ser tomadas por unanimidade, tal como para certas decisões nas comunidades das marcas alemãs. O conselho tribal ficava encarregado, particularmente, das relações com outras tribos. Recebia e mandava embaixadas, declarava a guerra e concluía a paz. Declarada a guerra, ela era sustentada principalmente por voluntários. Em princípio, cada tribo se considerava em estado de guerra com todas as outras com as quais não tivesse firmado expressamente um tratado de paz. As expedições contra tais inimigos eram organizadas, na maioria, por uns tantos guerreiros notáveis. Estes executavam uma dança de guerra, e todo aquele que os acompanhasse na dança manifestava, desse modo, seu desejo de participar da campanha. Formava-se em seguida o destacamento e se punha em marcha. Grupos de voluntários, igualmente, costumavam encarregar-se da defesa do território da tribo atacada. A partida e o regresso desses grupos de guerreiros davam sempre lugar a festividades públicas. Para tais expedições não era necessária a aprovação do conselho tribal, aprovação que não era dada nem pedida. Essas expedições eram exatamente como as expedições particulares das companhias germanas descritas por Tácito, com a diferença única de terem os grupos de guerreiros entre os germanos um caráter já mais fixo, constituindo um sólido núcleo já organizado em tempo de paz, e, em torno do qual, quando há guerra, se concentram os voluntários. Os destacamentos dessa espécie raramente são muito numerosos; mesmo as expedições indígenas mais importantes e de maiores distâncias eram realizadas com forças relativamente insignificantes. Quando se juntavam vários desses destacamentos para uma grande empresa, cada um deles obedecia a seu próprio chefe; a unidade do plano de campanha era assegurada, bem ou mal, pelo conselho desses chefes. Assim faziam a guerra os alemães do alto Reno no século IV, de acordo com a descrição de Amiano Marcelino.
7. Em algumas tribos, encontramos um chefe supremo (Oberhäuptling), cujas atribuições são sempre muito restritas. É um dos sachens que, no caso de se tornar necessária uma ação rápida, deve tomar medidas provisórias até que se possa reunir o conselho e deliberar em caráter definitivo. É um tênue embrião de poder executivo, semente que não vinga na evolução ulterior, pois o poder executivo sai na maioria dos casos, talvez em todos, do supremo chefe militar (obersten Heerführer) .
A grande maioria dos índios americanos não foi além da união em tribos. Estas, pouco numerosas, separadas umas das outras por vastas zonas fronteiriças e debilitadas por contínuas guerras, ocupavam imensos territórios bem pouco povoados. Aqui e ali, formavam-se alianças entre tribos consangüíneas, por força de necessidades momentâneas, com cuja extinção se acabavam também elas, as alianças. Em certas comarcas, no entanto, tribos aparentadas na origem e depois separadas ligaram-se em federações permanentes, dando assim o primeiro passo no sentido da formação de nações. Nos Estados Unidos, a forma mais desenvolvida de uma federação dessa natureza pode ser encontrada entre os iroqueses. Abandonando suas residências do oeste do Mississipi, onde provavelmente constituíam um ramo da grande família dos dakotas, estabeleceram-se, depois de longas peregrinações, no atual Estado de Nova York, divididos em cinco tribos: a dos senekas, a dos cayugas, a dos onondagas, a dos oneidas e a dos mohawks. Viviam da pesca, da caça e de uma rudimentar horticultura; residiam em aldeias, na maior parte fortificadas com estacadas. jamais excederam vinte mil criaturas, em número; e tinham o mesmo número de gens em cada tribo, falavam dialetos parecidíssimos da mesma língua e ocupavam um território continuo repartido entre as cinco tribos. Sendo de conquista recente este território, a cooperação dessas tribos na ação contra aquelas que tinham sido deslocadas era absolutamente natural. Nos primeiros anos do século quinze, no máximo, essa colaboração se converteu em uma "liga permanente", em uma confederação que, cônscia de sua nova força, não tardou em assumir um caráter agressivo; e ao chegar ao seu apogeu - por volta de 1675 – havia conquistado vastas regiões adjacentes, cujos habitantes em parte expulsou, transformando os restantes em tributários. A confederação iroquesa apresenta a organização social mais desenvolvida, alcançada pelos índios antes de superar a rase inferior da barbárie, excluídos, portanto, os mexicanos, neo-mexicanos e peruanos. As características principais da confederação eram as seguintes:
1. Aliança perpétua entre as cinco tribos consangüíneas, baseada na plena igualdade e na independência de cada uma delas relativamente aos assuntos internos. Esta consangüinidade constituía o verdadeiro fundamento da confederação. Das cinco tribos, três levavam o nome de tribos-mães e eram irmãs entre si, como o eram igualmente as outras duas, que se chamavam tribos-filhas. Três gens - as mais antigas - tinham ainda representantes vivos em todas as cinco tribos, ao passo que outras três gens tinham representantes em três tribos. Os membros de cada uma dessas gens eram irmãos entre si, em todas as cinco tribos. A língua comum, sem outras diferenças que não as de natureza dialetal, era a expressão e a prova da comunidade de origem.
2. O órgão da confederação era um conselho federal de cinqüenta sachens, todos de igual importância e dignidade; este conselho decidia, em última instância, todos os assuntos das tribos aliadas.
3. Esses cinqüenta títulos de sachem, quando constituída a confederação, foram distribuídos entre as tribos e as gens, aos representantes dos novos cargos, expressamente criados para as necessidades da confederação. Em caso de vacância de um desses cargos, a gens interessada elegia um substituto, que podia sempre ser deposto. Mas o direito de empossá-los pertencia ao conselho federal.
4. Estes sachens federais eram também sachens em suas tribos respectivas e tinham voz e voto no conselho da tribo.
5. Todas as decisões do conselho federal tinham que ser unânimes.
6. O voto dava-se por tribo, de modo que todas as tribos e todos os membros do conselho de cada tribo tinham que estar de acordo para que se pudesse tomar uma decisão válida.
7. Cada um dos cinco conselhos tribais podia convocar o conselho federal, mas este não podia convocar-se a si mesmo.
8. As sessões eram realizadas diante do povo reunido; cada iroquês podia tomar a palavra, mas as decisões eram tomadas só pelo conselho.
9. A confederação não tinha oficialmente um chefe com poder executivo.
10. No entanto, tinha dois chefes militares supremos, com iguais atribuições e poderes (os dois "reis" de Esparta, os dois cônsules de Roma).
Tal é toda a constituição social sob a qual viveram e vivem ainda os iroqueses há mais de quatrocentos anos. Dei a descrição dela feita por Morgan em todos os pormenores, porque aqui podemos estudar a organização de uma sociedade que não conhecia ainda o Estado. O Estado pressupõe um, poder público especial, distinto do conjunto dos cidadãos que o compõem. Maurer reconhece com fiel instinto, na constituição da marca alemã, uma instituição puramente social, diferente, na essência, do Estado, ainda que mais tarde lhe tenha servido de base, em grande parte. Em todos os seus trabalhos Maurer observa o gradual desenvolvimento do poder público, não só a partir das constituições primitivas das marcas, aldeias, feudos e cidades, como também paralelamente a elas.
Os índios norte-americanos nos mostram como uma tribo originariamente unida se difunde pouco a pouco por um continente imenso; como, cindindo-se, as tribos convertem-se em povos, em grupos inteiros de tribos; como se modificam as línguas, não só até chegarem a ser incompreensíveis umas para as outras, como também até o desaparecimento de qualquer vestígio da primitiva unidade; como as próprias gens se fragmentam no seio das tribos, e como as gens-mães persistem sob forma de fratria; e como os nomes dessas tribos mais antigas se mantêm nas tribos mais distantes e há mais tempo separadas - o lobo e o urso ainda hoje são nomes gentílicos na maioria das tribos índias. De modo geral, a constituição acima descrita corresponde a todas as tribos, exceto aquelas muitas que não chegaram a organizar a confederação entre tribos parentes.
Dada a gens como unidade social, vemos, também, com que necessidade quase iniludível, porque natural, dela se deduz todo o sistema gens-fratria-tribo. Os três grupos são diferentes gradações de consangüinidade, cada um completo em si, tratando de seus assuntos próprios, mas suplementando igualmente os demais. O círculo dos assuntos compreendidos na esfera das três gradações abrange o conjunto dos negócios sociais da generalidade dos bárbaros na fase inferior. Sempre, portanto, que em um povo encontremos a gens como unidade social, deveremos encontrar uma organização tribal semelhante à que descrevemos; e onde não faltam as nossas fontes de informação - como entre gregos e romanos - não apenas a encontraremos, mas também nos convenceremos de que, em todas as partes onde essas fontes são deficientes, a comparação com a constituição social americana nos ajuda a esclarecer as maiores dúvidas e a desvendar os maiores enigmas.
Admirável essa constituição da gens, com toda a sua ingênua simplicidade! Sem soldados, policiais, nobreza, rei, governadores, prefeitos ou juízes, sem cárceres ou processos, tudo caminha com regularidade. Todas as querelas, todos, conflitos são dirimidos pela coletividade a que concernes, pela gens ou pela tribo, ou ainda pelas gens entre si. Só como último recurso - raras vezes empregado - aparece a vingança, da qual a nossa pena de morte é apenas uma forma civilizada, com as vantagens e os inconvenientes da civilização. Apesar de haver muito mais questões em comum do que no presente - a economia doméstica é feita em comum por uma série de famílias e de modo comunista; a terra é propriedade da tribo e os lares só dispõem, e temporariamente, de pequenas hortas - ainda assim, não é necessária nem sequer uma parte mínima da nossa vasta e complicada máquina administrativa. São os próprios interessados que resolvem as questões; e, na maioria dos casos, costumes seculares já tudo regulam. Não pode haver pobres nem necessitados: a família comunista e a gens têm consciência das suas obrigações para com os anciãos, os enfermos e os inválidos de guerra. Todos são iguais e livres, inclusive as mulheres. Ainda não há lugar para escravos e, como regra geral, não se subjugam tribos estrangeiras. Quando os iroqueses venceram, em 1651, os érios e as "nações neutras", propuseram-lhes que entrassem na confederação com iguais direitos; somente depois de terem os vencidos recusado a proposta é que foram expulsos de seu território. Que homens e que mulheres produziu semelhante sociedade é o que podemos ver na admiração de todos os brancos que lidaram com índios não degenerados, diante da dignidade pessoal, da retidão, da energia de caráter e da intrepidez desses bárbaros.
Recentemente, vimos na África exemplos dessa intrepidez. Os cafres de Zululándia, há alguns anos, e os núbios, há poucos meses (duas tribos entre as quais ainda não se extinguiram as instituições gentílicas), fizeram o que não saberia fazer tropa européia alguma. Armados apenas com lanças e dardos, sem armas de fogo e sob a chuva de balas dos fuzis de repetição da infantaria inglesa (reconhecida como a primeira do mundo no combate em formação cerrada), lançaram-se em cima das suas baionetas, semearam mais de uma vez o pânico entre ela e acabaram por derrotá-la, apesar da colossal desproporção das armas e de não terem, os nativos, nada semelhante a serviço militar e não saberem o que são exercícios militares. De sua capacidade e de sua resistência física, melhor dizem as queixas dos ingleses de que um cafre, em vinte e quatro horas, cobre maior distância do que um cavalo - e vai mais rápido. Como disse um pintor britânico: "Até o menor dos músculos desses homens sobressai, duro e acerado como fibra de chicote."
Tal era o aspecto dos homens e da sociedade humana, antes que se operasse a divisão em classes sociais. E, se compararmos a situação deles com a da imensa maioria dos homens civilizados de hoje, veremos que é enorme a diferença de condição entre o antigo e livre membro da gens - e o proletário ou o camponês atual.
Este é um aspecto da questão. Não esqueçamos, todavia, que essa organização estava condenada a desaparecer. Não foi além da tribo; a confederação de tribos já indica o princípio da sua decadência, conforme veremos, e como as tentativas feitas pelos iroqueses de submeter outras tribos mostraram. O que estava fora da tribo, estava fora da lei. Onde não havia tratado expresso de paz, imperava a guerra entre as tribos, e era feita com aquela crueldade que distingue o ser humano do resto dos animais, e que só mais tarde se suavizou pelo interesse. O regime da gens, no apogeu, como o vimos na América, supunha uma produção extremamente rudimentar e, por conseguinte, uma população muito disseminada por um vasto território - e, portanto, sujeição quase completa do homem à natureza exterior, que lhe aparecia como incompreensível e alheia ( o que se reflete na puerilidade de suas idéias religiosas). A tribo era a fronteira do homem, para os estranhos como para si mesmo: a tribo, a gens e suas instituições eram sagradas e invioláveis, constituíam um poder superior dado pela natureza, ao qual todo indivíduo ficava submetido sem reservas em seus sentimentos, idéias e atos. Por mais imponentes que nos pareçam, os homens de então mal se distinguiam uns dos outros; estavam, como diz Marx, presos ao cordão umbilical da comunidade primitiva. O poderio dessas comunidades primitivas não poderia deixar. de ser destruído e foi destruído. Desfez-se, contudo, por influências que desde o início nos aparecem como uma degradação, uma queda da singela grandeza moral da velha - sociedade gentílica. Os interesses mais vis - a baixa cobiça, a brutal avidez de prazeres, a sórdida avareza, o roubo egoísta da propriedade comum - inauguram a nova sociedade civilizada, a sociedade de classe; os meios mais ultrajantes minam e perdem a velha sociedade sem classes das gens: o furto, a violência, a perfídia e a traição. E a nova sociedade, através desses dois mil e quinhentos anos de sua existência, não tem sido senão o desenvolvimento de uma pequena minoria ás expensas de uma grande maioria explorada e oprimida; e continua a sê-lo, hoje mais do que nunca.
IV
A GENS GREGA

Nos tempos pré-históricos já os gregos, como os pelasgos e outros povos da mesma origem tribal, estavam constituídos em séries orgânicas idênticas á dos americanos: gens, fratria, tribo, confederação de tribos. Poderia faltar a fratria, como entre os dóricos, ou a confederação de tribos, que não se chegava a formar em todos os lugares, mas em todos os casos era sempre a gens a unidade. Ao tempo em que os gregos surgiram na história, estavam nos umbrais da civilização; entre eles e as tribos americanas de que temos falado medeiam quase dois grandes períodos de desenvolvimento, dois período que os gregos da época heróica levam de vantagem aos iroqueses. Por isso, a gens dos gregos já não é, de modo algum a gens arcaica dos iroqueses; o quadro do matrimônio por grupos começa a diluir-se notavelmente. O direito materno cedeu ao direito paterno o seu posto e, por isso, a riqueza privada que surgia abriu a primeira brecha na constituição gentílica. Outra brecha adveio, como conseqüência natural da primeira: ao introduzir-se o direito paterno, a fortuna de uma rica herdeira que se casa passa ao marido dela, quer dizer, a outra gens, com o que se destrói todo o fundamento do direito gentílico; dessa forma, não apenas se terá por licite: mas ainda por obrigatório, nesse caso, o casamento da jovem núbil no seio da sua gens, para evitar a saída das riquezas.
Segundo a História da Grécia de Grote, a gens ateniense, em especial, unia-se em torno de:
1. Solenidades religiosas comuns e exclusividade de sacerdócio em honra de um deus determinado, suposto fundador da gens, assim caracterizado por um sobrenome especial.
2. Um lugar comum para enterrar os mortos (Verifique-se em Eubúlides de Demóstenes).
3. Mútuo direito de herança.
4. Obrigação recíproca de prestação de socorro, defesa e apoio contra a violência.
5. Direito e dever recíprocos de casar, em certos caso, dentro da gens, sobretudo quanto às órfãs e herdeiras.
6. Posse, pelo menos em certos casos, de uma propriedade comum, com um arconte (magistrado) e tesoureiro próprio.
A fratria agrupava várias gens, mas menos estreitamente; também nela, entretanto, encontramos direitos e deveres recíprocos, da mesma natureza, especialmente a comunidade de certos ritos religiosos e o direito de perseguir o homicida no caso de assassinato de um membro da fratria. O conjunto das fratrias de uma tribo tinha, por sua vez, cerimônias sacras periódicas, sob a presidência de um phylobasileu (chefe de tribo) eleito entre os nobres (eupátridas).
Aqui se detém Grote. Marx acrescenta: "Por detrás da gens grega, o selvagem (por exemplo, o iroquês) pode ser sempre reconhecido." E quanto mais aprofundamos nossas investigações mais nitidamente o reconhecemos. Pois a gens grega tem também os seguintes atributos:
7. Descendência segundo o direito paterno.
8. Proibição do matrimônio dentro da gens, excetuado o caso das herdeiras. Essa exceção, tornada um preceito, prova a validade de antiga regra. E esta resulta do princípio geralmente adotado de que a mulher, por seu matrimônio, renunciava aos ritos religiosos de sua gens e passava a seguir os da de seu marido, na fratria do qual era inscrita. Isso e uma famosa passagem de Dicearca provam que a regra era o matrimônio fora da gens. Becker, em seu Charicdes, afirma que ninguém tinha o direito de casar-se dentro de sua própria gens.
9. Direito de adoção na gens, exercido mediante adoção pela família, mas com formalidades públicas e só em casos excepcionais.
10. Direito de eleger e depor os chefes. Sabemos que cada gens tinha o seu arconte, mas em parte alguma consta que esse posto fosse hereditariamente privativo de determinadas famílias. Até o fim da barbárie, as probabilidades são sempre contra a herança dos cargos, que seria totalmente incompatível com as condições de absoluta igualdade de direitos entre ricos e pobres no seio da gens.
Não apenas Grote, mas também Niebuhr, Mommsen e todos os demais historiadores que tem estudado a antiguidade clássica falharam na colocação do problema da gens. Por mais corretas que sejam as descrições que fazem de algumas de suas características, jamais chegaram a ver nela mais do que um grupo de famílias, e por isso não puderam compreendei sua natureza e sua origem. Sob a constituição da gens á família nunca, pôde, ser e nem foi uma célula orgânica, porque o marido e a mulher pertenciam necessariamente a duas gens diferentes. A gens, como um todo, integrava a fratria, e esta a tribo; mas a família pertencia em parte à gens do marido e em parte à gens da mulher. O Estado tampouco reconhece a família do direito público; até aqui ela só existe no direito privado. E, no entanto, todos os trabalhos históricos escritos até o presente partem da suposição absurda (que no século XVIII, sobretudo, chegou a ser inabalável) de que a família monogâmica, pouco mais antiga que a civilização, é o núcleo ao redor do qual se foram cristalizando gradualmente a sociedade e o Estado.
"Façamos notar ao senhor Grote - diz Marx - que mesmo quando os gregos fazem derivar suas gens da mitologia, nem por isso essas gens deixam de ser mais antigas que a mitologia com deuses e semideuses criados por elas mesmas."
Morgan cita de preferência Crote por ser este uma testemunha eminente e insuspeita. Mais adiante, Grote refere que cada gens ateniense tinha um nome derivado de seu suposto fundador; que, antes do tempo de Sólon, como regra geral, e depois, no caso de morte sem testamento, os membros da gens (gennêtes) do defunto herdavam sua fortuna; e em caso de homicídio o direito e o dever de perseguir o assassino ante os tribunais cabia primeiro aos parentes mais próximos, depois aos demais membros da gens e, por último, aos membros da fratria da vítima. "'.tudo que sabemos a respeito das anais antigas leis atenienses está baseado na divisão em gens e fratrias".
A descendência das gens de antepassados comuns tem dado muita dor de cabeça aos “sábios filisteus” de que fala Marx. Como proclamam que tais antepassados são puro mito, e, assim, não podem explicar de modo algum que as gens se tenham formado de famílias distintas, sem consangüinidade, original, para explicar a existência da gens recorrem a um dilúvio de palavras, que giram num círculo vicioso e não vão além desta proposição: a genealogia é evidentemente um mito, mas a gens é uma realidade. E, para concluir, diz Grote (os comentários entre parênteses são de Marx ): "Ouvimos falar dessa genealogia, mas raramente, porque só é trazida ao público em situações de especial solenidade. Mas as gens de menor importância tinham seus ritos próprios comuns ( "muito estranho, senhor Grote "), um antepassado sobrenatural e uma genealogia comum tal como as mais importantes (muitíssimo estranho isso, senhor Grote, em gens de menor importância!" ); o plano fundamental e a base ideal ("não ideal, cavalheiro, mas carnal, ou, em alemão, fleischlich" ) eram iguais para todas elas".
É o seguinte o resumo de Marx da resposta de Morgan a essa argumentação: "O sistema de consangüinidade que corresponde à gens em sua forma primitiva - e os gregos a tiveram como os demais mortais - assegurava o conhecimento por parte de todos os membros da gens dos graus de parentesco que os relacionavam entre si. Aprendiam-no na prática, desde a mais tenra infância, em virtude da suma importância que isso tinha para eles. Com a família monogâmica, caiu no esquecimento. O nome da gens criou uma genealogia junto da qual a da família monogâmica parece-nos insignificante. Esse nome comprovava a ascendência comum daqueles que o usavam; mas a genealogia da gens remontava a tempos tão longínquos que seus membros já não podiam demonstrar seu parentesco mútuo real, exceto num pequeno número de casos em que os ascendentes comuns eram mais recentes. O nome, ele mesmo, era uma prova irrefutável da ascendência comum, exceto nos casos de adoção. A negação atual da consangüinidade entre os gentílicos, por outro lado, tal como é feita por Grote e Niebuhr, que encaram a gens como una criação puramente fictícia e poética, é digna de exegetas idealistas e da cultura livresca das traças. Porque o encadeamento das gerações, sobretudo com a aparição da monogamia, se perde na poeira dos tempos, e porque a realidade passada aparece refletida nas imagens fantásticas da mitologia, os velhos e simplórios filisteus concluíram, e concluem ainda, que uma genealogia imaginária criou gens reais!"
A fratria, como entre os americanos, era uma gens-mãe dividida em várias gens-filhas, ás quais servia de laço de união e que as fazia, amiúde, descender também de um antepassado comum. Assim, segundo Grote, "todos os membros contemporâneos da fratria de Hekateu tinham um só deus como avô em décimosexto grau". Portanto, todas as gens daquela fratria eram literalmente irmãs, gens-irmãs. A fratria aparece já como unidade militar em Homero, na célebre passagem onde Nestor dá este conselho a Agamenon: "Coloca os homens por tribos e por fratrias, para que a fratria preste auxílio à fratria e a tribo á tribo". A fratria tinha também o direito e o dever de castigar o homicida que matasse um de seus membros, o que indica que, em tempos anteriores, tinha tido o direito de cobrar o "preço do sangue" (Wergeld). Além disso, tinha festas e santuários comuns; pois o desenvolvimento de toda a mitologia grega, a partir do velho e tradicional culto dos árias á natureza, foi essencialmente devido ás gens e às fratrias e se produziu no seio delas. Tinha, ainda, a fratria um chefe (phratriarchos) e, segundo de Coulanges, assembléias cujas decisões tinham força de lei, um tribunal e uma administração. Mesmo o Estado de um período posterior, que ignorava a gens, deixou às fratrias certas funções públicas de caráter administrativo.
A reunião de várias fratrias aparentadas constitui a tribo. Na Ática, havia quatro tribos, cada uma de três fratrias constituídas, por sua vez, de trinta gens cada uma. Esta divisão meticulosa dos grupos pressupõe uma intervenção consciente e planejada na ordem espontaneamente nascida. Como, quando e porque isso sucedeu não diz a história .grega, e os próprios gregos só conservam lembranças que não vão além da época heróica.
As diferenças de dialeto eram menos desenvolvidas entre os gregos, aglomerados em um território relativamente pequeno, do que entre os americanos que habitavam vastos bosques; contudo, também aqui, apenas tribos da mesma língua mãe aparecem reunidas formando grupos maiores e até a pequena Ática tem seu próprio dialeto, que mais tarde chegou a ser língua predominante em toda a prosa grega.
Nos poemas de Homero, encontramos já a maior parte das tribos gregas formando pequenos povos, no seio dos quais as gens conservavam ainda completa independência, o mesmo se dando com as fratrias e as tribos. Esses povos já viviam em cidades amuralhadas; a população aumentava paralela mente com o rebanho, o desenvolvimento da agricultura e o nascimento dos ofícios manuais; ao mesmo tempo, cresciam as diferenças de riqueza, e com estas o elemento aristocrático dentro da velha e primitiva democracia, que tinha nascido naturalmente. Os diferentes povos. mantiveram incessantes guerras pela posse dos melhores territórios e também com o objetivo do saque, pois a escravização dos prisioneiros de guerra já era uma instituição reconhecida.
A constituição dessas tribos e desses pequenos povos era, naquele momento, a seguinte:
1 – O conselho
A autoridade permanente era o conselho (bulê), primitivamente formado talvez pelos chefes das gens, e mais tarde, quando o número destas chegou a ser demasiado grande, formado por um grupo de indivíduos eleitos, o que deu ocasião a que se desenvolvesse e reforçasse o elemento aristocrático. Dionísio diz que o conselho da época heróica era constituído por aristocratas (kratistoi). O conselho tomava a decisão final quanto a assuntos importantes. Em Ésquilo, o conselho de Tebas é que toma a decisão de enterrar Etéocles com grandes honrarias e de atirar o cadáver de Polinices aos cães, para que o devorassem. Com a instituição do Estado, posteriormente, o conselho se converteu em Senado.
2 - A assembléia do povo (ágora).
Entre os iroqueses, vimos que, o povo, homens e mulheres, circunda o conselho reunido em assembléia e toma a palavra, dentro da ordem, influindo dessa maneira nas determinações do mesmo. Entre os gregos homéricos, tais "circunstantes" (expressão jurídica do antigo alemão: Umstand) acham-se transformados em uma verdadeira assembléia geral popular, exatamente como se deu com os germanos dos tempos primitivos. Esta assembléia era convocada pelo conselho para a decisão de assuntos importantes; nela, todos tinham o direito de falar. A decisão se tomava pela contagem das mãos levantadas (Ésquilo, em As Suplicantes), ou por aclamação. A assembléia era soberana e decidia como instância derradeira, pois, como disse Schömann (Antiguidades Gregas), "quando se discute medida que requer a cooperação do povo para ser posta em prática, jamais Homero refere qualquer meio pelo qual o povo pudesse ser constrangido a decidir contra a sua vontade". Naquela época, em que todo membro masculino adulto da tribo era guerreiro, não havia ainda uma força pública separada do povo e que se lhe pudesse opor. A democracia primitiva se achava ainda em pleno florescimento, e isso não deve ser esquecido e deve até servir de base para se avaliar a força e a situação do conselho e do basileu.
3 - O chefe militar (basileu).
Sobre esse ponto, Marx faz o seguinte comentário: "Os sábios europeus, em sua maioria lacaios natos dos príncipes, fazem do basileu um monarca no sentido moderno da palavra. O republicano ianque Morgan protesta contra essa idéia. Do untuoso Cladstone e de sua obra (Juventus Mundi) diz com tanta ironia quanto verdade: "Mr. Gladstone, que apresenta aos seus leitores os chefes gregos dos tempos heróicos como reis e príncipes, com requintadas qualidades de gentleman, é, ainda assim, forçado a reconhecer que, em geral, parece estabelecido entre eles o direito de primogenitura, mas não suficientemente comprovado." É de se supor que tal direito de primogenitura, admitido pelo próprio Gladstone com tais reservas, ser-lhe-á de bem pouca importância e para nada lhe poderá valer.
Já vimos qual era o estado de coisas quanto á herança de cargos de direção entre os iroqueses e demais índios: todos os cargos eram eletivos, a maior parte dentro mesmo da gens e privativos dela. Gradualmente, chegou-se a dar preferência ao parente gentílico mais próximo em caso de vacância - ao irmão ou ao filho da irmã do ex-ocupante do cargo - sempre que não pesassem motivos para excluí-los. Portanto, se entre os gregos, sob o império do direito paterno, o cargo de basileu costumava passar ao filho ou a um dos filhos, isto demonstra simplesmente que os filhos tinham, ali, a probabilidade de sucessão legal por eleição popular, mas não prova absolutamente a herança das funções sem eleição do povo. Aqui vemos, entre os iroqueses e entre os gregos, o primitivo embrião das famílias nobres, com uma situação especial dentro da gens, e o primitivo embrião da chefia militar hereditária e da monarquia (este só entre os gregos). Supõe-se, pois, que entre os gregos o basileu devesse ser, ou eleito pelo povo, ou confirmado pelos órgãos representativos deste - o conselho ou a agora - como se fazia relativamente ao "rei" (rex) entre os romanos.
Na Ilíada, o chefe militar, que é Agamenon, aparece não corno rei supremo dos gregos, mas como supremo comandante de um exército confederado ante uma cidade sitiada; e quando surgem dissensões entre os gregos, Ulisses apela para esta qualidade no trecho famoso: "Não é bom que muitos mandem ao mesmo tempo; um só deve dar ordens", etc. (Aquele verso tão conhecido a respeito do cetro foi intercalado posteriormente). "Ulisses não faz, aqui, uma conferência a respeito das formas de governo; pede apenas que se obedeça em campanha ao comandante supremo. Entre os gregos, que aparecem diante de Tróia apenas como um exército, o processo na ágora é bastante democrático. Quando Aquiles fala de presentes, ou melhor, da partilha do saque, não encarrega Agamenon ou qualquer outro basileu de fazê-la, incumbe dela os "filhos dos Aqueus", isto é, o povo. Os atributos "Filho de Zeus", ou "Gerado por Zeus", nada provam, pois todas as gens descendiam de algum deus, e a gens do chefe da tribo naturalmente de um deus mais importante – no caso, Zeus. Até indivíduos não alforriados, como o porqueiro Eumeu e outros, são "divinos" (dioi e theioi), e isso na Odisséia, quer dizer, numa época bem posterior à descrita pela Ilíada. Também na Odisséia, são chamados de "heróis" o mensageiro Mulios e o cantor cego Demódoco. Em resumo: a palavra basiléia, que os escritores gregos empregam para a chamada realeza homérica, acompanhada de um conselho e de uma assembléia popular, tem somente a significação de democracia militar (porque o comando dos exércitos era o que a distinguia)." (Marx ).
Além de suas atribuições militares, o basileu tinha atribuições religiosas e judiciais; estas últimas indeterminadas, mas as religiosas concernentes à sua condição de representante supremo da tribo ou da federação de tribos. Nunca se fala de atribuições civis, administrativas; mas o basileu parece que foi membro do conselho, devido precisamente ao seu cargo.
Traduzir basileu pela palavra alemã Kónig (rei) é, pois, etimologicamente muito exato, pois König (kuning) vem de kuni, künne, e significa chefe de uma gens. Mas o basileu da Grécia antiga não corresponde, de modo algum, ao König (rei) dos nossos dias. Tucídides chama expressamente a antiga basiléia de patrikê, quer dizer, derivada das gens, e diz que ela teve atribuições fixas e limitadas. E Aristóteles diz que a basiléia dos tempos heróicos foi um comando militar exercido sobre homens livres e o basileu foi um general, juiz e sumo-sacerdote. Portanto, não tinha poder governamental no sentido ulterior da palavra (1).
Desse modo, na constituição grega da época heróica vemos, ainda cheia de vigor, a antiga organização gentílica, mas já observamos igualmente o começo da sua decadência: o direito paterno, com herança dos haveres pelos filhos, facilitando a acumulação das riquezas na família e tornando esta um poder contrário à gens; a diferenciação de riquezas, repercutindo sobre a constituição social pela formação dos primeiros rudimentos de uma nobreza hereditária e de uma monarquia; a escravidão, a princípio restrita aos prisioneiros de guerra, desenvolvendo-se depois no sentido da escravização de membros da própria tribo e até da própria gens; a degeneração da velha guerra entre as tribos na busca sistemática, por terra e por mar, de gado, escravos e bens que podiam ser capturados, captura que chegou a ser uma fonte regular de enriquecimento. Resumindo: a riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as antigas instituições da gens são pervertidas para justificar-se a aquisição de riquezas pelo roubo e pela violência. Faltava apenas uma coisa: a instituição que não só assegurasse as novas riquezas individuais contra as tradições comunistas da constituição gentílica, que não só consagrasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa consagração santificadora o objetivo mais elevado da comunidade humana, mas também imprimisse o selo geral do reconhecimento da sociedade às sovas formas de aquisição da propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras - a acumulação, portanto, cada vez mais acelerada, das riquezas -; uma instituição que, em uma palavra, não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o direito de a classe possuidora explorar a não-possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda.
É essa instituição nasceu. Inventou-se o Estado.
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(1) Tal como acontece com o basileu grego, tem-se apresentado falsamente o chefe militar azteca como um príncipe, no sentido moderno da palavra. Morgan foi o primeiro a submeter a uma crítica histórica os relatos dos espanhóis, a princípio equivocados e exagerados, depois conscientemente mentirosos, provando que os índios do México se encontravam na fase média da barbárie, mais adiantados, portanto, que os índios pueblos de Novo México, e provando que a constituição deles, tanto quanto era possível julgar pelos confusos relatos disponíveis, era a seguinte: uma confederação de três tribos, que haviam tornado outras tributárias, governada por um conselho e um chefe militar federais. Deste último, os espanhóis fizeram um “imperador”. (Nota de Engels)
V
GÊNESE DO ESTADO ATENIENSE
Em nenhuma parte melhor do que na antiga Atenas podemos observar como o Estado se desenvolveu, pelo menos na primeira fase da sua evolução, com a transformação e substituição parciais dos órgãos da constituição gentílica pela introdução de novos órgãos, até completamente instauradas autoridades com poderes realmente governamentais - quando uma "força pública" armada, a serviço dessas autoridades ( e que, por conseguinte, podia ser dirigida contra o povo), usurpou o lugar do verdadeiro "povo em armas", que havia organizado sua autodefesa nas gens, nas fratrias e nas tribos. Morgan descreve principalmente as modificações formais; as condições econômicas que as produziram, tive eu mesmo que acrescentá-las, em grande parte.
Na época heróica, as quatro tribos dos atenienses ainda estavam instaladas em diferentes territórios da Ática. Mesmo as doze fratrias que as compunham parece que tinham diferentes instalações nas doze cidades de Cecrope. A constituição era a da época heróica: assembléia do povo, conselho e basileu. Até onde alcança a história escrita, encontramos a terra já repartida e como propriedade privada, o que corresponde á produção e ao comércio de mercadorias relativamente desenvolvido da fase superior da barbárie. Além de cereais, vinho e azeite eram produzidos. O comércio marítimo no Mar Egeu passava cada vez mais dos fenícios aos áticos. Como conseqüência da compra e venda da terra e da crescente divisão do trabalho entre a agricultura e os ofícios manuais, comércio e navegação, logo se confundiram os membros das gens, fratrias e tribos. Nos territórios das fratrias e das tribos, fixaram residência habitantes que, embora fossem do mesmo povo, não faziam parte daquelas corporações e, por conseguinte, eram estranhos a elas e ao local. Eram estranhos porque, em tempos de paz, cada fratria e cada tribo administravam, elas mesmas, seus assuntos internos, sem consultar o conselho popular ou o basileu de Atenas, e esses habitantes que passavam a residir na área da fratria e da tribo não podiam, naturalmente, tomar parte na administração delas.
Isso desequilibrou de tal modo a organização gentílica que, nos tempos heróicos, se tornou necessário modificá-la e adotou-se a constituição atribuída a Teseu. A principal mudança foi a instituição de uma administração central em Atenas; parte dos assuntos que até então eram resolvidos independentemente pelas tribos foi declarada de interesse comum e transferida ao conselho geral, sediado em Atenas. Os atenienses foram, com isso, a um ponto ao qual não chegou qualquer dos povos indígenas da América: a simples confederação de tribos vizinhas foi superada pela fusão de todas em um único povo. Daí nasceu o sistema de leis ateniense popular, mais evoluído que o das tribos e das gens. Garantiam-se, assim, os cidadãos de Atenas, quanto a certos direitos e proteção legal, mesmo em territórios que não pertenciam ás suas tribos. Deu-se, dessa forma, o primeiro passo no sentido da ruína da constituição gentílica, o primeiro passo no sentido da admissão de cidadãos que não pertenciam a qualquer das tribos da Ática e que não eram, nem se tornaram integrantes da organização gentílica ateniense. A segunda instituição atribuída a Teseu foi a divisão de todo o povo em três classes: os eupátridas ou nobres, os geomoros ou agricultores e os demiurgos ou artesãos, - sem considerar a divisão em gens, fratria e tribo - garantida para os nobres a exclusividade do exercício das funções públicas. É verdade que, tirante a exclusividade garantida à nobreza, essa divisão não teve qualquer efeito mais importante, pois não estabelecia nenhuma outra distinção de direitos entre as classes; mas sua importância para nós é a de indicar os novos elementos sociais que, imperceptivelmente, se iam desenvolvendo. Ela demonstra que o costume de herança de cargos públicos por certas famílias na gens já se tinha transformado em um direito quase incontestado; que essas famílias, poderosas por suas riquezas, começaram a formar, fora de suas gens, uma classe privilegiada especial; e que o Estado nascente sancionou essa usurpação. Demonstra que a divisão do trabalho entre camponeses e artesãos se tinha tornado suficientemente forte para disputar a primazia em importância social à antiga divisão em gens e tribos. Por fim, é a proclamação nítida do inconciliável antagonismo entre a sociedade gentílica e o Estado; o primeiro sintoma de formação do Estado consiste na destruição dos laços gentílicos, dividindo os membros de cada gens em privilegiados e não privilegiados, e dividindo estes últimos em duas classes, segundo seus ofícios, e opondo-as uma à outra.
A história política de Atenas no seguinte período, até Solon, é muito imperfeitamente conhecida. As funções do basileu caíram em desuso; arcontes saídos da nobreza passam a dirigir o Estado. A autoridade da aristocracia vai aumentando cada vez mais, até chegar a se tornar insuportável, por volta do ano 600 antes da nossa era. Os principais meios para estrangular a liberdade comum foram o dinheiro e a usura. A nobreza residia principalmente em Atenas e em seus arredores, onde o comércio marítimo, misturado com ocasional pirataria, a enriquecia e concentrava dinheiro em suas mãos. Desde então, o sistema monetário que se desenvolvia penetrou, como um ácido corrosivo, na vida tradicional das antigas comunidades agrícolas, baseadas na economia natural. A constituição das gens é inteiramente incompatível com o sistema monetário: a ruína dos pequenos agricultores da Ática coincide com o relaxamento dos velhos laços da gens que os protegiam. As letras de câmbio e a hipoteca (porque os atenienses já tinham inventado a hipoteca) não respeitaram nem a gens nem a fratria. A velha constituição das gens desconhecia o dinheiro, bem como o crédito e as dívidas fiduciárias. Por isso, o poder do dinheiro nas mãos da nobreza, poder incessantemente aumentado, criou um novo direito consuetudinário de garantia do credor contra o devedor e de apoio à exploração dos pequenos agricultores pelos possuidores de dinheiro. Todos os distritos rurais da Ática estavam crivados de hipotecas, afixadas em marcas onde se podia ler que as terras onde se achavam a marca estavam hipotecadas por tanto (em dinheiro) a fulano de tal (pessoa). Os campos que não tinham tais marcas é porque geralmente haviam sido vendidos, já que suas hipotecas teriam vencido e não foram pagas, pelo que o nobre a quem estavam hipotecados os adquirira. O camponês podia considerar-se feliz quando este novo proprietário nobre lhe permitia estabelecer-se ali como colono e viver com um sexto do produto do seu trabalho, pagando ao dono os cinco sextos restantes como arrendamento. E mais: quando o produto da venda do lote de terra não bastava para cobrir o montante da dívida hipotecária, e não havia com que cobrir a diferença, o camponês devedor tinha que vender seus filhos nos mercados de escravos estrangeiros para satisfazer por completo o seu credor. A venda dos filhos pelo pai foi, pois, o primeiro fruto do direito paterno e da monogamia. E, se, ainda assim, o vampiro não se saciasse, podia vender como escravo seu próprio devedor. Essa foi a aurora da formosa civilização do povo ateniense.
Semelhante revolução teria sido impossível no passado, quando as condições de existência do povo ainda correspondiam à constituição gentílica; mas agora isso ocorria - e sem que ninguém entendesse como. Voltemos, por um instante, aos iroqueses: entre eles era inconcebível uma situação como essa agora imposta aos atenienses, por assim dizer sem a sua participação e, certamente, contra a sua vontade. Entre os iroqueses, permanecendo o mesmo o modo de produzir as coisas necessárias à existência, nunca se poderiam criar tais conflitos, como que impostos de fora, jamais se poderia engendrar um antagonismo entre ricos e pobres, exploradores e explorados. Os iroqueses estavam muito longe ainda do domínio da natureza, embora dentro dos limites que esta lhes fixava fossem os donos de sua própria produção. A parte as más colheitas em suas hortas, a escassez de peixe em seus lagos e rios e da caça em seus bosques, sabiam qual podia ser o fruto do seu modo de proporcionar os meios de subsistência. Sabiam que, umas vezes abundantemente, outras não, determinados recursos de subsistência deveriam ser obtidos. Mas não seriam obtidas revoluções sociais imprevistas, ruptura dos vínculos gentílicos ou cisão das gens e das tribos em classes socialmente antagônicas. A produção se realizava dentro dos mais estreitos limites, mas os que produziam eram donos daquilo que produziam. Esta era a imensa vantagem da produção bárbara, vantagem que se perdeu com o advento da civilização e que as gerações futuras terão o dever de reconquistar, dando-lhe por base o poderoso domínio da natureza que o homem já conseguiu em nossos dias, e a livre associação hoje tornada possível.
Entre os gregos, as coisas eram diferentes. A aparição da propriedade privada dos rebanhos e dos objetos de luxo trouxe o comércio individual e a transformação dos produtos em mercadorias. Este foi o germe da revolução subseqüente. Quando os produtores deixaram de consumir diretamente os seus produtos, desfazendo-se deles mediante comércio, deixaram de ser donos dos mesmos. Já não podiam saber o que ia ser feito dos produtos, nem se algum dia ( conforme se tornou possível) estes seriam utilizados contra os produtores, para explorá-los e oprimi-los. Por essa razão, aliás, é que nenhuma sociedade pode ser dona de sua própria produção, pelo menos de um modo duradouro, nem controlar os efeitos sociais de seu processo de produção, a não ser pela extinção da troca entre os indivíduos.
Os atenienses, porém, deviam aprender, e rapidamente, como, ao nascer a troca entre os indivíduos e ao se transformarem os produtos em mercadorias, o produto vem a dominar o produtor. Com a produção de mercadorias, surgiu o cultivo individual da terra e, em seguida, a propriedade individual do solo. Mais tarde veio o dinheiro, a mercadoria universal pela qual todas as demais podiam ser trocadas; mas, quando os homens inventaram o dinheiro, não suspeitavam que estavam criando uma força social nova, um poder universal único, diante do qual se iria inclinar a sociedade inteira. Este novo poder, subitamente aparecido, sem que o desejassem ou sequer compreendessem seus próprios criadores, fez-se sentir aos atenienses com toda a brutalidade da sua juventude.
Que fazer ? A antiga constituição gentílica se havia mostrado impotente contra o avanço triunfal do dinheiro; e além disso era absolutamente incapaz de abranger, dentro de suas limitações de concepção, conceitos como dinheiro, credores, devedores, cobrança compulsiva das dívidas. E, no entanto, ali estava o novo poder social; nem os piedosos desejos nem o ardente afã por voltar aos bons tempos passados conseguiram expulsar do mundo o dinheiro ou a usura. Além disso, outras brechas menos importantes foram abertas na constituição gentílica: a mistura dos membros das gens e das fratrias por todo o território ático, particularmente na cidade de Atenas, aumentava de geração em geração, embora naquele tempo um ateniense ainda não pudesse vender fora da gens a sua casa de moradia, embora pudesse vender lotes de terra em geral. Com os progressos da indústria e do comércio, se havia aprofundado mais e mais a divisão do trabalho entre os diferentes setores da produção - a agricultura e os ofícios manuais - e entre estes últimos (os ofícios manuais) uma infinidade de subdivisões, tais como o comércio, a navegação, etc. A população se dividia agora, segundo suas ocupações, em grupos bem definidos, cada um dos quais tinha urna série de novos interesses comuns, para os quais não havia lugar na gens ou na fratria, levando à criação de novas funções que, precisamente, zelassem por eles. Havia crescido muitíssimo o número dos escravos que, naquela época, já excedia sobejamente o dos atenienses livres. A constituição da gens não conhecia, a princípio, escravidão alguma; não sabia, por conseguinte, manter sob o seu jugo uma massa de pessoas não livres. E, por último, o comércio havia atraído a Atenas uma multidão de estrangeiros, que se tinha instalado ali, em busca de lucro fácil - e, apesar da tolerância tradicional, esses adventícios não gozavam de qualquer direito ou proteção legal sob o velho regime, pois constituíam para o povo um elemento estranho e um foco de mal-estar.
Em resumo: a constituição gentílica ia chegando ao fim. A sociedade, crescendo a cada dia, ultrapassava o marco da gens; não podia conter ou suprimir nem mesmo os piores males que iam surgindo à sua vista. Enquanto isso, o Estado se desenvolvia sem ser notado. Os novos grupos, formados pela divisão do trabalho (primeiro entre a cidade e o campo, depois entre os diferentes ramos de trabalho nas cidades), haviam criado novos órgãos para a defesa dos seus interesses, e foram instituídos ofícios públicos de todas as espécies. O jovem Estado precisou, então, de uma força própria, que, para um povo de navegadores como os atenienses, teve que ser, em primeiro lugar, uma força naval, usada em pequenas guerras e na proteção dos barcos de comércio. Num tempo incerto, antes de Solon, foram instituídas as naucrárias, pequenas circunscrições territoriais, doze em cada tribo. Cada naucrária devia prover, armar e tripular um barco de guerra e, ainda, dispor de dois cavaleiros. Essa instituição minava a gens em dois pontos: primeiro porque criava uma força pública que não era de modo algum idêntica ao povo em armas; segundo, pela primeira vez, dividia o povo nos negócios públicos, não conforme grupos consangüíneos e sim de acordo com a residência comum. Vamos ver a significação disso.
Como o regime gentílico não podia prestar qualquer auxílio ao povo explorado, este tinha que se voltar mesmo para o Estado nascente, que lhe acabou prestando a desejada ajuda pela constituição de Solon, com o que aproveitou para se fortalecer ainda mais, em detrimento do velho regime. Não vamos falar aqui de como se realizou a reforma de Solon, no ano 594 antes de nossa era. Solon iniciou a série das chamadas revoluções políticas e o fez com um ataque à propriedade. Até hoje, todas as revoluções têm sido contra um tipo de propriedade e em favor de outro; um tipo de propriedade não pode ser protegido sem que se lese outro. Na grande Revolução Francesa, a propriedade feudal foi sacrificada para que se salvasse a propriedade burguesa; na revolução de Solon, a propriedade dos credores sofreu em proveito da dos devedores: as dívidas foram simplesmente declaradas nulas. Ignoramos os pormenores, mas Solon se gaba, em seus, poemas, de ter feito arrancar aos campos hipotecados as marcas de dívida e de ter propiciado o repatriamento dos homens que, endividados, foram vendidos como escravos ou fugiram para o estrangeiro. Isso não podia ser feito senão por uma flagrante violação dos direitos de propriedade. E, na realidade, desde a primeira até a última dessas chamadas revoluções políticas, todas elas se fizeram em defesa da propriedade, de um tipo de propriedade, e se realizaram por meio do confisco dos gens (dito de outro modo: do roubo) por outro tipo de propriedade. Tanto é assim que há dois mil e quinhentos anos não se tem podido manter a propriedade privada senão com a violação dos direitos da propriedade.
Tratava-se, porém, na ocasião, de impedir que os ateniense s livres pudessem ser escravizados novamente. A princípio, conseguiu-se isso com medidas gerais, por exemplo, proibindo os contratos de empréstimo nos quais o devedor dava por garantia a sua pessoa. Além disso, fixou-se a extensão máxima de terra que um mesmo indivíduo podia possuir, com o propósito de pôr um freio à avidez dos nobres de se apoderarem das terras dos camponeses. Depois, houve mudanças na própria constituição; consideramos como principais as seguintes:
O conselho elevou-se até quatrocentos membros, cem de cada tribo. Até aqui, a tribo seguia sendo, pois, a base do sistema. Mas este foi o único ponto da constituição antiga adotado pelo Estado recém-nascido. Além disso, Solon dividiu os cidadãos em quatro classes, de acordo com a sua propriedade territorial e a produção desta. Os rendimentos mínimos fixados para as três primeiras classes foram de quinhentos, trezentos e cento e cinqüenta medimnos de grão, respectivamente (um medimno equivale a uns quarenta e um litros); os que possuíam menos terra ou não a tinham de modo algum formavam a quarta classe. Só podiam ocupar os cargos públicos em geral os indivíduos das três primeiras classes, e os cargos atais importantes cabiam apenas aos indivíduos da primeira classe; a quarta classe não tinha sertão o direito de usar da palavra e votar nas assembléias. Era nessas assembléias que se elegiam os funcionários todos; nelas eles tinham de prestar contas de sua gestão, elaboravam-se todas as leis, e a maioria estava em mãos da quarta classe. Os privilégios aristocráticos foram renovados, em parte, sob a forma de privilégios da riqueza, mas o povo obteve o poder supremo. Por outro lado, as quatro- classes formaram a base de uma nova organização militar. As duas primeiras forneciam cavalaria, a terceira servia na infantaria de linha, e a quarta como tropa ligeira (sem couraça) ou na frota; é provável que esta classe servisse a soldo.
Introduzia-se agora, portanto, um elemento novo na constituição: a propriedade privada. Os direitos e os deveres dos cidadãos do Estado eram determinados de acordo com o total de terras que possuíam e, na medida em que ia aumentando a influência das classes abastadas, iam sendo abandonadas as antigas corporações consangüíneas. A constituição gentílica sofria outra derrota.
Entretanto, a gradação dos direitos políticos segundo a propriedade não era uma dessas instituições sem as quais o Estado não pode existir. Por maior que seja o papel representado na história das constituições dos Estados por essa gradação, grande número deles, e precisamente os mais desenvolvidos, prescindiram dela. Na própria Atenas, essa instituição só representou um papel transitório; desde Aristides, todas as funções públicas eram acessíveis a qualquer cidadão.
Durante os oitenta anos que se seguiram, a sociedade ateniense tomou gradativamente a direção que se tornou efetiva em seu desenvolvimento nos séculos posteriores. Pusera-se freio à usura dos latifundiários anteriores a Solon, bem como à concentração excessiva da propriedade territorial. O comércio e os ofícios, incluídos os artísticos, que se praticavam cada vez mais largamente, com base no trabalho escravo, chegaram a ser as ocupações principais. As pessoas ilustravam-se mais. Em lugar de explorar os concidadãos de maneira iníqua, como a princípio, o ateniense passou a explorar os escravos e os estrangeiros. Os bens móveis, a riqueza como dinheiro, o número dos escravos e dos navios cresciam sem cessar; mas ao invés de constituírem simples meios de adquirir terras, como no período anterior, cheio de limitações, converteram-se em uma finalidade por si mesma. De um lado, a nobreza antiga no poder encontrou, assim, competidores vitoriosos nas novas classes de ricos industriais e comerciantes; mas, de outro lado, ficou destruída também a última base dos restos da constituição gentílica. A gens, as fratrias e as tribos, cujos membros já andavam dispersos por toda a Ática e viviam completamente misturados, tornaram-se de todo inúteis como corporações políticas. Muitos, inúmeros cidadãos atenienses, não mais pertenciam a qualquer gens; eram imigrantes que haviam conseguido o direito de cidadania, não tendo sido, porém, admitidos em união gentílica alguma. Além disso, cada dia era maior o número de imigrantes estrangeiros que só gozavam do direito de proteção.
Enquanto isso, prosseguia a luta entre os partidos: a nobreza trabalhava para reconquistar os seus velhos privilégios e, por algum tempo, foi bem sucedida - até que a revolução de Clístenes ( ano 509 antes de nossa era) definitivamente a abateu, pando por terra com ela o derradeiro vestígio da constituição gentílica.
Na sua nova constituição, Clístenes ignorou as quatro velhas tribos baseadas nas gens e nas fratrias. Substituiu-as uma organização nova, cuja base, já ensaiada nas naucrárias, era a divisão dos cidadãos de acordo com o local de residência. Dividia-se, então, não mais o povo, mas o território: politicamente, os habitantes se tornaram meros apêndices das regiões.
Toda a Ática ficou dividida em cem municípios (demos). Os cidadãos (demotas) de cada demos elegiam seu chefe - demarca - e seu tesoureiro, assim como trinta juízes dotados de poderes para resolver os assuntos de pouca importância. Tinham, igualmente, um templo próprio e um deus protetor ou herói, servido por sacerdotes eleitos pelo povo. O poder supremo no demos pertencia à assembléia dos demotas. Conforme adverte Morgan, com muito acerto, este é o protótipo das comunidades urbanas da América que se governam por si mesmas. O Estado nascente teve como ponto de partida, em Atenas, a mesma unidade que distingue o Estado moderno em seu mais alto grau de desenvolvimento.
Dez dessas unidades (demos) formavam uma tribo; mas esta, ao contrário da antiga tribo gentílica (geschlechtsstamm); chamou-se agora tribo local (Ortsstamm). A tribo local não era apenas um corpo político auto-administrado, era também um corpo militar. Elegia seu phylarca ou chefe de tribo, que comandava a cavalaria, um taxiarca para a infantaria e um stratego para o comando de todas as tropas recrutadas no território da tribo. Armava cinco naves de guerra com seus tripulantes e comandantes. E recebia como guardião-simbólico um herói da Ática, cujo nome levava. Por último, cabia à tribo, ainda, eleger cinqüenta conselheiros para o conselho de Atenas.
Coroava este edifício o Estado ateniense, governado por um conselho de quinhentos representantes eleitos pelas dez tribos e, em última instância, pela assembléia do povo, na qual todo cidadão ateniense tinha direito a participação e voto. Pela administração da justiça em seus diversos setores, zelavam os arcontes e outros funcionários. Em Atenas não havia depositário supremo do poder executivo.
Com essa nova constituição, e pela admissão de um grande número de clientes (Schutzwerwandter), em parte imigrantes e em parte ex-escravos, os órgãos da gens ficaram à margem da gestão dos assuntos políticos, degenerando em associações privadas e em sociedades religiosas. Mas a influência moral, as concepções e idéias tradicionais da velha época gentílica viveram ainda bastante e só foram desaparecendo paulatinamente. Foi o que se viu em outra instituição, posterior, do Estado
Vimos que um dos traços característicos essenciais do Estado, é a existência de uma força pública separada da massa do povo. Atenas não tinha, ainda, senão um exército popular e uma frota equipada diretamente pelo povo, que a protegiam contra os inimigos do exterior e mantinham em obediência os escravos, que já constituíam a maioria da população na época. Para os cidadãos, essa força pública só existia, a princípio, em forma de polícia; esta é tão velha como o Estado e, por isso, os ingênuos franceses do século XVIII não falavam de nações civilizadas, mas de nações policiadas ("nations policées"). Os atenienses instituíram, pois, junto com o seu Estado, uma polícia - um verdadeiro corpo de guardas a pé e a cavalo - formada de arqueiros, ou, como se diz no Sul da Alemanha e na Suíça: Landjäger. Contudo, esse corpo de guardas era constituído de escravos. Tal ofício parecia tão indigno para o ateniense livre que ele preferia ser detido por um escravo armado a cumprir ele mesmo aquelas funções tão aviltantes. Era uma manifestação da antiga maneira de sentir das gens. O Estado não podia existir sem a polícia; mas, quando jovem, não conseguia fazer respeitável um ofício tão desprezível aos olhos dos antigos gentílicos - não tinha ainda, autoridade moral para isso.
O rápido desenvolvimento da riqueza, do comércio e da indústria prova como o Estado, já então definido em seus traços principais, era adequado à nova condição social dos atenienses. O antagonismo de classe, no qual se fundamentavam agora as instituições sociais e políticas, não era mais o que existira entre os nobres e o povo, e sim o antagonismo entre escravos e homens livres, entre clientes e cidadãos. No seu tempo de maior florescimento, Atenas contava 90 000 cidadãos livres, aí compreendidas as mulheres e as crianças; os escravos de ambos os sexos, no entanto, somavam 365 000 pessoas, e os imigrantes e libertos chegavam a 45 000. Para cada cidadão adulto havia, no mínimo, dezoito escravos e mais de três metecos. A causa da existência de um número tão grande de escravos, o que possibilitava esse número, era o fato de trabalharem muitos escravos juntos, sob as ordens de capatazes, em grandes oficinas manufatureiras. Mas, com o progresso do comércio e da indústria, vieram o acúmulo e a concentração das riquezas em poucas mãos, e com isso o empobrecimento da massa dos cidadãos livres, aos quais só ficava o recurso de escolher entre: competir com o trabalho dos escravos, fazendo trabalho manual ( o que era considerado desonroso, baixo, e era pouco proveitoso), ou converter-se em mendigos. Este último caminho foi escolhido. Como, porém, constituíam a maior parte dos cidadãos, os que assim fizeram, acabaram por levar à ruína todo o Estado ateniense. Não foi a democracia que arruinou Atenas, como pretendem os lacaios pedantes dos monarcas no professorado europeu, e sim a escravidão - que proscrevia o trabalho do cidadão livre.
A formação do Estado entre os atenienses é um modelo notavelmente característico da formação do Estado em geral, pois, por um lado, se realiza sem que intervenham violências, externas ou internas (a usurpação de Pisístrato não deixou o menor traço de sua curta duração), enquanto faz brotar diretamente da sociedade gentílica uma forma bastante aperfeiçoada de Estado, a república democrática, e, por outro lado, ainda, porque estamos bem informados de suas particularidades mais essenciais.
VI
A GENS E O ESTADO EM ROMA

Segundo a lenda da fundação de Roma, a primeira fixação no local foi a de certo número de gens latinas (cem, diz a lenda), reunidas em uma tribo. Logo se uniu a esta uma tribo sabina, de cem gens, ao que também se diz, e por último uma tribo composta de elementos diversos, igualmente de cem gens. O conjunto da narração revela, à primeira vista, que não havia nada ali espontaneamente formado, exceto a gens, que, mesmo ela, em muitos casos, não passava de um ramo da velha gens-mãe, que tinha permanecido no antigo território. As tribos levavam a marca de sua composição artificial, ainda que, em sua maioria, estivessem formadas de elementos consangüíneos e consoante o modelo da antiga tribo de formação natural (e não artificial); por certo, não fica excluída a possibilidade de que o núcleo de cada uma das três tribos acima mencionadas pudesse ser uma autêntica tribo antiga. O escalão intermediário, a fratria, contava dez gens e chamava-se cúria. Eram trinta as cúrias.
É fato reconhecido o de que a gens romana era uma instituição idêntica à gens grega; e, se a gens grega era uma forma desenvolvida da unidade social cuja forma primitiva pôde ser observada entre os peles-vermelhas americanos, o mesmo pode ser dito da gens romana. Por isso, podemos ser mais sucintos em sua análise.
Pelo menos nos primeiros tempos da cidade, a gens romana tinha a seguinte constituição:
1.Direito de herança recíproco entre os gentílicos; a propriedade permanecia na gens. Dada a vigência do direito paterno, na gens romana, da mesma forma que na grega, os descendentes por linha feminina eram excluídos na herança. Segundo a Lei das Doze Tábuas - o mais antigo monumento conhecido do direito romano - em primeiro lugar herdavam os filhos, como herdeiros diretos que eram; não havendo filhos, herdavam os agnados (parentes por linha masculina); e, na falta destes, os demais membros da gens. Em caso algum, a propriedade saía da gens. Aqui observamos a gradual infiltração nos costumes gentílicos de novas disposições legais, criadas pelo crescimento da riqueza e pela monogamia; o direito de herdar, a principio igual para todos os membros de uma gens, restringiu-se, em um tempo bastante remoto, aos agnados, e depois aos filhos e netos por linha masculina. Na Lei das Doze Tábuas essa ordem aparece invertida, naturalmente.
2. Posse de um lugar coletivo para os mortos. A gens patrícia Cláudia, ao emigrar de Régilo para Roma, recebeu, além de uma área de terra que lhe foi assinalada dentro mesmo da cidade, um local para o sepultamento dos seus mortos. Até nos tempos de Augusto, a cabeça de Varo, falecido na floresta de Teutoburgo, foi trazida a Roma e enterrada num túmulo gentílico (gentilitius tumulus), o que demonstra que a sua gens (a Quintília) ainda tinha o seu jazigo particular.
3. Solenidades religiosas em comum. Chamavam-se sacra gentilitia e são bem conhecidas.
4. Obrigação de não casar dentro da gens. Em Roma, parece que jamais se chegou a defini-Ia em lei escrita, mas era estabelecida como costume. Dos inúmeros casais romanos cujos nomes chegaram aos nossos dias, não é conhecido um único caso em que o marido e a mulher tenham o mesmo nome gentílico. Outra prova dessa regra é a do direito de herança, na forma com que era adotado: a mulher saía da gens ao casar-se, perdia seus direitos agnáticos, nem ela nem os filhos que tivesse poderiam herdar de seu pai (dela) ou dos irmãos deste. A gens não podia perder os gens dos seus membros que morressem, como aconteceria fatalmente se outras leis de herança prevalecessem. E essa regra não teria sentido se a mulher não fosse impedida de casar com um membro da sua gens.
5. Posse da terra em comum. Existiu sempre nos tempos primitivos, desde que se repartiu o território da tribo pela primeira vez. Entre as tribos latinas, encontramos o solo possuído em parte pela tribo, em parte pela gens, em parte por casas, que na época dificilmente seriam de famílias individuais. Atribui-se a Rômulo a primeira divisão de terra entre indivíduos, á razão de dois jugera para cada um (mais ou menos um hectare). Mais tarde, contudo, vamos encontrar a terra ainda em mãos da gens, e isso sem falar nas terras do Estado, em torno das quais gira toda a história interna da república.
6. Obrigação dos membros da gens de se ajudarem mutuamente e de se socorrerem. Na história escrita vamos encontrar apenas vestígios disso: o Estado romano, desde sua aparição, manifestou-se bastante forte para chamar a si o direito de proteção contra as ofensas. Quando Ápio Cláudio foi preso, sua gens inteira vestiu luto, inclusive seus inimigos pessoais. E, ao tempo da segunda guerra púnica, as gens se associaram para pagar ,o resgate de seus membros aprisionados, mas o senado proibiu-as de fazê-lo.
7. Direito de usar o nome gentílico. Manteve-se até a época dos imperadores. Aos próprios escravos alforriados era concedida permissão para usar o nome gentílico de seus antigos senhores; conquanto não lhes correspondessem, é claro, quaisquer direitos gentílicos.
8. Direito de adotar estranhos na gens. Era a adoção por uma família (como entre os índios americanos), que trazia com ela a adoção pela gens.
9. Direito de eleger e depor o chefe, não mencionado em parte alguma. Como, porém, nos tempos primitivos de Roma, todos os postos começando pelo de rei, eram preenchidos por eleição ou aclamação, e até os sacerdotes das cúrias eram eleitos por elas, é razoável que admitamos o mesmo quanto aos chefes (príncipes) das gens, ainda que pudesse ser regra eiegê-los de uma mesma família.
Tal era a constituição de uma gens romana. Excetuada a passagem ao direito paterno, já realizada, ela é a imagem fiel do conjunto de direitos e deveres de uma gens iroquesa. Ainda aqui, "reconhece-se o iroquês".
Eis um exemplo da confusão que ainda hoje impera nos trabalhos até dos nossos mais famosos historiadores, relativamente à organização da gens romana: no que Mommsen escreveu sobre os nomes próprios romanos da época republicana e dos. tempos de Augusto (Pesquisas Romanas, Berlim, 1864) pode-se ler - "O nome gentílico é usado não só pelos membros masculinos da família, incluídos os adotados e os clientes (e com a natural exceção dos escravos), mas, ainda, pelas mulheres. . . A tribo (Stamm: assim Mommsen traduziu a palavra gens) é um conjunto. . . nascido da comunidade de origem, seja ela real, suposta ou inventada, e continuando unido por cerimônias religiosas, sepulturas e herança comuns. Todos os indivíduos livres, as mulheres também, podem e devem integrá-la. O difícil é estabelecer o nome gentílico das mulheres casadas. É certo que essa dificuldade não existia quando a mulher se casava com um homem da sua gens, e está provado que durante muito tempo lhe foi bem mais difícil casar-se fora do que dentro da gens. O gentis enuptio era ainda concedido como privilégio especial no século VI. . . Mas, quando tais matrimônios fora da gens se realizavam, nos tempos primitivos, a mulher devia passar à tribo do marido. Nada está mais assegurado do que o ingresso da mulher, com desvinculamento completo da sua própria comunidade, na comunidade legal religiosa do marido, pelo antigo matrimônio religioso. Quem ignora que a mulher casada perdia todos os direitos ativos e passivos de herança quanto à sua gens de origem, mas adquiria esses direitos quanto à gens de seu marido e de seus filhos ? E, desde que seu marido a adota como a uma filha e a integra em sua família, como poderia ficar fora da gens do mesmo ?" .(pags. 9/11).
Mommsen assevera, portanto, que as mulheres romanas, a princípio, não podiam casar senão dentro da gens a que pertenciam. Por conseguinte, para ele a gens romana era endógama e não exógama. Essa opinião, que está em contradição com tudo que pudemos observar em outros povos, fundamenta-se sobretudo, e talvez exclusivamente, num único trecho, aliás muito discutido, de Tito Lívio (livro XXXIX, cap. 19), de acordo com o qual o Senado decidiu, no ano 568 de Roma (186 antes de nossa era), o seguinte: uti Feceniae Hispallae datio, deminutio, gentis enuptio, tutoris optio item esset quasi ei vir testamento dedisset; utique ei ingenuo nubere liceret, neu quid ei qui eam duxisset, ob id fraudi ignominaeve esset – quer dizer: que Fecênia Hispalla seria livre de dispor de seus gens, diminuí-los, de casar-se fora da gens, de escolher um tutor para si como se o seu (defunto) marido lhe houvesse concedido esse direito por testamento; assim como lhe seria lícito contrair núpcias com um homem livre sem que houvesse fraude nem ignomínia para quem se casasse com ela.
É indubitável que a Fecênia, uma liberta, se dá aqui o direito de casar fora da gens. E não é menos evidente, pelo que vem antes, que o marido tinha direito de permitir por testamento à sua mulher que se casasse fora da gens após a sua morte. Mas, fora de qual gens ?
Se, como supõe Mommsen, a mulher devia casar-se no seio de sua gens, permanecia na mesma gens depois do seu matrimônio. Mas, antes de tudo,. o que falta provar, precisamente, é essa pretendida endogamia das gens. Em segundo lugar, se a mulher devia casar-se dentro de sua gens, naturalmente havia de acontecer o mesmo ao homem, pois sem isso não poderia encontrar mulher. E, nesse caso, chegamos ao ponto em que o marido podia transmitir testamentariamente à sua mulher um direito que ele mesmo não possuía para si; quer dizer, eis-nos chegados a um absurdo jurídico. Assim também o entende Mommsen, e conjectura então que "para o matrimônio fora da gens, necessitava-se, juridicamente, não só do consentimento da pessoa que podia autorizá-lo, mas de todos os outros membros da gens". Em primeiro lugar, esta é uma suposição muito audaciosa; em segundo lugar, a contradiz o próprio texto da passagem citada. Com efeito, o Senado dá esse direito a Fecênia em lugar de seu marido; confere-lhe expressamente nem mais nem menos do que lhe teria podido conferir o marido; mas o Senado dá aqui à mulher um direito absoluto, sem limitação alguma, de forma que, fazendo ela uso desse direito, não pudesse sobrevir por isso o menor prejuízo ao seu novo marido. O Senado chega até a encarregar os cônsules e pretores, presentes e futuros, dos cuidados por que não seja prejudicado o direito de Fecênia. Assim, pois, a hipótese de Mommsen parece em absoluto inaceitável.
Suponhamos agora que a mulher se casasse com um homem de outra gens, mas permanecesse ela mesma em sua gens de origem. Nesse caso, segundo o trecho citado, seu marido teria tido o direito de permitir à mulher o casamento fora da própria gens desta; quer dizer, teria tido o direito, de formular disposições relativas a uma gens à qual ele não pertencia. Isso é tão absurdo que não vale a pena perder tempo com o assunto.
Não resta, portanto, senão a seguinte hipótese: a mulher casava em primeiras núpcias com um homem de outra gens, e em conseqüência desse casamento passava incondicionalmente à gens do marido como o admite Mommsen em casos dessa espécie. Com isso, tudo se explica. A mulher, arrancada à sua gens de origem pelo casamento e adotada na gens do marido, tem nesta uma situação muito particular. Torna-se membro de uma gens à qual não está ligada por qualquer vínculo de consangüinidade; a própria maneira por que ela foi adotada isenta-a da proibição de casar dentro da geras em que entrou exatamente pelo casamento. E mais: admitida no grupo matrimonial da gens, em caso de morte de seu marido, herda alguma coisa dos bens deste, isto é, dos bens de um membro da gens. Haverá algo mais natural do que a obrigação da viúva de casar dentro da gens do seu falecido marido, para evitar que os bens do extinto saiam do patrimônio da gens? E, se for preciso abrir uma exceção, quem mais competente para autorizá-la do que o primeiro marido, legatário dos referidos bens ? No momento em que cede parte de seus bens e permite a mulher os leve, por ou em conseqüência de um casamento ulterior, a uma gens estranha, o marido ainda é o dono dos bens, e não está fazendo mais do que dispor, literalmente, de uma propriedade sua. No que tange à mulher e à sua situação relativamente à gens do marido, foi ele quem a introduziu nesta, e por um ato de sua livre vontade: o matrimônio. Parece, pois, igualmente natural que seja ele a pessoa própria para autorizá-la a sair dessa gens através de um novo casamento. A coisa parece simples e compreensível, desde que abandonemos a idéia extravagante da endogamia da gens romana e a consideremos originariamente exógama, como fazia Morgan.
Mas ainda fica uma última hipótese - que também tem tido seus defensores, e bastante numerosos - segundo a qual a passagem de Tito Lívio significa simplesmente que "as jovens alforriadas (libertae) não podiam, sem autorização especial, et gente enubere (casar fora da Gens) ou realizar qualquer ato que, em virtude da capitis deminutio miníma, ocasionasse a saída da liberta da união gentílica". (Lange, Antiguidades Romanas, Berlim, 1856, tomo I, pág. 195, onde se faz referência a Huschke com respeito à nossa passagem de Tito Livio). Se esta hipótese é correta, o trecho citado não tem nada a ver com as romanas livres, e então há muito menos fundamento para falar de sua obrigação de casar dentro da gens.
A expressão enuptio gentis só é encontrada neste trecho e não se repete em toda a literatura romana. A palavra enubere (casar fora) encontra-se mais três vezes, as três em Tito Lívio e sem referência à gens. A idéia fantástica de que as romanas somente se pudessem casar dentro de suas gens deve sua existência a esta passagem, exclusivamente. De modo algum é possível sustentá-la, porque, ou a frase de Tito Lívio aplica-se apenas a restrições especiais concernentes às libertas – e então nada prova quanto às mulheres livres (ingenuae) – ou se refere a estas últimas, igualmente, e nesse caso prova que, como regra geral, a mulher casava fora de sua gens e pelas núpcias passava à gens do marido. Portanto, o próprio trecho discutido pronuncia-se contra Mommsen e a favor de Morgan.
Cerca de trezentos anos depois da fundação de Roma, os laços gentílicos ainda eram tão fortes que uma gens patrícia, a dos Fábios, pôde empreender por sua própria conta, e com o consentimento do Senado, uma expedição contra a cidade próxima de Veios. Conta-se que trezentos Fábios puseram-se em marcha, e foram todos mortos em uma emboscada; salvou-se um único rapaz, que se tinha atrasado em caminho e foi quem perpetuou a gens.
Conforme dissemos, dez gens formavam uma fratria, que aqui se chamava cúria e tinha atribuições mais importantes que as de sua correspondente grega. Cada cúria tinha suas praticas religiosas, seus santuários e sacerdotes; estes últimos, constituídos num organismo, formavam um dos colégios sacerdotais romanos. De dez cúrias se compunha uma tribo, que originalmente, como as demais tribos latinas, deve ter tido um chefe eleito - supremo comandante na guerra e grão-sacerdote. O conjunto das três tribos era o povo romano, o populus romanus.
Desse modo, ninguém podia pertencer ao povo romano se não fosse membro de uma gens e, conseqüentemente, de uma cúria e de uma tribo. A primeira constituição desse povo foi como se segue. A gestão dos negócios públicos era da competência do Senado, composto dos chefes das trezentas gens, conforme Niehbur foi o primeiro a compreender; por serem dos mais velhos em suas gens, estes chefes chamavam-se patres, pais; o conjunto deles ficou sendo o Senado (de senex, velho - conselho dos anciãos). A escolha habitual do chefe para cada gens no seio das mesmas famílias criou, também aqui, a primeira nobreza gentílica. Essas famílias chamavam-se patrícías e pretendiam para elas a exclusividade no Senado e ocupação dos demais cargos públicos. 0 fato de que, com o tempo, o povo se fosse submetendo a tais pretensões e deixasse que elas se transformassem em direito real é, a seu modo, uma explicação da lenda que dizia ter Rômulo, desde o início, concedido aos senadores e aos descendentes dos mesmos os privilégios do patriciado. O Senado, tal como a bulê ateniense, tinha poderes para decidir em muitos assuntos e proceder á discussão preliminar dos mais importantes, sobretudo das leis novas. Quem as votava, contudo, era a assembléia do povo, chamada comitia curiata (comícios das cúrias). O povo se reunia, agrupado por cúrias, e em cada cúria provavelmente por gens, cada cúria contando com um voto na decisão das questões. Os comícios das cúrias aprovavam ou rejeitavam todas as leis, elegiam todos os altos funcionários, inclusive o rex (o chamado rei), declaravam guerra (mas a paz era concluída pelo Senado) e, na qualidade de Supremo Tribunal, julgavam as apelações nos casos de sentença de morte contra cidadão romano. Por fim, ao lado do Senado e da assembléia do povo, ficava o rex, correspondendo exatamente ao basileu grego - e de modo algum um monarca quase absoluto, como no-lo apresenta Mommsen. O rex era também chefe militar, grão-sacerdote e presidente de certos tribunais; não tinha funções civis ou poderes de qualquer espécie sobre a vida, a liberdade e a propriedade dos cidadãos, desde que tais direitos não proviessem da sua condição de chefe militar no exercício de funções disciplinadoras ou de presidente de tribunal no exercício de atribuições judiciárias. As funções de rex não eram hereditárias e sim eletivas; as cúrias escolhiam o rex em comício, provavelmente de acordo com uma proposta do seu predecessor, e empossavam-no solenemente em outra reunião. Também podia ser deposto, como prova o que aconteceu a Tarquínio, o Soberbo.
Tal como os gregos da época heróica, os romanos no tempo dos chamados reis viviam, portanto, numa democracia militar baseada nas gens, nas fratrias e nas tribos, e desenvolvida a partir delas. Embora as cúrias e as tribos possam ter sido, em parte, formadas artificialmente, nem por isso deixavam de estar constituídas de acordo com o modelo genuíno e natural da sociedade de que se originaram, modelo que ainda as envolvia por toda parte. É certo, também, que a nobreza patrícia, surgida naturalmente, já ganhara terreno, e os reges tratavam de, pouco a pouco, estender suas atribuições, mas isso não muda em nada o caráter inicial dessa constituição - e é ele que nos importa.
Entretanto, a população da cidade de Roma e do território romano acrescentado por conquista foi crescendo, em parte devido á imigração, em parte pela integração de habitantes das regiões submetidas, na maioria de povos latinos. Todos estes novos súditos do Estado (deixando de lado a questão dos clientes) viviam fora das antigas gens, cúrias e tribos e, por conseguinte, não faziam parte do populus romanus, do povo romano propriamente dito. Eram, pessoalmente, livres; podiam possuir terras, estavam obrigados a pagar impostos e sujeitos ao serviço militar. Não podiam, todavia, exercer qualquer função pública, ou tomar parte nos comícios das cúrias, ou beneficiar-se da distribuição das terras conquistadas pelo Estado. Constituíam a plebe, excluída de todos os direitos públicos. Pelo constante aumento do seu número, pela própria instrução militar que recebiam e por seu armamento, acabaram por se converter em uma força ameaçadora para o antigo populus, agora hermeticamente fechado para todo novo elemento vindo de fora. A terra, além do mais, ao que parece estava dividida com certo equilíbrio e desde cedo - entre o populus e a plebe, mas a riqueza comercial e industrial, ainda que pouco desenvolvida, pertencia à plebe, na sua maior parte.
Em vista das trevas que envolvem a história legendária de Roma - trevas tornadas mais espessas pelos ensaios nacionalistas e pragmáticos de interpretação e as narrações mais recentes devidas a escritores de formação jurídica, os quais nos servem de fonte - é impossível dizer algo de concreto a respeito do fim, do curso e das circunstâncias da revolução que acabou com a antiga constituição gentílica. O que se sabe, ao certo, é que suas causas estão ligadas aos conflitos entre a plebe e o populus.
A nova constituição, atribuída ao rex Sérvio Túlio é apoiada em modelos gregos, principalmente na de Solon, criou uma nova assembléia do povo, na qual eram admitidos ou não, indistintamente, os indivíduos do populus e da plebe, segundo tivessem, ou não, feito o serviço militar. Ficou dividida em seis classes, conforme a riqueza, toda a população masculina, sujeita ao serviço militar. Os bens mínimos das cinco classes superiores eram: 100 000 ases para a primeira, 75 000 para a segunda, 50 000 para a terceira, 25 000 para a quarta e 11 000 para a quinta - cifras que, segundo Dureau de Ia Malle, correspondem respectivamente a 14 000, 10 500, 7 000, 3 600 e 1 570 marcas. A sexta classe, a dos proletários, compunha-se dos mais pobres, isentos do serviço militar e dos impostos. Essa nova assembléia popular dos comícios das centúrias (comitia centuriata) era integrada por cidadãos militarmente formados por companhias de cem homens, cada uma das quais tinha um voto. A primeira classe dava 80 centúrias, a segunda 22, a terceira 20, a quarta 22, a quinta 30 e a sexta, por mera formalidade, uma centúria. Além dessas, havia 18 centúrias formadas por cavaleiros, isto é, pelos cidadãos mais ricos. No total, as centúrias eram 193. Para se obter maioria, eram requeridos 97 votos; e, como os cavaleiros e a primeira classe juntos dispunham de 98 – tinham assegurada a maioria -, quando estavam de acordo nem consultavam as outras classes e tornavam, sem elas, as resoluções definitivas.
A esta nova assembléia passaram todos os direitos políticos da anterior, da assembléia das cúrias (exceto alguns puramente nominais); como aconteceu em Atenas, as cúrias e as gens que as compunham viram-se rebaixadas à condição de simples associações privadas e religiosas e, com essa forma, vegetaram ainda por muito tempo - ao passo que a assembléia das cúrias não tardou em cair no completo esquecimento. Para excluir também do Estado as três primitivas tribos gentílicas, foram criadas quatro tribos territoriais, cada uma das quais residindo em um determinado distrito da cidade e tendo direitos políticos definidos.
Assim se destruiu, em Roma, antes da supressão do cargo de rex, a antiga ordem social fundamentada nos vínculos de sangue. Uma nova constituição a substituiu, uma autêntica constituição de Estado, baseada na divisão territorial e nas diferenças de riquezas. A força pública, aqui, era formada pelo conjunto dos cidadãos sujeitos ao serviço militar - e não só se opunha aos escravos como, também, se opunha à classe dita proletária, excluída do serviço militar e impedida de usar armas.
A nova constituição recebeu um impulso em seu desenvolvimento com a expulsão do último rex, Tarquínio, o Soberbo, usurpador de poderes realmente imperiais, e com a substituição do rex por dois comandantes militares (cônsules) dotados de iguais poderes (como entre os iroqueses). Sob a égide dessa constituição, processa-se toda a história da república romana, com suas lutas entre patrícios e plebeus pelo acesso aos empregos públicos, pela distribuição de terras do Estado, até a dissolução final da nobreza patrícia na nova classe dos grandes proprietários de dinheiro e de terras. Estes absorveram aos poucos toda a propriedade rural dos camponeses arruinados pelo serviço militar, passaram a cultivar, por meio de escravos, os imensos latifúndios assim formados, acabaram por despovoar a Itália e, com isso, abriram caminho não apenas para o império como para o domínio dos bárbaros germanos, que sucedeu ao império.
VII
A GENS ENTRE OS CELTAS E GERMANOS

A falta de espaço impede-nos de estudar as instituições gentílicas entre diversos povos selvagens e bárbaros, nos quais, ainda hoje, elas se encontram em forma de maior ou menor pureza; impede-nos de estudar os vestígios dessas instituições na história primitiva dos povos asiáticos civilizados. Uns e outras são encontrados em toda parte. Bastarão alguns exemplos. Antes de a gens ser bem conhecida, Mac Lennan, o homem que mais se esforçou por compreendê-la mal, indicou e descreveu com a maior exatidão sua existência entre os kalmucos, os cherqueses, os samoyedos e, entre três povos da índia, os wralis, os magares e os munipuris. Mais recentemente, Maxím Kovalévski a descobriu e descreveu entre os psichavos, os jevsuros, os svanetos e outras tribos do Cáucaso. Aqui, vamos nos limitar a umas breves notas sobre a gens entre os celtas e os germanos.
As leis célticas mais antigas que chegaram até nossos dias mostra os a gens ainda em pleno vigor. Na Irlanda ainda sobrevive, na consciência popular, instintivamente, pois os ingleses a destruíram pela violência. Na Escócia, em meados do século XVIII, estava em pleno florescimento; e só morreu por obra das leis, dos tribunais e das armas inglesas.
As leis do antigo País de Gales, escritas vários séculos antes da conquista inglesa, o mais tardar no século XI, mostram-nos ainda o cultivo da terra em comum por aldeias inteiras, embora apenas por exceção, como vestígio de um costume universal anterior. Cada família tinha cinco acres de terra para seu cultivo particular; afora isso, cultivava-se u m campo em comum e a colheita resultante era repartida. A semelhança entre Irlanda e Escócia não deixa margem para dúvidas quanto a serem essas comunidades rurais gens ou frações de gens, ainda que não o prove diretamente um reestudo das leis gaulesas, para o qual me falta tempo (minhas anotações foram feitas em 1869). Mas o que os documentos gauleses e irlandeses provam, e de uma maneira direta, é que no século XI o matrimônio sindiásmico ainda não tinha sido de todo substituído pela monogamia entre os celtas. No País de Gales, o matrimônio não se consolidava, ou melhor, não se tornava indissolúvel senão ao cabo de seta anos de convivência. Mesmo que faltassem apenas três noites para completar estes sete anos os esposos podiam separar-se. Nesse caso repartiam-se os bens: a mulher fazia a divisão e o homem escolhia em primeiro lugar. Os móveis eram repartidos de acordo com regras engraçadíssimas: se era o homem quem rompia, tinha que devolver á mulher o dote dela (alguma coisa mais; se era a mulher, ela recebia menos. Dos filhos, dois ficavam com o homem e um ficava com a mulher ( o filho do meio). Se a mulher casasse de novo e o primeiro marido se dispusesse a buscá-la de volta, e o segundo matrimônio ainda não se houvesse consumado, a mulher estava obrigada a voltar ao lar anterior, ainda que tivesse um pé no novo leito conjugal. Mas, se duas pessoas vivessem juntas durante sete anos, tornavam-se automaticamente marido e mulher, independentemente de formalidades matrimoniais. Não se exigia rigorosamente, e nem era observada, a castidade das jovens antes do casamento; as regras concernentes a este assunto eram de natureza demasiado frívola e contrariam as da moral burguesa. Quando uma mulher cometia adultério, o marido tinha direito de espancá-la ( este era una dos três casos em que era lícito fazê-lo; nos demais, incorria em uma pena), mas não podia exigir qualquer outra desforra porque "para uma mesma ofensa, pode haver castigo ou vingança, mas nunca as duas coisas juntas". Os motivos pelos quais a mulher podia divorciar-se sem prejuízo dos seus direitos eram muitos e diversos: bastava que o marido tivesse mau hálito. O resgate pelo direito da primeira noite (gobr merch, e daí o nome medieval marcheta, em francês marquette) pago ao chefe da tribo, ou rei, representavam um grande papel no Código. As mulheres tinham direito a votar nas assembléias populares. Na Irlanda, acresce dizer, existiam condições análogas; eram comuns, igualmente, os matrimônios temporários, e em caso de separação garantiam-se à mulher privilégios bem definidos, e até mesmo uma remuneração por seus serviços domésticos; ali se encontrava uma "primeira esposa", ao lado das outras; na divisão das heranças não eram feitas quaisquer distinções entre filhos legítimos e ilegítimos. Temos, assim, a imagem de um matrimônio sindiásmico, comparado com o qual o sistema de casamento vigente entre os índios norte-americanos parece severo. Mas isso não deve surpreender, no século XI, num povo que, no tempo de César, ainda tinha o casamento por grupos.
As gens irlandesas (sept - a tribo era clainne ou clã) têm sua existência confirmada e são descritas não só nos antigos livros de leis mas também nos livros dos jurisconsultos ingleses, que visitaram esse país no século XVII, com o propósito de transformar as terras dos clãs em domínios do rei da Inglaterra. Nesse tempo, a terra ainda era propriedade coletiva dos clãs ou das gens, exceto onde os chefes já a tinham convertido em propriedade privada - em propriedade pessoal deles, chefes. Quando morria um membro da gens e por essa morte se dissolvia uma economia doméstica, o chefe da gens (chamado caput cognationis pelos jurisconsultos ingleses) promovia uma redistribuição da terra entre os outros lares gentílicos. Em geral, essa redistribuição devia ser feita consoante regras como as que se observavam na Alemanha. Todavia, em algumas aldeias - que eram muito numerosas há quarenta ou cinqüenta anos - os campos são distribuídos por um sistema denominado rundale. Os camponeses exploram o solo individualmente e pagam pelo arrendamento ao conquistador inglês; antes, a terra era propriedade comum, mas não continuou assim porque os ingleses a usurparam. Os camponeses juntam todas as terras aráveis e prados, e as- dividem segundo sua localização e qualidade em "gewanne" (como era dito às margens do Mosela ), e cada um recebe uma parte em cada "gewanne". Os pântanos e os pastos são de aproveitamento comum. Há pouco mais de cinqüenta anos, a redistribuição ainda era ocasionalmente realizada; em alguns lugares, uma vez por ano. O mapa de uma dessas aldeias rundale tem exatamente o mesmo aspecto do de uma comunidade de habitações camponesas (Gehoferschaft) das margens do Mosela ou do Hochwald.
A gens sobrevive também nas "factions". Os camponeses irlandeses dividem-se amiúde em grupos, com base em pequenas diferenças absurdas para os ingleses. Esses grupos parecem ter por objetivo apenas o popular passatempo de aplicar solenes surras um no outro. São reencarnações artificiais, compensações póstumas para as gens desmembradas, que, a seu modo, e muito caracteristicamente, demonstram a continuação do espírito gentílico herdado. Em alguns lugares, os membros de uma mesma gens permanecem no território que, praticamente, é o que foi dos seus antepassados; assim, por exemplo, na década de 1830, a grande maioria dos habitantes do condado de Monaghan tinha apenas quatro sobrenomes, isto é, descendia só de quatro gens, ou clãs. (1)
Na Escócia, a ruína da ordem gentílica data da época em que foi reprimida a insurreição de 1745. Fica faltando uma investigação para saber qual é o papel representado pelo clã escocês dentro dessa ordem; porque não há dúvida que é um papel importante. Nas novelas de Walter Scott revive-se este antigo clã da Alta Escócia diante dos olhos dos leitores. Diz Morgan que é "um exemplar perfeito da gens, em sua organização e em seu espírito, e uma extraordinária ilustração de como a vida da gens afeta a de seus membros. Em suas dissensões e em suas vinganças de sangue, na partilha da terra entre os clãs, na exploração coletiva do solo, na fidelidade dos membros do clã ao chefe e aos companheiros, voltamos a encontrar os traços característicos da sociedade baseada na gens... A filiação era contada conforme o direito paterno, de modo que os filhos dos homens permaneciam nos clãs destes e não nos de suas mães." Contudo, o fato de, na família real dos Picts, de acordo com o testemunho de Beda, ter prevalecido a herança por linha feminina, constitui bem uma prova de que, primitivamente, o direito materno imperou na Escócia. Também se conservou, até a Idade Média, entre os escoceses como entre os habitantes do País de Gales, um vestígio da família punaluana: o direito da primeira noite, que o chefe do clã, ou o rei, podia exercer com toda recém casada no dia das bodas, na qualidade de último representante dos maridos comuns de outros tempos, caso a mulher não tivesse sido redimida pelo pagamento de um resgate.
Que os germanos estavam organizados em gens, ao tempo da migração dos povos, é fato indiscutível. Eles ainda não ocupavam, evidentemente, as terras entre o Danúbio, o Reno, o Vístula e os mares do norte – e só o fizeram alguns séculos antes da era cristã. Os címbrios, os teutões, estavam ainda em plena migração, e os suevos não se estabeleceram em lugares fixos senão ao tempo de César. Destes, César diz expressamente que estavam organizados por gens e por estirpes (gentibus cognationibusque), e essa expressão gentibus, na boca de um romano da gens júlia, tem um significado claríssimo e bem preciso. Isso era aplicável a todos os germanos; e, inclusive nas províncias conquistadas pelos romanos, a organização ainda ficou sendo a gentílica. Consta no Direito Consuetudinário Alamane que o povo se estabeleceu por gens nos territórios conquistados ao sul do Danúbio (genealogíae). A palavra genealogia é empregada no mesmo sentido das expressões ulteriores marca e comunidade rural (Dorfgenossenschaft). Recentemente, Kovalévski exprimiu a opinião de que essas genealogiae seriam grandes comunidades domésticas entre as quais a terra era dividida, e das quais saíram mais tarde as comunidades rurais. O mesmo pode ser dito a respeito da fara, termo com o qual os burgundos e os langobardos - duas tribos, uma de origem gótica, outra alto-alemã designavam, talvez com exatidão, o que o Direito Consuetudinário Alamane chamava a genealogia. Se a comunidade doméstica aqui referida seria uma gens, é algo para ser ainda pesquisado.
Os documentos filológicos não resolvem nossas dúvidas quanto a ser dada, entre todos os germanos, a mesma denominação à geras, e qual seria ela. Etimologicamente, ao grego genos e ao latim gens correspondem o gótico kuni e o meio-alto-alemão künne, que são usados com a mesma acepção. O que nos recorda os tempos do direito materno é o fato de os termos designativos de mulher serem derivados da mesma raiz: em grego gyne, em eslavo jena, em gótico guino, em norueguês antigo kona, kuna. Conforme dissemos, entre os burgundos e os langobardos, encontramos a palavra fara, que Grimm faz derivar da raiz hipotética fisan (engendrar). Por mim, dá-la-ia como derivada, de modo mais natural, de faran (marchar, viajar, regressar), para designar uma fração compacta de uma massa nômade, fração formada por parentes. Esta designação, no transcurso de vários séculos de migração, primeiro para o leste e depois para o oeste, pôde acabar por ser aplicada, gradualmente, à própria gens. Mais adiante, temos o gótico sibja, o anglo-saxão sib, o antigo alto-alemão sippia, sippa, estirpe (sippe). O escandinavo não nos dá mais do que o plural sifjar (os parentes); o singular existe apenas como nome de uma deusa, Sif. Por fim, achamos ainda outra expressão no Canto de Hildebrando, onde há esta pergunta a Hadubrando: "Quem é teu pai entre os homens do povo... ou de que Gens és? ( Eddo huêlihhes cnuosles du sis ) . Se existiu um nome geral germânico para a Gens, deve ter sido o gótico kuni; não só por sua correspondência com os termos equivalentes nas línguas de mesma origem, mas, também, pelo fato de derivar-se de kuni a palavra kuning (Kónig), que quer dizer rei, originalmente significando chefe de gens ou de tribo. Sibja, Sippe ( estirpe) pode, ao que parece, ser deixada de lado; e sifiar, em escandinavo, não apenas significa parentes consangüíneos como, ainda, parentes por afinidade, e portanto compreende pelo menos os membros de duas gens: não é, pois, um sinônimo de gens a palavra sif.
Tanto entre os germanos, como entre os mexicanos e os gregos, a ordem de batalha, quer se tratasse de esquadrão de cavalaria, quer de coluna de infantaria em forma de cunha, era integrada por corporações gentílicas. Quando Tácito diz "por famílias e estirpes", tal expressão vaga é explicável pelo fato de que, em sua época, havia já muito tempo que a gens deixara de ser em Roma uma associação viva.
Um trecho de decisiva significação é aquele em que Tácito diz que o irmão da mãe considera seu sobrinho como se fosse filho seu; alguns pensam até ser mais estreito e sagrado o vínculo de sangue entre tio materno e sobrinho do que entre pai e filho, de sorte que, quando se exigem reféns, o filho da irmã é considerado uma garantia muito maior do que o próprio filho daquele a quem se quer comprometer. Temos aqui uma relíquia viva da gens organizada segundo o direito materno, quer dizer, primitiva, e que é descrita como algo que distingue particularmente os germanos. Quando os membros de uma gens desse tipo davam seu próprio filho corno garantia de uma promessa solene, e quando este filho era vítima da violação do tratado por seu pai, o pai não tinha que prestar contas a ninguém; mas, se o sacrificado era o filho de uma irmã, o sacrifício constituía uma violação do mais sagrado direito da gens - o parente gentílico mais próximo, a quem incumbia, antes de todos os outros, a proteção do menino ou rapaz, era considerado como culpado de sua morte. Ou ele não fazia a entrega do refém, ou, feita a entrega, estava obrigado a cumprir o tratado. Se não encontrássemos qualquer outro traço da gens entre os germanos, esta única passagem seria para nós prova suficiente.
Ainda mais decisiva por ser de uns oitocentos anos depois, é uma passagem da Völuspá, antigo canto escandinavo sobre o crepúsculo dos deuses e o fim do mundo. Nessa Visão da Profetisa, na qual existem elementos cristãos intervenientes (segundo está hoje demonstrado por Bang e Bugge), durante a descrição da corrupção geral, prelúdio da grande catástrofe, diz o seguinte:
Broedhr munu berjask ok at bönum verdesk;
munn systrungar sifjum spilla.
"Os irmãos farão a guerra uns aos outros e matar-se-ão; e os filhos das irmãs romperão seus laços de parentesco". Systrungar quer dizer filho da irmã da mãe; e o repúdio a essa vinculação por parte de filhos de duas irmãs era considerado pelo poeta como algo mais grave do que o crime de fratricídio. É isto que está realçado pelo uso da palavra systrungar, em lugar de syskina-born (filhos de irmãos e irmãs), com o que se revela a intenção de frisar o parentesco por linha materna e não de atenuar a sua importância. Assim, mesmo no tempo dos vikings, quando a Võluspá foi composta, a recordação do matriarcado subsistia na Escandinávia.
Já nos tempos de Tácito, entre os germanos (pelo menos entre os que ele conheceu mais de perto), o direito materno tinha sido substituído pelo paterno; os filhos herdavam do pai, e, na falta deles, herdavam os irmãos e os tios, de linha materna ou paterna. A admissão do irmão da mãe à herança está ligada à sobrevivência do costume que acabamos de recordar e prova o quão recente era então o direito paterno entro os germanos. Encontram-se também traços do direito paterno, mesmo mais tarde, em plena Idade Média. Segundo parece, naquela época não havia grande confiança no estabelecimento da paternidade, especialmente entre os servos; por isso, quando um senhor feudal reclamava a uma cidade algum servo seu fugido (em Augsburgo, Basileia e Kaiserslauten, por exemplo), era preciso que a condição civil do mesmo fosse confirmada sob juramento por seis de seus mais próximos parentes consangüíneos - e todos eles por linha materna (Maurer, O Regime das Cidades, pág. 281).
Outro resquício do matriarcado agonizante era o respeito, quase incompreensível para os romanos, que os germanos devotavam ao sexo feminino. As donzelas jovens das famílias nobres eram tidas como os reféns mais seguros nos tratos com os germanos. A idéia de que suas mulheres e suas filhas pudessem permanecer cativas ou ser transformadas em escravas lhes era verdadeiramente terrível, e era aquilo que mais açulava a sua coragem nas batalhas. Consideravam a mulher como sagrada e com dons proféticos, e prestavam atenção aos conselhos delas, inclusive nos assuntos mais importantes.
Assim, Veleda, a sacerdotisa bructeriana das margens do Lippe, foi a alma da insurreição batava, em que Civilis, à frente dos germanos e dos belgas, fez vacilar toda a dominação romana na Gália. A autoridade da mulher parece indiscutível na casa; é verdade que lhe competiam todos os afazeres domésticos, para os quais ela contava apenas com a ajuda dos velhos e das crianças, enquanto os homens em idade viril caçavam, bebiam ou não faziam nada. Isso diz Tácito; mas, como não diz quem lavrava a terra e declara expressamente que os escravos se limitavam a pagar um tributo, sem prestação pessoal de serviço, omite, provavelmente, que o pouco trabalho exigido pelo cultivo do solo tinha de ser realizado pelos homens adultos.
Conforme verificamos há pouco, sua forma de matrimônio era a sindiásmica, aproximando-se cada vez mais da monogamia. Não era ainda a monogamia estrita, pois que aos grandes era permitida a poligamia. Em geral (e ao contrário do que se passava entre os celtas), zelava-se pela castidade das jovens - e Tácito fala com verdadeiro entusiasmo da indissolubilidade conjugal imperante entre os germanos. Indica o adultério por parte da mulher como razão única que autorizava o divórcio. Mas seu livro tem muitas lacunas, aqui, e revela em demasiado evidente preocupação de servir de espelho de virtude para os corruptos romanos. O que há de certo é que, se os germanos em seus bosques foram tão notáveis padrões de virtude, bastou-lhes um ligeiríssimo contato com o exterior para se porem ao nível do resto da Europa; sob Roma, perderam a rigidez dos costumes muito mais rapidamente que a língua germana. Basta ler Gregório de Tours. Está claro que nas selvas virgens da Germânia não podiam imperar, como em Roma, os excessos refinados nos prazeres sensuais, e, portanto, nesse particular, eles guardavam uma certa superioridade de costumes relativamente aos romanos; mas nem por isso devemos atribuir-lhes quanto ás coisas da carne uma continência que jamais prevaleceu como regra em povo algum.
A constituição da gens deu origem á obrigação de herdar tanto as amizades como as inimizades do pai ou dos parentes, e também á compensação ("Wergeld") em lugar da vingança de sangue por homicídio ou lesão corporal. Há não mais de uma geração, esta compensação ("Wergeld") era considerada uma instituição exclusiva da Germânia; hoje ela é encontrada em centenas de povos, como uma forma atenuada da vingança elo sangue, característica da gens. Entre os índios da América, a compensação coexiste com a obrigação da hospitalidade. Aliás, a descrição da maneira como os germanos exerciam a hospitalidade (Tácito, Germania, cap. 21) coincide até em suas minúcias com a descrição de Morgan relativa aos índios.
Hoje pertencem ao passado as acaloradas e intermináveis discussões quanto aos germanos de Tácito: se eles tinham repartido definitivamente as terras de trabalho e como deveriam ser interpretadas as passagens referentes a este assunto. Desde que se demonstrou que em quase todos os povos existiu o cultivo da terra em comum pela gens, e mais adiante pela comunidade familiar comunista ( o que César já observara entre os suevos ), assim como a posterior divisão da terra pelas famílias individuais, com novas divisões periódicas; desde que se provou que essa redistribuição periódica da terra foi mantida, em certas comarcas da Alemanha, até os nossos dias, é inútil desperdiçarmos tempo e palavras com o tema. Se, do cultivo da terra em comum, tal como é descrito por César entre os suevos ( não há entre eles, diz, nenhuma espécie de campos divididos ou particulares), passaram os germanos, nos cento e cinqüenta anos que se seguiram àquela época, ao cultivo individual com partilha anual do solo, isto é um grande progresso, sem dúvida; mas cremos ser impossível a passagem à plena propriedade privada do solo, sem qualquer intervenção estranha, num tão breve período. Limito-me a ler em Tácito, pois, apenas estas palavras: "Trocam ( ou redividem ) a cada ano as terras cultivadas, e além disso lhes ficam muitas terras comuns." Esta é a etapa da agricultura e da apropriação do solo, que corresponde exatamente à gens do tempo dos germanos.
Deixo o parágrafo anterior tal como se encontra nas três edições precedentes deste livro, sem modificá-lo em nada. Desde que foi escrito, no entanto, o assunto assumiu outro aspecto. A partir da demonstração, por Kovalévski ( ver página 54), da existência muito difundida - senão geral da comunidade doméstica patriarcal como fase intermediária entre a família comunista matriarcal e a família individual moderna, já não se pergunta, como desde Maurer até Waitz, se a propriedade do solo era coletiva ou particular; o que hoje se indaga é qual era a forma da propriedade coletiva. Não há dúvida de que entre os suevos existiam, no tempo de César, não só a propriedade coletiva da terra como também o cultivo desta em comum. Ainda se há de discutir por algum tempo se a unidade econômica era a gens, a comunidade doméstica, ou um grupo consangüíneo comunista intermediário entre as duas; ou se os três grupos coexistiam segundo as condições do solo. Kovalévski, porém, afirma que a situação descrita por Tácito não implica em comunidade rural ou marca, e sim em comunidade doméstica - da qual haveria de sair mais adiante, como conseqüência do aumento de população a comunidade rural.
De acordo com este ponto-de-vista, os germanos, nos territórios que ocupavam ao tempo dos romanos, e no que depois tomaram aos romanos, não estavam estabelecidos em povoados, e sim em grandes comunidades familiares que compreendiam muitas gerações, e onde cultivavam uma extensão de terra correspondente ao número dos seus membros, deixando incultas as terras que serviam de limites com as propriedades vizinhas. O trecho de Tácito referente às trocas de solo cultivado, portanto, deveria ser entendido no sentido agronômico, já que a comunidade lavrava a cada ano certa extensão de terra e deixava em alqueive ou até completamente baldias as terras cultivadas no ano anterior. Dada a pouca densidade da população, havia sempre terra sobrando, de modo que as disputas quanto a elas se tornavam desnecessárias. Só depois de séculos, a comunidade se veio a dissolver, quando o número dos seus membros cresceu tanto que já não era possível o trabalho comum nas condições de produção da época; os campos e os prados, até então comuns, foram divididos, pela forma já conhecida (a princípio temporária e depois definitivamente), entre as famílias individuais que se iam formando, enquanto as florestas, os pastos e as águas continuavam a ser de aproveitamento comum.
Quanto á Rússia, este processo evolutivo parece de todo comprovado historicamente. No que concerne á Alemanha, e em segundo lugar aos demais países germânicos, não se pode negar que esta é a hipótese que mais luz lança sobre os documentos e permite a mais razoável interpretação das fontes; é superior, certamente, à hipótese que faz remontar ao tempo de Tácito a comunidade rural. Os documentos mais antigos, por exemplo, o Codex Laureschamensis, são melhor explicáveis pela comunidade de famílias do que pela comunidade rural ou marca. Por outro lado, nossa hipótese promove outras dificuldades e propõe novos problemas para os quais será preciso achar uma solução. Aqui, só investigações posteriores serão decisivas. No entanto, não me posso furtar a dizer que, como grau intermediário, a comunidade familiar tem muitas probabilidades em seu favor na Alemanha, na Escandinávia e na Inglaterra.
Enquanto na época de César os germanos mal tinham chegado ( e não de todo) a estabelecer-se em residências fixas, ao tempo de Tácito já se achavam estabelecidos há um século inteiro; em correspondência a isso é inegável o progresso na produção dos meios de existência. Viviam em casas de troncos, suas vestimentas eram ainda bastante primitivas, próprias de habitantes da floresta: um grosseiro manto de lã, peles de animais, e túnicas de linho para as mulheres e as pessoas de destaque. A sua alimentação se compunha de leite, carne, frutas silvestres e, como acrescenta Plínio, papas de farinha de aveia ( ainda hoje este é o prato nacional céltico na Irlanda e na Escócia). A sua grande riqueza era o gado, mas de qualidade inferior: os bois eram pequenos, de má aparência e sem chifres, e os cavalos eram pôneis, maus corredores. A moeda - só existia a moeda romana - era escassa e de pouco uso. Não trabalhavam o ouro ou a prata, nem lhes davam valor. O ferro era raro e, pelo menos nas tribos do Reno e do Danúbio, quase todo importado, pois não o extraíam eles mesmos. Os caracteres rúnicos (imitados de letras gregas ou latinas) constituíam um código secreto, usado apenas para feitiçarias religiosas. Ainda se usavam sacrifícios humanos. Em resumo: era um povo recém-passado da fase média á fase superior da barbárie. É inegável, contudo, que ao contrário do que se passou com as tribos cujos territórios confinavam com os dos romanos, que tinham as maiores facilidades para importar produtos da indústria romana, as tribos do nordeste, das margens do Mar Báltico, acabaram desenvolvendo uma indústria própria, metalúrgica e têxtil. As armas de ferro encontradas nos pântanos da Silésia (uma pesada espada de ferro, uma cota de malha, um elmo de prata, etc., com moedas romanas de fins do século II) e os objetos metálicos de fabricação germana difundidos pela emigração, são de um tipo de artesanato muito característico e de uma perfeição incomum, inclusive quando imitam, em seus começos, originais romanos. A emigração para o império romano civilizado pôs fim em toda parte a esta indústria indígena, exceto na Inglaterra. Os broches de bronze, por exemplo, mostram-nos com que uniformidade nasceram e se desenvolveram tais indústrias; os exemplares achados na Burgúndia, na Romênia e nas margens do Mar de Azov poderiam ter saído da mesma oficina que os broches ingleses e suecos, e são sem indubitavelmente de origem germânica.
A constituição dos germanos corresponde, igualmente, à fase superior da barbárie. Segundo Tácito, havia, em regra, o conselho dos chefes (príncipes), que decidia nos assuntos menos importantes e preparava os mais importantes para apresentá-los à votação pela assembléia do povo. Esta última, na fase inferior da barbárie - pelo menos entre os americanos, onde a pudemos encontrar - existe somente para a gens, e não para a tribo ou para a confederação de tribos. Os chefes (príncipes) distinguem-se ainda bastante dos caudilhos militares (duces), tal como entre os iroqueses. Os primeiros vivem já, em parte, de presentes honoríficos, o gado e os cereais com que os homenageiam os gentílicos; e quase sempre, como na América, são eleitos de uma mesma família. A passagem ao direito paterno favorece a transformação progressiva da eleição em direito hereditário, como na Grécia e em Roma, e, por conseguinte, a formação de uma família nobre em cada gens. A maior parte desta velha nobreza dita tribal desapareceu com a imigração dos povos, ou pouco depois dela. Os chefes militares, por seu trono, eram escolhidos de acordo com a capacidade, independentemente da origem alue tivessem. Atribuíam-se-lhes parcos poderes, e deveriam influir sobretudo pelo exemplo; Tácito atribui expressamente n poder disciplinador no exército aos sacerdotes. O verdadeiro poder, de fato, era o da assembléia do povo, presidida pelo rei ou chefe da tribo. O povo decidia: murmurando manifestava desaprovação e aclamando e fazendo barulho com as armas demonstrava aprovação. A assembléia popular era também corte de justiça; perante ela eram apresentadas as demandas para serem resolvidas, e ela é que ditava a aplicação da pena de morte, cabível unicamente nos casos de covardia, traição contra o povo e vícios antinaturais. Na gens e em outras subdivisões, igualmente, é a coletividade presidida por, seu chefe que ministra justiça; o chefe, como nos primitivos tribunais germânicos, nunca pôde ser mais do que dirigente do processo e interrogador. Entre os germanos, a sentença sempre foi pronunciada por toda a coletividade.
No tempo de César, formaram-se as confederações de tribos. Em algumas já havia reis. Tal como entre os gregos e os romanos, o supremo comandante militar começou a aspirar à tirania conseguindo-o por veze. E embora estes usurpadores bem sucedidos jamais chegassem a exercer um poder absoluto, promoviam um processo de rompimento das ligações gentílicas. Enquanto que, em outros tempos, os escravos alforriados eram de condição social inferior (pois não podiam pertencer a gens alguma), junto aos novos reis apareceram escravos favoritos, que chegavam a ter freqüentemente altos postos, riquezas e honrarias. O mesmo aconteceu depois da conquista do império romano, quando os chefes militares passaram a exercer . um poder soberano sobre vastas extensões territoriais; entre os francos, os escravos e os libertos dos reis representaram um grande papel, primeiro na corte e depois no Estado – os seus descendentes constituíram boa parte da nova aristocracia.
Uma instituição, em especial, favoreceu a implantação da monarquia: a dos corpos de tropa organizados por particulares. Já vimos como entre os peles-vermelhas americanos, paralelamente ao regime da gens, foram criadas companhias particulares para guerrear por sua própria conta e risco. Estas companhias adquiriram entre os germanos um caráter permanente. Um chefe guerreiro famoso reunia em torno dele um grupo de moços ávidos de botins; os moços obrigavam-se a ser-lhes leais, e o chefe a eles. Era o chefe quem providenciava o sustento da tropa, distribuía presentes e organizava uma hierarquia; formava uma escolta e uma tropa aguerrida para as expedições menores e instruía oficiais para as maiores. Por débeis que devam ter sido tais companhias - e na realidade assim eram, por exemplo, as expedições de Odoacro na Itália - foram, entretanto, o germe da derrocada da antiga liberdade popular, o que pôde ser comprovado durante a emigração dos povos e depois dela. Primeiro: porque favoreceram o aparecimento do poder real; segundo, porque - como advertiu Tácito - não se poderiam manter coesas senão por meio de contínuas guerras e expedições de rapina, que a, acabaram por servir-lhes de finalidade exclusiva. Quando o chefe ( da companhia não tinha nada que fazer na vizinhança, ia procurar, com suas tropas, entre outros povos, onde houvesse guerra e possibilidades de saque. As forças germanas auxiliares que, sob o emblema dos romanos, combateram os próprios germanos, estavam em parte compostas de companhias dessa espécie. Constituíam o embrião do Landsknecht, vergonha e flagelo dos alemães. Depois da conquista do império romano, essas companhias particulares dos reis, com os servos e criados da corte romana, formaram o segundo elemento principal da futura nobreza.
Em geral, pois, as tribos alemãs reunidas em povos têm a mesma constituição dos gregos da época heróica e dos romanos do tempo dito dos reis: assembléias do povo, conselho dos chefes de gens e comandantes militares; estes ambicionando, já, chegar a um poder efetivamente real. Tal foi a constituição mais perfeita que a gens pôde produzir; era a organização típica da fase superior da barbárie. Na ocasião em que a sociedade ultrapassou os limites para os quais essa constituição era eficaz e suficiente, o regime gentílico se acabou. E, destruindo-se este, o Estado ocupou seu lugar.
(1) Durante alguns dias passados na Irlanda, verifiquei novamente até que extremo vive a população camponesa, ali, com as idéias do tempo da gens. O proprietário territorial, de quem o camponês é arrendatário, é considerado por este uma espécie de chefe de clã, que deve administrar a terra em benefício de todos e a quem o aldeão paga um tributo em forma de arrendamento, mas de quem deve receber auxílio e proteção, em caso de necessidade. De igual modo, os irlandeses que vivem bem consideram-se obrigados a socorrer os seus vizinhos mais pobres, quando estes caem na miséria. Este socorro não é uma caridade: corresponde a um direito do mais pobre relativamente ao seu companheiro de clã mais rico ou ao chefe de clã. Compreende-se a queixa dos economistas e juristas acerca da impossibilidade de incluir no camponês da Irlanda a noção da propriedade burguesa moderna. Um proprietário que só tem direitos e não tem deveres é algo que não entra na cabeça do irlandês. Mas compreende-se também como os irlandeses, bruscamente transplantados, com estas cândidas idéias gentílicas, ás grandes cidades da Inglaterra ou da América, postos no meio de uma população que tem idéias muito diferentes sobre moral e direito, acabam por se confundir nos seus pontos-de-vista quanto à moral e ao direito, perdem o pé e desmoralizam-se em massa. (Nota de Engels à quarta edição)
VIII
A FORMAÇÃO DO ESTADO ENTRE OS GERMANOS


De acordo com Tácito, os germanos eram um povo bastante numeroso. Por César, formamos uma idéia aproximada da grandeza de população dos diferentes povos germanos: os usipéteros e os teucteros da margem esquerda do Reno seriam 180 000, incluídas nesta cifra as mulheres e as crianças. Por conseguinte, correspondiam a cerca de 100 000 indivíduos para cada povo, número muito mais elevado, por exemplo, que o da totalidade dos iroqueses em seu apogeu, quando, contando embora menos de 20 000 pessoas, foram o terror de toda a vasta região compreendida entre os Grandes Lagos e o Ohio ou Potomac. Se assinalássemos em um mapa as regiões ocupadas pelos povos das margens do Reno, que só conhecemos melhor através de relatos que nos chegaram, de então, veríamos que cada um desses povos ocupa no mapa, mais ou menos, a superfície de um departamento prussiano, ou seja, uns 10 000 km2 (182 milhas geográficas quadradas). A Germania Magna 2 dos romanos elevar-se-ia a 5 milhões de habitantes, população considerável para um grupo de povos bárbaros, mas extremamente reduzida para as nossas atuais condições (10 habitantes por km2, ou 550 por milha geográfica quadrada), e isto dando-lhe uma superfície de 500 000 km2 e tomando para cada povo a média de 100 000 indivíduos, de que já falamos. É verdade que a cifra atribuída à população da Germania Magna não inclui todos os germanos existentes naquela época. Sabemos que ao longo dos montes Cárpatos, até a foz do Danúbio, viviam povos germanos de origem gótica - os bastarnos, os peukinos e outros - e eram tão numerosos que Plínio os considera a quinta tribo principal germânica. 180 anos antes de nossa era, esses povos serviam já ao rei macedônio Perseu, como mercenários, e avançaram até as cercanias de Adrianópolis, nos primeiros anos do império de Augusto. Suponhamos que fossem um milhão - e assim teríamos, no princípio da era cristã, um total mínimo provável de 6 milhões de germanos.
Desde que fixou residência definitiva na Germânia, a população cresceu cada vez mais rapidamente; provam-no os progressos industriais a que já nos referimos. Os objetos descobertos nos pântanos da Silésia são do século III, a julgar pelas moedas romanas utilizadas nos mesmos. Naquele tempo, portanto, já existiam nas margens do Báltico uma indústria metalúrgica e uma indústria têxtil desenvolvidas, já se comerciava ativamente com o império romano e já existia entre os ricos um certo luxo, tudo isso indicando maior densidade de população. Começa ainda, por aquela época, a ofensiva geral dos germanos em toda a linha do Reno, na fronteira fortificada romana e no Danúbio, desde o Mar do Norte até o Mar Negro, prova direta do constante aumento da população, que tendia a expandir-se territorialmente. A luta durou três séculos, .durante os quais todas as tribos principais dos povos góticos (exceção feita aos godos escandinavos e aos burguidos) avançaram até o sudeste, formando a ala esquerda da grande linha de ataque, no centro da qual os alto-alemães (herminões) conquistavam o alto Danúbio. E à direita, os istevões, agora chamados francos, conquistavam. as demais terras ao longo do Reno. Aos ingevões coube a conquista da Britânia. Nos fins do século V, o império romano, débil, exangue e impotente, estava aberto à invasão germânica.
Nos capítulos precedentes, estivemos junto ao berço da antiga civilização grega e romana; agora estamos junto a seu sepulcro. A plaina niveladora do domínio mundial romano havia passado, através de séculos, sobre toda a bacia do Mediterrâneo. Em todas as partes onde não houve a resistência do idioma grego, as línguas nacionais foram cedendo lugar a um latim corrompido; desapareceram as diferenças de nações, já não havia gauleses, iberos, lígures, nóricos - todos se tinham convertido em romanos. A administração e o direito romanos tinham dissolvido em toda parte as antigas uniões gentílicas, juntamente com os restos de independência local ou nacional. A cintilante cidadania romana, a todos concedida, não oferecia compensação: não só não expressava qualquer nacionalidade como expressava até a falta de nacionalidade. É certo que existiam por toda parte elementos de novas nações: os dialetos latinos das diversas províncias se iam diferenciando cada vez mais, as fronteiras naturais que haviam determinado a existência, como territórios independentes, da Itália, da Gália, da Espanha e da África ainda subsistiam e se faziam sentir. Mas, em lugar algum existia a força necessária para formar nações novas com tais elementos; em lugar algum existia vestígio de capacidade para se desenvolver, de energia para resistir, e isso sem falar propriamente de forças criadoras. A enorme massa humana daquele vastíssimo território tinha como único vínculo de coesão o Estado romano; e, com o tempo, este se havia tornado seu pior inimigo e seu mais cruel opressor. As províncias tinham arruinado Roma; a própria Roma se tinha transformado em cidade de província como as outras, privilegiada mas não mais soberana - já não era o centro do império universal, nem sede dos imperadores e governadores, que residiam em Constantinopla, Treves e Milão. O Estado romano se tinha tornado uma máquina imensa e complicada, destinada exclusivamente à exploração dos súditos; impostos, prestações pessoais ao Estado e gravames de todas as espécies mergulhavam a massa do povo numa pobreza cada vez mais aguda. As extorsões dos governadores, dos fiscais e dos soldados reforçavam a opressão, tornando-a insuportável. Essa era a situação a que o Estado romano havia levado o mundo. No interior, um direito baseado na manutenção da ordem; no exterior, baseado na proteção contra os bárbaros - mas a ordem deles era pior que a pior desordem, e os bárbaros contra os quais os cidadãos estavam sendo protegidos eram esperados como salvadores.
Não menos desesperadoras eram as condições sociais. Nos últimos tempos da república, o domínio romano já estava reduzido a uma exploração sem escrúpulos das províncias conquistadas; o império, longe de suprimi-la, formalizou-a em lei. Quanto mais o império ia decaindo, mais subiam os impostos e taxas e maior era a desfaçatez com que os funcionários saqueavam e extorquiam. O comércio e a indústria nunca foram ocupações dos romanos, dominadores de povos. Foi na usura que excederam a todos os que os antecederam, como aos que vieram depois. O comércio que encontraram e que pôde conservar-se por algum tempo acabou perecendo pela extorsão oficial. Se alguma coisa ficou de pé, foi na parte grega, oriental, do império, da qual não falaremos no presente trabalho. O empobrecimento era geral; declínio do comércio, decadência dos ofícios manuais e da arte, diminuição da população; decadência das cidades; retrocesso da agricultura a um estágio mais atrasado - este foi o resultado final do domínio romano no mundo.
A agricultura, o ramo decisivo da produção na antiguidade, era-o então mais do que nunca. Os imensos domínios (latifundia) que ocupavam, desde o fim da república, quase toda a superfície da Itália, eram explorados de duas maneiras: ou como pastos, onde a população tinha sido substituída por gado ovino ou vacum, cuja criação exigia apenas um pequeno número de escravos, ou em fazendas, onde massas de escravos se dedicavam à horticultura em grande escala, em parte para prover de víveres os mercados das cidades, em parte para satisfazer o afã de luxo dos proprietários. Os grandes pastos foram conservados e até provavelmente ampliados, mas as fazendas e a horticultura se arruinaram por completo, em conseqüência do empobrecimento de seus donos e da decadência das cidades. A exploração dos latifúndios baseada no trabalho escravo já não era proveitosa, conquanto fosse, na época, a única forma viável de agricultura em grande escala. O cultivo em pequenas fazendas voltou a ser adotado, como única forma compensadora. Uns em seguida aos outros, os latifúndios foram divididos em lotes, que eram entregues a arrendatários hereditários, dos quais se cobrava certa quantidade de dinheiro, ou a partiarii (parceiros), mais administradores do que arrendatários, pois que recebiam por seu trabalho a sexta ou até a nona parte da produção anual. De preferência, no entanto, esses lotes eram entregues a colonos que pagavam um aluguel anual fixo. Tais colonos ficavam sujeitos à terra e podiam ser vendidos juntamente com os lotes; não eram propriamente escravos, mas tampouco eram livres - não se podiam casar com mulheres livres, e as uniões entre eles não eram tidas como matrimônios válidos e sim como um mero concubinato (contubernium), tal como entre os escravos. Foram os precursores dos servos medievais.
Tinha passado o tempo da antiga escravidão. Nem no campo, na agricultura em grande escala, nem nas manufaturas urbanas, ela dava qualquer proveito que valesse a pena; tinha desaparecido o mercado para os seus produtos. A agricultura em fazendolas e a pequena indústria, a que se tinha reduzido a gigantesca produção escravista dos tempos florescentes do império, já não tinha onde empregar numerosos escravos. Na sociedade não encontravam mais lugar senão os escravos domésticos e de luxo dos ricos. Contudo, a escravidão agonizante ainda era suficientemente real para fazer considerar todo trabalho produtivo próprio de escravos e indigno de um romano livre - e todos eram, nessa altura, romanos livres.
De um lado, portanto, vamos encontrar um crescente número de escravos supérfluos alforriados, carga de que seus donos queriam se desfazer; de outro lado, o aumento dos colonos e dos homens livres empobrecidos, análogos aos poor whites dos antigos Estados escravistas da América do Norte. O cristianismo não teve absolutamente nada a ver com a extinção gradual da escravidão. Durante séculos, compartilhou da escravidão no antigo império romano, e mais tarde nada fez para impedir o comércio de escravos por cristãos, ou por germanos, ao norte, ou por venezianos, no Mediterrâneo, e nos últimos anos nada fez para impedir o comércio de escravos negros. A escravidão não compensava, e por isso morreu; mas, ao morrer, deixou atrás de si um espinho venenoso: o trabalho produtivo tornado ignóbil para os homens livres. O mundo romano estava num beco-sem-saída: a escravidão era economicamente inviável e o trabalho dos homens livres estava moralmente proscrito. A primeira não podia mais e o segundo não podia ainda ser a forma básica da produção social. Só uma revolução radical podia solucionar o problema.
A situação não era melhor nas províncias. A maior parte das informações que temos é referente à Gália; ali, junto aos colonos, existiam pequenos agricultores livres, que, para se resguardar das violências dos funcionários, magistrados e usurários, punham-se amiúde sob a proteção, sob o patronato de um poderoso. Esta precaução foi tomada não apenas por camponeses isolados, mas por comunidades inteiras, de tal sorte que, no século IV, os imperadores tiveram que promulgar diversos decretos proibindo essa prática. Mas que adiantava isso para os que buscavam proteção ? O patrão lhes impunha a condição de transferirem para ele a propriedade das terras e, em compensação, lhes assegurava o usufruto vitalício das mesmas. A Santa Igreja reproduziu essa trapaça nos séculos IX e X, para maior glória de Deus e para o aumento de seus gens terrenos. É verdade que naquela época, por volta de 475, Salviano, bispo de Marselha, ainda se indignava com semelhante furto e contava que a opressão dos funcionários romanos e dos grandes proprietários de terras havia chegado a tal ponto que muitos "romanos" fugiram para regiões ocupadas pelos bárbaros, e nada atemorizava mais esses fugitivos do que virem a cair novamente sob a autoridade de Roma. Que, naqueles dias, muitos pais pobres vendiam seus filhos como escravos por causa da miséria, está provado por uma lei proibindo essa prática.
Por terem livrado os romanos de seu próprio Estado, os germanos lhes tomaram dois terços das terras e as repartiram entre si. A partilha se realizou conforme a ordem estabelecida na gens; e, como os conquistadores eram relativamente poucos, ficaram indivisas enormes extensões, parte delas como propriedade de todo o povo e parte como propriedade das diferentes tribos e gens. Dentro de cada gens, os campos agricultáveis foram divididos em partes iguais e distribuídos, por sorteio, entre as casas (lares). Não sabemos se depois foram feitas novas partilhas; de qualquer forma, esse costume logo se perdeu nas províncias romanas, transformando-se as parcelas distribuídas em propriedade privada alienável, alodial (alod). Os bosques e os pastos não foram divididos, ficaram para uso coletivo; tal medida e o modo de cultivar a terra repartida eram regulados pelo antigo costume e de acordo com a vontade de toda a coletividade. Quanto mais tempo a gens ficava estabelecida em seu campo, mais se confundiam germanos e romanos, e mais o caráter familiar da associação cedia lugar ao caráter territorial. A gens desapareceu na marca - mas nesta, no entanto, são freqüentemente encontrados vestígios do parentesco original de seus membros. Dessa forma, a organização gentílica se foi insensivelmente transformando em organização territorial, e assim ficou em condições de se adaptar ao Estado, pelo menos nos países onde se manteve a marca (ao norte da França, na Inglaterra, Alemanha e Escandinávia). Apesar de tudo, persistiu o caráter democrático original das organizações gentílicas, e com ele uma arma na mão dos oprimidos, a qual atravessou, inclusive, o período da degeneração forçada da gens, e chegou até os tempos modernos.
O rápido desaparecimento do vínculo consangüíneo na gens foi devida ao fato de terem seus órgãos, na tribo e no povo, degenerado em conseqüência da conquista. Sabemos que a dominação exercida sobre os derrotados é incompatível com o regime da gens; e aqui a vemos em larga escala. Os povos germanos, donos das províncias romanas, tinham que organizar suas conquistas; mas as massas romanas não podiam ser absorvidas nas corporações gentílicas, nem podiam ser regidas pelo sistema dessas corporações. A testa dos órgãos locais da administração romana, conservados no princípio em grande parte, era preciso colocar, em substituição ao Estado romano, outro poder, que só poderia ser outro Estado. Os órgãos da gens tinham que se transformar em órgãos do Estado, e com notável rapidez, por força das circunstâncias. E o representante mais próprio do povo conquistador seria, seguramente, o chefe militar. A segurança interior e exterior do território conquistado estava a exigir que se reforçasse o comando militar. Havia chegado a hora de transformar esse comando em monarquia - e veio a transformação.
Vejamos o império dos francos. Nele, correspondeu aos povos sálios vitoriosos a posse absoluta não só dos vastos domínios do Estado romano, mas, também, de todos os demais imensos territórios ainda não divididos entre as grandes e pequenas comunidades regionais e as marcas, e, principalmente, de extensíssimas superfícies cobertas de bosques. A primeira coisa que fez o rei franco, ao se transformar de supremo comandante militar em verdadeiro soberano, foi converter essas propriedades do povo em domínios reais, roubá-las ao povo e dá-las ou concedê-las em feudo às pessoas do seu séquito. Tal séquito, formado primitivamente por sua guarda militar pessoal e pelos subcomandantes do exército, foi logo ampliado com a inclusão de romanos (quer dizer, gauleses romanizados) que se tornaram rapidamente indispensáveis por sua educação, conhecimentos de escrita, latim vulgar e literário, bem como por seu conhecimento das leis do país, e, ainda, ampliado com a inclusão de escravos, servos e libertos, entre os quais o rei escolhia os seus favoritos. A maior parte dessa gente, a princípio, foram dados lotes de terra do povo; mais tarde, os lotes lhes foram cedidos, sob a forma de benefícios, outorgados em geral - nos primeiros tempos - enquanto vivesse o rei. E, dessa maneira, assentaram-se as bases de uma nobreza nova, às expensas do povo.
Mas isso não foi tudo. Em virtude de suas vastas dimensões, o novo Estado não podia ser governado por processos da antiga constituição gentílica. O conselho dos chefes, quando já não tinha sido suprimido há muito, não podia reunir-se em assembléia, e logo se viu substituído pelos que rodeavam assiduamente o rei. A antiga assembléia do povo foi formalmente mantida, mas transformada, cada vez mais, em simples reunião dos subcomandantes do exército e dos nobre recém-surgidos. Os ,camponeses livres donos de terra, que eram a massa do povo franco, foram arruinados e reduzidos à penúria pelas constantes guerras civis e pelas guerras de conquista - estas sobretudo durante o reino de Carlos Magno - tal como antes acontecera aos camponeses romanos, em fins do período republicano. Originariamente, os camponeses formaram todo o exército; depois da conquista das terras francas, constituíram seu núcleo. Nos começos do século IX, porém, tinham chegado a uma tal situação de pobreza que, de cada cinco, apenas um deles dispunha dos apetrechos necessários para ir à guerra. Em lugar do exército de camponeses livres convocados pelo rei, apareceu um exército integrado pelos vassalos da nova nobreza. Entre estes havia servos, descendentes daqueles camponeses que, em tempos idos, não haviam tido outro senhor que não o rei, e em tempos ainda mais distantes não haviam tido senhor algum, nem mesmo um rei. Sob os sucessores de Carlos Magno, completou-se a ruína dos camponeses francos, por força de guerras intestinas, em virtude da debilidade do poder real e das conseqüentes usurpações dos nobres - aos quais se vieram a juntar os condes designados por Carlos Magno para as comarcas, que desejavam tornar hereditárias as suas funções - e, finalmente, por causa das incursões dos normandos. Cinqüenta anos depois da morte de Carlos Magno, o império aos francos, incapaz de resistência, jazia aos pés dos normandos, como, quatro séculos antes, o império romano aos pés dos francos.
E não havia apenas a impotência externa, mas o mesmo acontecia com a ordem - ou melhor, desordem - social interna. Os camponeses francos livres viram-se numa situação análoga à de seus predecessores, os colonos romanos. Arruinados pelas guerras e pelos saques, viram-se obrigados a buscar a proteção da nova nobreza ou da Igreja, já que o poder real era demasiado débil para protegê-los; mas essa proteção lhes custava caro. Como tinha acontecido com os camponeses da Gália antes deles, tiveram que transferir a propriedade de suas terras ao senhor feudal, seu patrão, de quem tornavam a recebê-las em arrendamento, sob formas diversas e variáveis, mas sempre em troca de prestação de serviços e pagamento de tributos. Uma vez reduzidos a esta forma de dependência, perderam pouco a pouco a liberdade individual e, ao cabo de algumas gerações, a maior parte deles caíra na servidão. A rapidez com que desapareceu a camada dos camponeses livres está mostrada no registro cadastral de Irminon, da Abadia de Saint-Germain-des-Près, naquele tempo nos arredores e hoje dentro de Paris. Nos extensos campos da Abadia, abrangendo as terras próximas a ela, havia 2 788 lares, ao tempo de Carlos Magno, compostos quase que exclusivamente de francos com sobrenomes germânicos. Deles, 2 080 eram colonos, 35 lites, 220 escravos e apenas 8 eram camponeses livres! O costume pelo qual o patrão fazia com que o camponês lhe transferisse a propriedade, deixando-o unicamente com o usufruto vitalício da mesma, esse costume - denunciado como ímpio pelo bispo Salviano - era agora universalmente praticado pela Igreja, no trato com os camponeses. As prestações pessoais, cada vez mais generalizadas, modelavam-se em muitas de suas linhas gerais pela angariae romana (serviços compulsórios prestados ao Estado), como nas prestações pessoais impostas aos membros das marcas germânicas na construção de pontes e estradas, e em outros serviços de utilidade comum. Era como se, depois de quatro séculos, a massa da população tivesse voltado ao ponto de partida.
Entretanto, isso provava somente duas coisas: em primeiro lugar, que a organização social e a distribuição da propriedade no império romano agonizante correspondiam plenamente ao grau de produção contemporânea na agricultura e na indústria, e por isso eram inevitáveis; em segundo lugar, que o estado da produção não tivera avanços ou recuos de natureza essencial nos quatrocentos anos subseqüentes e, também por isso, produzia necessariamente a mesma divisão da propriedade e as mesmas classes sociais. Nos últimos séculos do império romano, a cidade havia perdido o seu domínio sobre o campo, e nos primeiros séculos da dominação germana ainda não o tinha recuperado. O fato indica um baixo grau de desenvolvimento da agricultura e da, indústria. Tais condições gerais produziam necessariamente poderosos latifundiários e pequenos camponeses dependentes. As imensas experiências de Carlos Magno com suas famosas vilas imperiais, desaparecidas quase sem deixar vestígios, provam como era impossível enxertar em semelhante sociedade a economia latifundiária romana, á base do trabalho escravo, ou o novo cultivo em grande escala, utilizando o trabalho servil. Essas experiências só foram prosseguidas nos conventos, e só foram proveitosas para eles; mas os conventos eram corporações sociais de caráter anormal, baseadas no celibato. Podiam realizar coisas excepcionais, mas, por isso mesmo, continuavam a ser exceções.
Todavia, durante esses quatrocentos anos, alguns progressos tinham sido feitos. Se, ao fim dos quatro séculos, encontramos quase as mesmas classes principais que no começo, é verdade que os homens que constituíam essas classes haviam mudado. A antiga escravidão desaparecera, e o mesmo se dera com os homens livres empobrecidos que menosprezavam o trabalho por considerá-lo ocupação de escravos: Entre o colono romano e o novo servo, havia existido o camponês franco livre. A "lembrança inútil e luta inglória" do romanismo decadente estavam mortas e enterradas. As classes sociais do século IX não se haviam formado com a decadência de uma civilização agonizante e sim no trabalho de criação de uma civilização nova. A nova geração, tanto senhores como servos, era uma geração de homens, comparada com seus predecessores romanos. As relações entre os poderosos latifundiários e os servos camponeses dependentes - relações que tinham sido para os romanos a forma da decadência irremediável do mundo antigo - foram, para a nova geração, o ponto de partida para um novo desenvolvimento. E, além disso, por improdutivos que esses quatrocentos anos pareçam ter sido, nem por isso deixaram de produzir um grande resultado: as nacionalidades modernas, a refundição e a reorganização na Europa ocidental para a história iminente. Os germanos tinham, com efeito, revivificado a Europa e por isso a dissolução dos Estados no período germânico não levou ao jugo normando e sarraceno, e sim ao desenvolvimento dos benefícios e do patronato (proteção de um poderoso) até o feudalismo, e a um incremento tão intenso da população que, dois séculos depois, foi possível suportar sem maiores danos as rudes sangrias das cruzadas.
Que misterioso sortilégio era esse que permitiu aos germanos infundir uma força vital nova á Europa agonizante ? Seria um poder milagroso e inato na raça germânica, como querem os nossos historiadores chovinistas ? De modo algum. Os germanos, sobretudo naquela época, formavam uma tribo ariana muito favorecida pela natureza e em pleno processo de vigoroso desenvolvimento. Mas não foram as qualidades nacionais específicas que rejuvenesceram a Europa, e sim - simplesmente - sua barbárie e sua constituição gentílica
A sua capacidade e valentia pessoais, seu amor à liberdade e seu instinto democrático, que via nos assuntos públicos um assunto de cada um, em uma palavra, todas as qualidades que os romanos haviam pendido, as únicas com as quais seria possível formar, da lama do mundo romano, novos Estados e novas nacionalidades, eram apenas os traços característicos dos bárbaros da fase superior da barbárie, os frutos da sua constituição gentílica.
Se transformaram a forma antiga da monogamia, suavizaram a autoridade do homem na família e deram à mulher uma situação mais elevada do que a que ela conhecera no mundo clássico - o que foi que os tornou capazes de fazê-lo, senão sua condição de bárbaros, seus hábitos gentílicos, e a herança ainda viva dos tempos do direito materno.
Se foram capazes de preservar - pelo menos nos três países mais importantes (na Alemanha, na Inglaterra e no norte da França) - uma parte do autêntico regime da gens, transplantando-o ao Estado feudal sob a forma de marcas, dando aos camponeses oprimidos, mesmo durante a mais cruel servidão medieval, uma coesão local e meios de resistência que não tiveram os escravos da antigüidade e não tem o proletariado moderno - a que se deve isso senão à sua barbárie, ao sistema exclusivamente bárbaro de colonização por gens ?
E, por último, se conseguiram desenvolver e difundir universalmente a forma de servidão mitigada que haviam empregado em seu país natal, e que veio a substituir gradualmente a escravidão no império romano - uma forma que, como Fourier foi o primeiro a ressaltar, oferece aos oprimidos os meios para uma emancipação paulatina como classe (“fournit aux cultivateurs des moyens d'affranchissement collectif et progressif“), superando assim em muito a escravidão, que permitia somente a alforria imediata do indivíduo, sem transições (a antigüidade não apresenta qualquer exemplo de supressão da escravidão por uma revolução vitoriosa), ao passo que os servos medievais iam conseguindo, aos poucos, sua emancipação como classe – a que se deve isso senão à sua barbárie, graças à qual não tinham ainda chegado à escravidão completa, quer na forma da antiga escravidão do trabalho, quer na forma da escravidão doméstica oriental?
Tudo que era força e vitalidade, naquilo que os germanos infundiram no mundo romano, vinha da barbárie. De fato, só bárbaros poderiam rejuvenescer um mundo senil que padecia de uma civilização moribunda. E a fase superior da barbárie, à qual tinham chegado e na qual estavam vivendo os germanos, era precisamente a mais propícia à promoção deste processo. Isso explica tudo.
IX
BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO

Acompanhamos o processo de dissolução da gens nos três grandes exemplos particulares dos gregos, romanos e germanos. Para concluir, pesquisaremos as condições econômicas gerais que na fase superior da barbárie minavam já a organização gentílica da sociedade, e acabaram por fazê-la desaparecer, com a entrada em cena da civilização. Para isso, O Capital de Marx vai nos ser tão necessário quanto o livro de Morgan.
Nascida a gens na fase média do estado selvagem, e desenvolvida na fase superior, ela alcançou seu apogeu, segundo nos permitem julgar os documentos de que dispomos, na fase inferior da barbárie. Por essa última, portanto, começaremos a nossa investigação.
Nela, onde os peles-vermelhas americanos vão-nos servir de exemplo, encontramos a constituição gentílica completamente desenvolvida. Uma tribo se divide em diversas gens, comumente em duas; com o aumento da população, cada uma das gens primitivas se subdivide em várias gens filhas, para as quais a gens mãe persiste como fratria; a própria tribo se subdivide em várias tribos, em cada uma das quais, na maioria dos casos, vamos achar as antigas gens; uma confederação, pelo menos em certos casos, une as tribos aparentadas. Essa organização simples é inteiramente adequada às condições sociais que a engendraram. Não é mais do que um agrupamento espontâneo, capaz de dirimir todos os conflitos que possam nascer no seio da sociedade a que corresponde. Os conflitos exteriores são resolvidos pela guerra, que pode resultar no aniquilamento da tribo, mas nunca em sua escravização. A grandeza do regime da gens - e também a sua limitação - é que nele não cabiam a dominação e a servidão. Internamente, não existem diferenças, ainda, entre direitos e deveres; para o índio não existe o problema de saber se é um direito ou um dever tomar parte nos assuntos de interesse social, executar uma vingança de sangue ou aceitar uma compensação; tal problema lhe pareceria tão absurdo quanto a questão de saber se comer, dormir e casar é um dever ou um direito. Nem podia haver, na gens ou na tribo, divisão em diferentes classes sociais. E isso nos leva ao exame da base econômica dessa ordem de coisas.
A população fica muito dispersa e só é relativamente densa no local de residência da tribo, ao redor do qual se estende uma vasta região para a caça, á qual se segue a zona neutra de bosques protetores que separam as tribos umas das outras. A divisão do trabalho é absolutamente espontânea: só existe entre os dois sexos. O homem vai á guerra, incumbe-se da caça e da pesca, procura as matérias-primas para a alimentação, produz os instrumentos necessários para a consecução dos seus fins. A mulher cuida da casa, prepara a comida e confecciona as roupas: cozinha, fia e cose. Cada um manda em seu domínio: o homem na floresta, a mulher em casa. Cada um é proprietário dos instrumentos que elabora e usa: o homem possui as armas e os instrumentos de caça e pesca, a mulher é dona dos utensílios caseiros. A economia doméstica é comunista, abrangendo várias e amiúde numerosas (1) famílias. O resto é feito e utilizado em comum, é de propriedade comum: a casa, as canoas, as hortas. É aqui e somente aqui que nós vamos encontrar "a propriedade fruto do trabalho pessoal", que os jurisconsultos e economistas atribuem à sociedade civilizada e que é o último subterfúgio jurídico em que se apóia, hoje, a propriedade capitalista.
Mas não foi em todas as partes que os homens permaneceram nessa etapa. Na Ásia, encontraram animais que se deixaram domesticar e puderam ser criados no cativeiro. Antes, era preciso ir à caça para capturar a fêmea do búfalo selvagem; agora, domesticada, ela dava uma cria a cada ano e proporcionava, ainda por cima, leite. Certas tribos mais adiantadas - os árias e os semitas, e talvez os turanianos - fizeram da domesticação e da criação do gado a sua principal ocupação.
As tribos pastorís se destacaram do restante da massa dos bárbaros. Esta foi a primeira grande divisão social do trabalho. Estas tribos pastoris não só produziam víveres em maior quantidade como também em maior variedade do que o resto dos bárbaros. Tinham sobre eles a vantagem de possuir mais leite, lacticínios e carnes; além disso, dispunham de peles, lãs, couros de cabra, fios e tecidos, cuja quantidade aumentava na medida em que aumentava a massa das matérias-primas. Isso tornou possível, pela primeira vez, o intercâmbio regular de produtos. Nas fases de evolução anteriores apenas podiam ser realizadas trocas ocasionais. É verdade que uma habilidade excepcional no fabrico de armas e instrumentos pode produzir uma divisão transitória de trabalho. Assim, foram encontrados em muitos lugares restos de oficinas para a fabricação de instrumentos de pedra, procedentes dos últimos tempos da Idade da Pedra. Os artífices que desenvolveram sua habilidade nessas oficinas hão de ter trabalhado por conta da comunidade, como fazem, ainda hoje, os artesãos das comunidades gentílicas da índia. De qualquer modo, nessa fase de desenvolvimento, só podia haver troca no seio mesmo da tribo, e ainda assim em caráter excepcional. Mas quando as tribos pastorís se destacaram do resto dos selvagens, encontramos inteiramente formadas as condições necessárias para a troca entre membros de tribos diferentes e para o desenvolvimento e consolidação do comércio como uma instituição regular. A princípio, as trocas se fizeram entre as tribos através dos chefes gentílicos; mas, quando os rebanhos começaram pouco a pouco a ser propriedade privada, a troca entre indivíduos foi predominando mais e mais, até chegar a ser a forma única. O principal artigo oferecido pelas tribos pastorís aos seus vizinhos era o gado; o gado chegou a ser a mercadoria pela qual todas as demais eram avaliadas, mercadoria que era recebida com satisfação em troca de qualquer outra; em uma palavra: o gado desempenhou as funções de dinheiro, e serviu como tal, já naquela época. Foi com essa necessidade e rapidez que se desenvolveu, no início mesmo da troca de mercadorias, a exigência de uma mercadoria que servisse de dinheiro.
A horticultura, provavelmente desconhecida dos asiáticos da fase inferior da barbárie, apareceu entre eles mais tarde, na fase média, como precursora da agricultura. O clima dos planaltos turanianos não permite a vida pastoril, a não ser com provisões de forragem para um longo e rigoroso inverno; foi preciso cultivar ali, portanto, os prados e os cereais. O mesmo pode ser dito das estepes situadas ao norte do Mar Negro. Mas, se a princípio o grão foi recolhido para o gado, não tardou a ser também um alimento para o homem. A terra cultivada continuou sendo propriedade da tribo, entregue em usufruto, primeiro à gens, depois às comunidades de famílias, e por último aos indivíduos. Estes devem ter tido certos direitos de posse – além disso. nada mais.
Entre os inventos industriais dessa fase, há dois especialmente importantes: o primeiro é o tear, o segundo é a fundição de minerais e o trabalho com metais fundidos. O cobre, o estanho e o bronze – este combinação dos dois primeiros - eram os mais importantes; com o bronze eram fabricados instrumentos e armas, que, entretanto, não podiam substituir os de pedra. Isso só seria possível com o ferro, mas ainda não se sabia de que modo consegui-lo. O ouro e a prata começaram a ser empregados em jóias e enfeites, e provavelmente logo alcançaram valor bem mais elevado que o cobre e o bronze.
O desenvolvimento de todos os ramos da produção: criação de gado, agricultura, ofícios manuais domésticos, tornou a força de trabalho do homem capaz de produzir mais do que o necessário para a sua manutenção. Ao mesmo tempo, aumentou a soma de trabalho diário correspondente a cada membro da gens, da comunidade doméstica ou da família isolada. Passou a ser conveniente conseguir mais força de trabalho, o que se logrou através da guerra; os prisioneiros foram transformados em escravos. Dadas às condições históricas gerais de então, a primeira grande divisão social do trabalho, ao aumentar a produtividade deste, e por conseguinte a riqueza, e ao estender o campo da atividade produtora, tinha que trazer consigo - necessariamente - a escravidão. Da primeira grande divisão social do trabalho, nasceu a primeira grande divisão da sociedade em duas classes: senhores e escravos, exploradores e explorados.
Continuamos ignorando, até agora, quando e como os rebanhos deixaram de ser propriedade comum da tribo ou da gens e passaram a ser patrimônio dos diferentes chefes de família; mas a mudança, no essencial, deve ter ocorrido nessa fase. E, com a aparição dos rebanhos e outras riquezas novas, operou-se uma revolução na família. O providenciar a alimentação fora sempre assunto do homem; e os instrumentos necessários para isso eram produzidos por ele e ficavam sendo de sua propriedade. Os rebanhos constituíam nova fonte de alimentos e utilidades; sua domesticação e sua ulterior criação competiam ao homem. Por isso o gado lhe pertencia, assim como as mercadorias e os escravos que obtinha em troca dele. Todo o excedente deixado agora pela produção pertencia ao homem; a mulher tinha participação no consumo, porém não na propriedade. O "selvagem" - guerreiro e caçador - se tinha conformado em ocupar o segundo lugar na hierarquia doméstica e dar precedência á mulher; o pastor, mais "suave", envaidecido com a riqueza, tomou o primeiro lugar, relegando a mulher para o segundo. E ela não podia reclamar. A divisão do trabalho na família havia sido a base para a distribuição da propriedade entre o homem e a mulher. Essa divisão do trabalho na família continuava sendo a mesma, mas agora transtornava as relações domésticas, pelo simples fato de ter mudado a divisão do trabalho fora da família. A mesma causa que havia assegurado à mulher sua anterior supremacia na casa a exclusividade no trato dos problemas domésticos , assegurava agora a preponderância do homem no lar: o trabalho doméstico da mulher perdia agora sua importância, comparado com o trabalho produtivo do homem; este trabalho passou a ser tudo; aquele, uma insignificante contribuição. Isso demonstra que a emancipação da mulher e sua equiparação ao homem são e continuarão sendo impossíveis, enquanto ela permanecer excluída do trabalho produtivo social e confinada ao trabalho doméstico, que é um trabalho privado. A emancipação da mulher só se torna possível quando ela pode participar em grande escala, em escala social, da produção, e quando o trabalho doméstico lhe toma apenas um tempo insignificante. Esta condição só pode ser alcançada com a grande indústria moderna, que não apenas permite o trabalho da mulher em grande escala, mas até o exige, e tende cada vez mais a transformar o trabalho doméstico privado em uma indústria pública.
A supremacia efetiva do homem na casa tinha posto por terra os últimos obstáculos que se opunham ao seu poder absoluto. Esse poder absoluto foi consolidado e eternizado pela queda do direito materno, pela introdução do direito paterno e a passagem gradual do matrimônio sindiásmico à monogamia. Mas isso abriu também uma brecha na antiga ordem gentílica: a família individual tornou-se uma potência e levantou-se ameaçadoramente frente à gens.
O marco seguinte do progresso é o que nos leva á fase superior da barbárie - período em que todos os povos civilizados viveram sua época heróica; período da espada de ferro, mas também do arado e do machado de ferro. Ao por este metal a seu serviço, o homem se fez dono da última e mais importante das matérias-primas que tiveram, na história, um papel revolucionário; a última, se excetuarmos a batata. O ferro tornou possível a agricultura em grande escala e a preparação, para o cultivo, de grandes áreas de florestas; deu aos artesãos um instrumento cuja dureza e cujo fio jamais haviam podido ter pedra alguma ou qualquer metal. Tudo isso foi acontecendo aos poucos: o primeiro ferro era freqüentemente mais mole do que o bronze. Por isso foi lenta a desaparição das armas de pedra; machados de pedra ainda eram usados em combate no Canto de Hildebrando e até na batalha de Hastings, em 1066. O progresso, contudo, era irresistível, menos intermitente e mais célere. A cidade, encerrando casas de pedra ou de tijolo dentro das suas muralhas de pedra com torres e ameias, transformou-se na residência central da tribo ou da confederação de tribos. Isso marca um notável progresso na arquitetura, mas é também um sinal do perigo crescente e da necessidade de defesa A riqueza aumentava com rapidez, mas sob a forma de riqueza individual; a arte de tecer, o trabalho com os metais e outros ofícios de crescente especialização, deram variedade e perfeição sempre maior á produção; a agricultura principiou a fornecer, além de cereais, legumes e frutas, azeites e vinhos, cuja preparação já tinha sido aprendida. Um trabalho tão variado já não podia ser realizado por um só indivíduo e se produziu a segunda grande divisão social do trabalho: o artesanato se separou da agricultura. O constante crescimento da produção, e com ela da produtividade do trabalho, aumentou o valor da força de trabalho do homem; a escravidão, ainda em estado nascente e esporádico na fase anterior, converteu-se em elemento básico do sistema social. Os escravos deixaram de ser meros auxiliares e eram levados às dezenas para trabalhar nos campos e nas oficinas. Ao dividir-se a produção nos dois ramos principais - agricultura e ofícios manuais - surgiu a produção diretamente para a troca, a produção mercantil, e com ela o comércio, não só no interior e nas fronteiras da tribo como também por mar. Tudo isso ainda estava pouco desenvolvido; os metais preciosos apenas começaram a se converter na mercadoria-moeda preponderante e universal; mas as moedas ainda não eram cunhadas, os metais eram trocados por peso.
A diferença entre ricos e pobres veio somar-se à diferença entre homens livres e escravos; a nova divisão do trabalho acarretou uma nova divisão da sociedade em classes. A diferença de riqueza entre os diversos chefes de família destruiu as antigas comunidades domésticas comunistas, em toda parte onde estas ainda subsistiam; acabou-se o trabalho comum da terra por conta daquelas comunidades. A terra cultivada foi distribuída entre as famílias particulares, a princípio por tempo limitado, depois para sempre; a transição à propriedade privada completa foi-se realizando aos poucos, paralelamente á passagem do matrimônio sindiásmico à monogamia. A família individual principiou a transformar-se na unidade econômica da sociedade.
A crescente densidade da população exigiu maior união, tanto interna como externamente. Torna-se uma necessidade, em toda parte, a confederação de tribos consangüíneas, e logo a sua fusão; por isso, seus territórios se fundiram no território comum do povo. 0 chefe militar do povo - rex, basileu, thiudans - veio a tornar-se um funcionário permanente e indispensável. A assembléia do povo foi criada onde ainda não existia. 0 chefe militar, o conselho e a assembléia do povo constituíam os órgãos da democracia militar egressa da sociedade gentílica. E essa democracia era militar porque a guerra e a organização para a guerra eram, agora, funções regulares na vida do povo. As riquezas dos vizinhos excitavam a ambição dos povos, que já começavam a encarar a aquisição de riquezas como uma das finalidades precípuas da vida. Eram bárbaros: o saque lhes parecia mais fácil e até mais honroso do que o trabalho produtivo. A guerra, feita anteriormente apenas para vingar uma agressão ou com o objetivo de ampliar um território que se tornara insuficiente, era empreendida agora sem outro propósito que o do saque, e se transformou em um negócio permanente. Não era por acaso que se erigiam formidáveis muralhas em torno das novas cidades fortificadas; seus fossos eram o túmulo da gens e suas torres alcançavam já a civilização. Internamente, deu-se o mesmo. As guerras de rapina aumentavam o poder do supremo chefe militar e também dos chefes inferiores; a eleição habitual dos seus sucessores nas mesmas famílias, sobretudo a partir da introdução do direito paterno, passou gradualmente a ser sucessão hereditária tolerada a princípio, em seguida exigida, e finalmente usurpada; com isso, foram assentados os alicerces da monarquia e da nobreza hereditária. Dessa forma, os órgãos da constituição gentílica foram sendo arrancados de suas raízes populares, raízes na gens, na fratria e na tribo, com o que todo o regime gentílico acabou por se transformar em seu contrário: de uma organização de tribos para a livre regulamentação de seus próprios assuntos, fez-se uma organização para o saque e a opressão dos vizinhos; e, correspondentemente, seus órgãos deixaram de ser instrumentos da vontade do povo, convertendo-se em órgãos independentes, para dominar e oprimir seu próprio povo. Isso nunca teria sido possível se a cobiça das riquezas não houvesse dividido os membros da gens em ricos e pobres, "se as diferenças de propriedade no seio de uma mesma gens não tivessem transformado a comunhão de interesses em antagonismo entre os membros da gens" (Marx) e se o incremento da escravidão já não tivesse começado a fazer considerar o trabalho para ganhar a vida como algo para escravos, mais desonroso do que a pilhagem.
Chegamos aos umbrais da civilização, que se inicia por outro progresso na divisão do trabalho. No período inferior, os homens produziam somente para as suas necessidades diretas; as trocas reduziam-se a casos isolados e tinham por objeto os excedentes obtidos por acaso. Na fase média da barbárie já nos defrontamos com uma propriedade em forma de gado, entre os povos pastores, e, quando os rebanhos são bastante grandes, com uma produção com excedente regular sobre o consumo próprio; ao mesmo tempo, verificamos uma divisão do trabalho entre os povos pastores e as tribos mais atrasadas, que não tinham rebanhos; e daí dois diferentes graus de produção coexistindo, o que implica em condições para uma certa regularidade de troca. A fase superior da barbárie nos traz uma divisão ainda maior do trabalho: a divisão entre a agricultura e o artesanato; e dai a produção cada vez maior de objetos fabricados diretamente para a troca, e a elevação da troca entre produtores individuais à categoria de necessidade vital da sociedade. A civilização consolida e aumenta todas essas divisões do trabalho já existentes, acentuando sobretudo o contraste entre a cidade e o campo (contraste que permitiu à cidade dominar economicamente o campo - como na antiguidade - ou ao campo dominar economicamente a cidade, como na Idade Média), e acrescenta uma terceira divisão do trabalho, peculiar a ela e de importância primacial, criando uma classe que não se ocupa da produção e sim, exclusivamente, da troca dos produtos: os comerciantes.
Até aqui, apenas a produção havia determinado os processos de formação de classes novas; as pessoas que tomavam parte nela se dividiam em diretores e executores, ou em produtores em grande e pequena escala. Agora, surge uma classe que, sem tomar absolutamente parte na produção, conquista a direção geral da mesma e avassala economicamente os produtores; uma classe que se transforma no intermediário indispensável entre dois produtores, e os explora a ambos. Sob o pretexto de poupar aos produtores as fadigas e os riscos da troca de produtos, de encontrar saída para os produtos até nos mercados mais distantes, tornando-se assim a classe mais útil da sociedade, forma-se uma classe de aproveitadores, uma classe de verdadeiros parasitas sociais, que, em compensação por seus serviços, na realidade insignificantes, retira a nata da produção nacional e estrangeira, concentra rapidamente em suas mãos riquezas enormes e adquire uma influência social correspondente a estas, ocupando, por isso mesmo, no decurso desse período de civilização, posição de mais e mais destaque, logrando um domínio sempre maior sobre a produção, até gerar um produto próprio: as crises comerciais periódicas.
É verdade que, no estágio de desenvolvimento que estamos analisando, a nascente classe dos comerciantes ainda não suspeitava das grandes coisas que lhe estavam reservadas. Mas se formou e se tornava indispensável - e isso era suficiente. Com ela, veio o dinheiro-metal, a moeda cunhada, novo meio para que o não-produtor dominasse o produto e sua produção. Havia sido encontrada a mercadoria por excelência, que encerra em estado latente todas as demais, o instrumento mágico que se transforma, à vontade, em todas as coisas desejadas e desejáveis. Quem o possuía era dono do mundo da produção. E quem o possuiu antes de todos? O comerciante. Em suas mãos, o culto do dinheiro estava garantido. O comerciante tratou de tornar claro que todas as mercadorias, e com elas os seus produtores, deveriam prosternar-se ante o dinheiro. Provou de maneira prática que as demais formas de riqueza não passavam de quimeras, em face dessa genuína encarnação da riqueza como tal. De então para cá, nunca o poder do dinheiro se manifestaria com tanta brutalidade e violência primitiva como naquele período de sua juventude. Em seguida à compra de mercadorias por dinheiro, vieram os empréstimos, e com eles os juros e a usura. Nenhuma legislação posterior submete, de maneira tão dura e irremissível, o devedor ao credor usurário, como o faziam as leis da antiga Atenas e da antiga Roma; e, nos dois casos, essas leis nasceram espontaneamente, sob a forma de direito consuetudinário, não sujeitas a outra compulsão que a da economia.
Ao lado da riqueza em mercadorias e escravos, ao lado da riqueza em dinheiro, apareceu a riqueza em terras. A posse de parcelas do solo, concedida primitivamente pela gens ou pela tribo aos indivíduos, fortalecera-se a tal ponto que a terra já podia ser transmitida por herança. O que nos últimos tempos eles exigiam antes de tudo era ficarem livres dos direitos que as comunidades gentílicas tinham sobre essas parcelas, direitos que para eles se tinham transformado em obstáculos.
O obstáculo desapareceu, mas em pouco tempo também desaparecia a nova propriedade territorial. A propriedade livre e plena do solo significava não só a posse integral do mesmo, sem nenhuma restrição, como, ainda, a faculdade de aliená-lo. Esta faculdade não existiu quando o solo era propriedade da gens. Quando, porém, o obstáculo da propriedade suprema da gens e da tribo foi suprimido pelo novo proprietário, em caráter definitivo, se rompeu também o vinculo que unia indissoluvelmente o proprietário ao solo. O que isto significava ensinou-lhe o dinheiro, que se inventou justamente ao tempo do advento da propriedade privada da terra. A terra, agora, podia tornar-se mercadoria, podia ser vendida ou penhorada. Logo que se introduziu a propriedade privada da terra, criou-se a hipoteca (vide Atenas). Tal como o heterismo e a prostituição pisam os calcanhares da monogamia, a hipoteca adere à propriedade imóvel. Não quiseste a plena, livre e alienável propriedade do solo ? Pois aqui a tens. "Tu I' as voulu, Georges Dandin !"
Com a expansão do comércio, o dinheiro, a usura, a propriedade territorial e a hipoteca, progrediram rapidamente a centralização e a concentração das riquezas nas mãos de uma classe pouco numerosa, o que se fez acompanhar do empobrecimento das massas e do aumento numérico dos pobres. A nova aristocracia da riqueza acabou por isolar a antiga nobreza tribal, em todos os lugares onde não coincidiu com ela (em Atenas, em Roma e entre os germanos). E essa divisão de homens livres em classes, de acordo com seus bens, foi seguida, sobretudo na Grécia, de um extraordinário aumento no número dos escravos, cujo trabalho forçado constituía a base de todo o edifício social.
Vejamos agora qual foi a sorte da gens no curso dessa revolução social. Ela era impotente diante dos novos elementos que se tinham desenvolvido sem o seu concurso. Sua primeira condição de existência era que os membros de uma gens ou de uma tribo estivessem reunidos no mesmo território e habitassem exclusivamente nele. Esse estado de coisas já tinha desaparecido há muito. Gens e tribos se achavam misturadas em toda parte; em toda parte, escravos, clientes e estrangeiros viviam no meio dos cidadãos. A vida sedentária somente alcançada em fins da fase média da barbárie via-se alterada com freqüência pela movimentação e pelas mudanças de residência devidas ao comércio, bem como pela mudança dos ocupantes e pelas vendas das terras. Os membros das uniões gentílicas já não se podiam reunir para resolver assuntos comuns; a gens ocupava-se apenas de coisas secundárias, como festas religiosas, e com indiferença. Paralelamente às necessidades e interesses para cuja defesa se tinham formado e eram aptas as uniões gentílicas, a revolução nas relações econômicas e a conseqüente diferenciação social haviam criado novas necessidades e novos interesses, não só estranhos, mas até opostos, em todos os sentidos, à velha ordem da gens. Os interesses do grupos de artesãos, nascidos da divisão do trabalho, as necessidades específicas da cidade, opostas às do campo, exigiam órgãos novos; mas cada um desses grupos se compunha de pessoas pertencentes às mais diversas gens, fratrias e tribos, e até de estrangeiros. Os novos órgãos, portanto, tinham que se formar necessariamente fora do regime gentílico, independentemente dele - e, pois, em detrimento do mesmo. Em cada corporação gentílica, por sua vez, se fazia sentir esse conflito de interesses, que culminava quando se defrontavam pobres e ricos, usurários e devedores, dentro da mesma gens e da mesma tribo. A tudo isso, vinha juntar-se a população nova, estranha ás associações gentílicas, que podia chegar a ser uma força no país (como aconteceu em Roma) e que, ao mesmo tempo, era bastante numerosa para poder ser admitida gradualmente nas estirpes e tribos consangüíneas. Em face dessa população, as uniões gentílicas figuravam como corporações fechadas, privilegiadas; a democracia primitiva, espontânea, transformara-se numa detestável aristocracia. Em uma palavra: a constituição da gens, fruto de uma sociedade que não conhecia antagonismos interiores, era adequada apenas para semelhante sociedade. Ela não tinha outros meios coercitivos além da opinião pública. Acabava de surgir, no entanto, uma sociedade que, por força das condições econômicas gerais de sua existência, tivera que se dividir em homens livres e escravos, em exploradores ricos e explorados pobres; uma sociedade em que os referidos antagonismos não só não podiam ser conciliados como ainda tinham que ser levados a seus limites extremos. Uma sociedade desse gênero não podia subsistir senão em meio a uma luta aberta e incessante das classes entre si, ou sob o domínio de um terceiro poder que, situado aparentemente por cima das classes em luta, suprimisse os conflitos abertos destas e só permitisse a luta de classes no campo econômico, numa forma dita legal. O regime gentílico já estava caduco. Foi destruído pela divisão do trabalho que dividiu a sociedade em classes, e substituído pelo Estado.
Já estudamos, uma a uma, as três formas principais de como o Estado se erigiu sobre as ruínas da gens. Atenas apresenta a forma que podemos considerar mais pura, mais clássica; ali, o Estado nasceu direta e fundamentalmente dos antagonismos de classes que se desenvolviam no seio mesmo da sociedade gentílica. Em Roma, a sociedade gentílica se converteu numa aristocracia fechada, em meio a uma plebe numerosa e mantida à parte, sem direitos mas com deveres; a vitória da plebe destruiu a antiga constituição da gens, e sobre os escombros instituiu o Estado, onde não tardaram a se confundir a aristocracia gentílica e a plebe. Entre os germanos, por fim, vencedores do império romano, o Estado surgiu em função direta da conquista de vastos territórios estrangeiros que o regime gentílico era impotente para dominar. Como, porém, a essa conquista não correspondia uma luta séria com a antiga população, nem uma divisão de trabalho mais avançada; como o grau de desenvolvimento econômico de vencidos e vencedores era quase o mesmo - e por conseguinte persistia a antiga base econômica da sociedade - a gens pôde manter-se ainda por muitos séculos, sob uma forma modificada, territorial, na constituição da marca, e até rejuvenescer durante certo tempo, sob uma forma atenuada, nas famílias nobres e patrícias dos anos posteriores, e mesmo em famílias camponesas, como em Dithmarschen. (2)
O Estado não é pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora para dentro; tampouco é "a realidade da idéia moral", nem "a imagem e a realidade da razão", como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da "ordem". Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela e distanciando-se cada vez mais, é o Estado.
Distinguindo-se da antiga organização gentílica, o Estado caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo agrupamento dos seus súditos de acordo com uma divisão territorial. As velhas associações gentílicas, constituídas e sustentadas por vínculos de sangue, tinham chegado a ser, como vimos, insuficientes em grande parte, porque supunham a ligação de seus membros a um determinado território, o que deixara de acontecer há bastante tempo. 0 território permanecera, mas os homens se haviam tornado móveis. Tomada a divisão territorial como ponto de partida, deixou-se aos cidadãos o exercício dos seus direitos e deveres sociais onde estivessem estabelecidos, independentemente das gens e das tribos. Essa organização dos súditos do Estado conforme o território é comum a todos os Estados. Por isso nos parece natural; mas, em capitules anteriores vimos como foram necessárias renhidas e longas lutas antes que em Atenas e Roma ela pudesse substituir a antiga organização gentílica.
O segundo traço característico é a instituição de uma força pública, que já não mais se identifica com o povo em armas. A necessidade dessa força pública especial deriva da divisão da sociedade em classes, que impossibilita qualquer organização armada espontânea da população. Os escravos integravam, também, a população; os 90 000 cidadãos de Atenas só constituíam uma classe privilegiada em confronto com os 365 000 escravos. O exército popular da democracia ateniense era uma força pública aristocrática contra os escravos, que mantinha submissos; todavia, para manter a ordem entre os cidadãos, foi preciso também criar uma força polícial, como falamos anteriormente. Esta força pública existe em todo Estado; é formada não só de homens armados como, ainda, de acessórios materiais, os cárceres e as instituições coercitivas de todo gênero, desconhecidos pela sociedade da gens. Ela pode ser pouco importante e até quase nula nas sociedades em que ainda não se desenvolveram os antagonismos de classe, ou em lugares distantes, como sucedeu em certas regiões e em certas épocas nos Estados Unidos da América. Mas se fortalece na medida em que exacerbam os antagonismos de classe dentro do Estado e na medida em que os Estados contíguos crescem e aumentam de população. Basta-nos observar a Europa de hoje, onde a luta de classes e a rivalidade nas conquistas levaram a força pública a um tal grau de crescimento que ela ameaça engolir a saciedade inteira e o próprio Estado.
Para sustentar essa força pública, são exigidas contribuições por parte dos cidadãos do Estado: os impostos. A sociedade gentílica não teve idéia deles, mas nós os conhecemos muito bem. E, com os progressos da civilização, os impostos, inclusive, chegaram a ser poucos; o Estado emite letras sobre o futuro, contrai empréstimos, contrai dívidas do Estado. A velha Europa está em condições de nos falar, por experiência própria, também disso.
Donos da força pública e do direito de recolher os impostos, os funcionários, como órgãos da sociedade, põem-se então acima dela. O respeito livre e voluntariamente tributado aos órgãos da constituição gentílica já não lhes basta, mesmo que pudessem conquistá-lo; veículos de um poder que se tinha tornada estranho à sociedade, precisam impor respeito através de leis de exceção, em virtude das quais gozam de uma santidade e uma inviolabilidade especiais. 'O mais reles dos beleguins do Estado civilizado tem mais "autoridade" do que todos os órgãos da sociedade gentílica juntos; no entanto, o príncipe mais poderoso, o maior homem público, ou general, da civilização pede invejar o mais modesto dos chefes de gens, pelo respeito espontâneo e indiscutido que lhe dedicavam. Este existia dentro mesmo da sociedade, aqueles vêem-se compelidos a pretender representar algo que está fora e acima dela.
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo das classes, e como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, é, por regra geral, o Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe que, por intermédio dele, se converte também em classe politicamente dominante e adquire novos meios para a repressão e exploração da classe oprimida. Assim, o Estado antigo foi, sobretudo, o Estado dos senhores de escravos para manter os escravos subjugados; o Estado feudal foi o órgão de que se valeu a nobreza para manter a sujeição dos servos e camponeses dependentes; e o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. Entretanto, por exceção, há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes. Nesta situação, achava-se a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, que controlava a balança entre a nobreza e os cidadãos; de igual maneira, o bonapartismo do primeiro império francês, e principalmente do segundo, que jogava com os proletários contra a burguesia e com esta contra aqueles. O mais recente caso dessa espécie, em que opressores e oprimidos aparecem igualmente ridículos, é o do novo império alemão da nação bismarckiana: aqui, capitalistas e trabalhadores são postos na balança uns contra os outros e são igualmente ludibriados para proveito exclusivo dos degenerados "junkers" prussianos.
Além disso, na maior parte dos Estados históricos, os direitos concedidos aos cidadãos são regulados de acordo com as posses dos referidos cidadãos, pelo que se evidencia ser o Estado um organismo para a proteção dos que possuem contra os que não possuem. Foi o que vimos em Atenas e em Roma, onde a classificação da população era estabelecida pelo montante dos bens. O mesmo acontece no Estado feudal da Idade Média, onde o poder político era distribuído conforme a importância da propriedade territorial. E é o que podemos ver no censo eleitoral dos modernos Estados representativos. Entretanto, esse reconhecimento político das diferenças de fortuna não tem nada de essencial; pelo contrário, revela até um grau inferior de desenvolvimento do Estado. A república democrática - a mais elevada das formas de Estado, e que, em nossas atuais condições sociais, vai aparecendo como uma necessidade cada vez mais iniludível, e é a única forma de Estado sob a qual pode ser travada a última e definitiva batalha entre o proletariado e a burguesia - não mais reconhece oficialmente as diferenças de fortuna. Nela, a riqueza exerce seu poder de modo indireto, embora mais seguro. De um lado, sob a forma de corrupção direta dos funcionários do Estado, e na América vamos encontrar o exemplo clássico; de outro lado, sob a forma de aliança entre o governo e a Bolsa. Tal aliança se concretiza com facilidade tanto maior quanto mais cresçam as dívidas do Estado e quanto mais as sociedades por ações concentrem em suas mãos, além do transporte, a própria produção, fazendo da Bolsa o seu centro. Tanto quanto a América, a nova república francesa é um exemplo muito claro disso, e a velha Suíça também traz a sua contribuição nesse terreno. Mas, que a república democrática não é imprescindível para essa fraternal união entre Bolsa e governo, prova-o, além da Inglaterra, o novo império alemão, onde não se pode dizer quem o sufrágio universal elevou mais alto, se Bismarck, se Bleichröder. E, por último, é diretamente através do sufrágio universal que a classe possuidora domina. Enquanto a classe oprimida - em nosso caso, o proletariado - não está madura para promover ela mesma a sua emancipação, a maioria dos seus membros considera a ordem social existente como a única possível e, politicamente, forma a cauda da classe capitalista, sua ala da extrema esquerda. Na medida, entretanto, em que vai amadurecendo para a auto-emancipação, constitui-se como um partido independente e elege seus próprios representantes e não os dos capitalistas. O sufrágio universal é, assim, o índice do amadurecimento da classe operária. No Estado atual, não pode, nem poderá jamais, ir além disso; mas é o suficiente. No dia em que o termômetro do sufrágio universal registrar para os trabalhadores o ponto de ebulição, eles saberão tanto quanto os capitalistas - o que lhes cabe fazer.
Portanto, o Estado não existiu eternamente. Houve sociedades que se organizaram sem ele, não tiveram a menor noção do Estado ou de seu poder. Ao chegar a certa fase de desenvolvimento econômico, que estava necessariamente ligada á divisão da sociedade em classes, essa divisão tornou o Estado uma necessidade. Estamos agora nos aproximando, com rapidez, de uma fase de desenvolvimento da produção em que a existência dessas classes não apenas deixou de ser uma necessidade, mas até se converteu num obstáculo á produção mesma. As classes vão desaparecer, e de maneira tão inevitável como no passado surgiram. Com o desaparecimento das classes, desaparecerá inevitavelmente o Estado. A sociedade, reorganizando de uma forma nova a produção, na base de uma associação livre de produtores iguais, mandará toda a máquina do Estado para o lugar que lhe há de corresponder: o museu de antiguidades, ao lado da roca de fiar e do machado de bronze.
De tudo que dissemos, infere-se, pois, que a civilização é o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca entre indivíduos dela resultante, e a produção mercantil – que compreende uma e outra - atingem seu pleno desenvolvimento e ocasionam uma revolução em toda a sociedade anterior.
Em todos os estágios anteriores da sociedade, a produção era essencialmente coletiva e o consumo se realizava, também, sob um regime de distribuição direta dos produtos, no seio de pequenas ou grandes coletividades comunistas. Essa produção coletiva era levada a cabo dentro dos mais estreitos limites, mas ao mesmo tempo os produtores eram senhores de seu processo de produção e de seus produtos. Sabiam o que era feito do produto: consumiam-no, ele não saía de suas mãos. E, enquanto a produção se realizou sobre essa base, não pôde sobrepor-se aos produtores, nem fazer surgir diante deles o espectro de poderes estranhos, como sucede, regular e inevitavelmente na civilização.
Nesse modo de produzir, porém, foi-se introduzindo lentamente a divisão do trabalho. Minou a produção e a apropriação em comum, erigiu em regra dominante a apropriação individual, criando, assim, a troca entre indivíduos (já examinamos como, anteriormente). Pouco a pouco, a produção mercantil tornou se a forma dominante.
Com a produção mercantil - produção não mais para o consumo pessoal e sim para a troca – os produtos passam necessariamente de umas para outras mãos. O produtor separa-se de seu produto na troca, e já não sabe o que é feito dele. Logo que o dinheiro, e com ele o comerciante, intervém como intermediário entre os produtores, complica-se o sistema de troca e torna-se ainda mais incerto o destino final dos produtos. Os comerciantes são muitos, e nenhum deles sabe o que o outro está fazendo. As mercadorias agora não passam apenas de mão em mão, mas também de mercado a mercado; os produtores já deixaram de ser os senhores da produção total das condições de sua própria vida, e tampouco os comerciantes chegaram a sê-lo. Os produtos e a produção estão entregues ao acaso.
Mas o acaso não é mais que um dos pólos de uma interdependência, da qual o outro pólo se chama necessidade. Na natureza, onde também parece imperar o acaso, faz muito tempo que pudemos demonstrar, em cada domínio específico, a necessidade imanente e as leis internas que se afirmam em tal acaso. E o que é certo para a natureza também o é para a sociedade. Quanto mais uma atividade social, uma série de processos sociais, escapam do controle consciente do homem, quanto mais parecem abandonados ao puro acaso, tanto mais as leis próprias, imanentes, do dito acaso se manifestam como uma necessidade natural. Leis análogas também regem as eventualidades da produção mercantil e da troca de mercadorias; frente ao produtor e ao comerciante isolados, aparecem como forças estranhas e no início até desconhecidas, cuja natureza precisa ser laboriosamente investigada e estudada. Estas leis econômicas da produção mercantil modificam-se de acordo com os diversos graus de desenvolvimento dessa forma de produção; mas todo o período da civilização, em geral, está regido por elas. Até hoje, o produto ainda domina o produtor; até hoje, toda a produção social ainda é regulada, não segundo um plano elaborado coletivamente, mas por leis cegas que atuam com a força dos elementos, em última instância nas tempestades dos períodos de crise comercial.
Vimos como, numa fase bastante primitiva do desenvolvimento da produção, a força de trabalho do homem se tornou apta para produzir consideravelmente mais do que era preciso para a manutenção do produtor, e como essa fase de desenvolvimento é, no essencial, a mesma em que nasceram a divisão do trabalho e a troca entre indivíduos. Não se demorou muito a descobrir a grande "verdade" de que também o homem podia servir de mercadoria, de que a força de trabalho do homem podia chegar a ser objeto de troca e consumo, desde que o homem se transformasse em escravo. Mal os homens tinham descoberto a troca e começaram logo a ser trocados, eles próprios. O ativo transformava-se em passivo, independentemente da vontade humana.
Com a escravidão, que atingiu o seu mais alto grau de desenvolvimento sob a civilização, veio a primeira grande cisão da sociedade em uma classe que explorava e outra que era explorada. Esta cisão manteve-se através de todo o período civilizado. A escravidão é a primeira forma de exploração, a forma típica da antiguidade; sucedem-na a servidão na Idade Média e o trabalho assalariado nos tempos modernos: São as três formas de avassalamento que caracterizam as três grandes épocas da civilização. A civilização faz-se sempre acompanhar da escravidão - a princípio franca, depois mais ou menos disfarçada.
O estágio da produção de mercadorias com que começa a civilização caracteriza-se, do ponto de vista econômico, pela introdução: 1) da moeda metálica (e, com ela, o capital em dinheiro), dos juros e da usura; 2) dos comerciantes como classe intermediária entre os produtores; 3) da propriedade privada da terra e da hipoteca; 4) do trabalho como forma predominante na produção. A forma de família que corresponde à civilização e vence definitivamente com ela é a monogamia, a supremacia do homem sobre a mulher, e a família individual como unidade econômica da sociedade. A força de coesão da sociedade civilizada é o Estado, que, em todos os períodos típicos, é exclusivamente o Estado da classe dominante e, de qualquer modo, essencialmente uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada. Também são características da civilização: por um lado, a fixação da oposição entre a cidade e o campo como base de toda a divisão do trabalho social e, por outro lado, a introdução dos testamentos, por meio dos quais o proprietário pode dispor de seus gens ainda depois de morto. Essa instituição, que era um golpe direto na velha constituição gentílica, não foi conhecida em Atenas, mesmo no tempo de Solon; foi introduzida bastante cedo em Roma, mas ignoramos em que época (3). Na Alemanha, implantaram-na os padres, para que os cândidos alemães pudessem, sem dificuldade, deixar legados para a Igreja.
Baseada nesse regime, a civilização realizou coisas de que a antiga sociedade gentílica jamais seria capaz. Mas as realizou pondo em movimento os impulsos e as paixões mais vis do homem e em detrimento das suas melhores disposições. A ambição mais vulgar tem sido a força motriz da civilização, desde seus primeiros dias até o presente; seu objetivo determinante é a riqueza, e outra vez a riqueza, e sempre a riqueza - mas não a da sociedade, e sim de tal ou qual mesquinho indivíduo. Se, na busca desse objetivo, a ciência tem-se desenvolvido cada vez mais e têm-se verificado períodos de extraordinário esplendor nas artes, é porque sem isso teriam sido impossíveis, na sua plenitude, as atuais realizações na acumulação de riquezas.
Desde que a civilização se baseia na exploração de uma classe por outra, todo o seu desenvolvimento se opera numa constante contradição. Cada progresso na produção é ao mesmo tempo um retrocesso na condição da classe oprimida, isto é, da imensa maioria. Cada benefício .para uns é necessariamente um prejuízo para outros; cada grau de emancipação conseguido por uma classe é um novo elemento de opressão para a outra. A prova mais eloqüente a respeito é a própria criação da máquina, cujos efeitos, hoje, são sentidos pelo mundo inteiro. Se entre os bárbaros, como vimos, é difícil estabelecer a diferença entre os direitos e os deveres, com a civilização estabelece-se entre ambos uma distinção e um contraste, evidentes para o homem mais imbecil, atribuindo-se a uma classe quase todos os direitos e à outra quase todos os deveres.
Mas não deve ser assim. O que é bom para a classe dominante deve ser bom para a sociedade, com a qual a classe dominante se identifica. Quanto mais progride a civilização, mais se vê obrigada a encobrir os males que traz necessariamente consigo, ocultando-os com o manto da caridade, enfeitando-os ou simplesmente negando-os. Em uma palavra: elabora-se uma hipocrisia convencional, desconhecida pelas primitivas formas de sociedade e pelos primeiros estágios da civilização, que culmina com a declaração de que a classe opressora explora a classe oprimida exclusiva e unicamente para o próprio benefício desta. E, se a classe oprimida não o reconhece, e até se rebela então além do mais, revela sua mais negra ingratidão para com seus benfeitores, os exploradores (4).
Para concluir, vejamos agora o julgamento da civilização por Morgan: "Desde o advento da civilização, chegou a ser tão grande o aumento da riqueza, assumindo formas tão variadas, de aplicação tão extensa, e tão habilmente administrada no interesse dos seus possuidores, que ela, a riqueza, transformou-se numa força incontrolável, oposta ao povo. A inteligência humana vê-se impotente e desnorteada diante de sua própria criação. Contudo, chegará um tempo em que a razão humana será suficientemente forte para dominar a riqueza e fixar as relações do Estado com a propriedade que ele protege e os limites aos direitos dos proprietários. Os interesses da sociedade são absolutamente superiores aos interesses individuais, e entre uns e outros deve estabelecer-se uma relação justa e harmônica. A simples caça à riqueza não é a finalidade, o destino da humanidade, a menos que o progresso deixe de ser a lei no futuro, como tem sido no passado. O tempo que transcorreu desde o início da civilização não passa de uma fração ínfima da existência passada da humanidade, uma fração ínfima das épocas vindouras. A dissolução da sociedade ergue-se, diante de nós, como uma ameaça; é o fim de um período histórico - cuja única meta tem sido a propriedade da riqueza - porque esse período encerra os elementos de sua própria ruína. A democracia na administração, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e a instrução geral farão despontar a próxima etapa superior da sociedade, para a qual tendem constantemente a experiência, a razão, e a ciência. Será uma revivescência da liberdade, igualdade e fraternidade das antigas geras, mas sob uma forma superior." (Morgan, A Sociedade Antiga, pág. 552 ).
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(1) Sobretudo nas costas-ocidentais da América (ver Bancroft). Entre os haldas do arquipélago da Rainha Carlota, podem encontrar-se núcleos de economia doméstica abrangendo até setecentas pessoas, sob um só teto. Entre os notkas, tribos inteiras viviam sob o mesmo teto. (Nota de Engels)
(2) O primeiro historiador que teve idéia, pelo menos aproximada, da natureza da gens foi Niebuhr, e isso graças ao conhecimento que tinha da gens dithársica, ao qual deve também os erros convencionais que não submeteu à crítica. (Nota de Engels)
(3) O Sistema dos Direitos Adquiridos (Das System der erworbenen Rechte) de Lassale, na sua segunda parte, gira principalmente em torno da tese de que o testamento romano é tão antigo quanto a própria Roma, que “nunca houve uma época sem testamento” na história de Roma e que o testamento nasceu do culto aos mortos, muito antes da época romana. Lassale, como bom hegeliano da velha escola, não faz derivar as disposições do Direito Romano das relações sociais dos romanos e sim do “conceito especulativo” da vontade, chegando, assim, a esta afirmação inteiramente anti-histórica. Não se deve estranhar isso num livro que, em virtude desse mesmo conceito especulativo, chega à conclusão de que na herança a transmissão dos bens era uma questão meramente acessória. Lassale não se limita a crer nas ilusões dos jurisconsultos romanos, sobretudo da primeira fase; ver além delas. (Nota de Engels)
(4) Tive a intenção de me valer da brilhante crítica à civilização que se encontra esparsa nas obras de Charles Fourier, para a expor paralelamente à de Morgan e à minha. Infelizmente, não tive tempo. Farei notar apenas que Fourier considerava a monogamia e a propriedade da terra como as instituições mais características da civilização, a que ele chama uma guerra dos ricos contra os pobres. No seu trabalho, já encontramos, também, uma apreciação profunda do fato de, em todas as sociedades defeituosas e cheias de antagonismos, as famílias individuais (“les familles incohérentes”) serem as unidades econômicas. (Nota de Engels)