A SAÚDE NO BRASIL: REFORMA SANITÁRIA E OFENSIVA NEOLIBERAL

A SAÚDE NO BRASIL: REFORMA SANITÁRIA E OFENSIVA NEOLIBERAL

Maria Inês Souza Bravo e Maurz1io Castro de Matos

Apresentação

Pretende-se, com estas reflexões, caracterizar a política de saúde no Brasil, na década de 90, ressaltando as tensões e propostas entre os dois grandes projetos em confronto: o Projeto de Reforma Sanitária - construído na década de 80 e inscrito na Constituição Brasileira de 1988 e o Projeto de Saúde articulado ao mercado ou privatista, hegemônico na segunda metade da década, de 90. Ressal­tam-se os impactos da contra-reforma do Estado na saúde e as pro­posições de normatizações.
Apesar da consolidação do conceito de saúde como direito do cidadão e dever do Estado e das conquistas jurídico-institucionais (Constituição Federal de 1988 e Lei Orgânica da Saúde/Leis 8.080/90 e 8.142/90), a política de saúde no Brasil, na década de 90, passou por momentos distintos em relação à reforma sanitária. Num primeiro momento, as proposições de saúde como direito social e o SUS são questionados pela ideologia conservadora e, num segundo, aparecem propostas de normatizações visando consolidar a contra-reforma na saúde.
Este artigo, organizado em três itens, apresenta inicialmente, características dos dois projetos em disputa e o panorama da político de saúde. Em seguida, caracterizam-se os impactos da Reforma do Estado na Saúde e as ofensivas de normatizações do projeto privatista. Para finalizar, procura-se levantar proposições frente aos impasses vividos na atualidade, visando ao fortalecimento do Projeto de Reforma Sanitária, tendo como horizonte o Projeto de Democracia de Massas.

1. A Saúde no Brasil na década de 90

1. 1. Projetos em Disputa
A sociedade contemporânea vem atravessando, desde a década de 70, ma crise global que tem como possibilidade real o retrocesso social e a barbárie. Manifestações importantes dessa crise se expressam na crise do Estado de bem-estar e na crise do chamado socialismo real - propostas que, cada uma a seu modo, procuraram soluções para os antagonismos próprios à ordem do capital (Netto, 1991, e Bravo, 1998a).
Nesse contexto de transformações e crises, considera-se que existe hoje no Brasil, em conexão com a dinâmica sociopolítica e econômica internacional, dois grandes projetos societários antagônicos: o da sociedade sustentada em uma democracia restrita, que diminui os direitos sociais e políticos, e o de uma sociedade fundamentada na democracia de massas, com ampla participação social conjugando as instituições parlamentares e os sistemas partidários com uma rede de organização de base, salientando-se os sindicatos, comissões de fábrica, organizações profissionais e de bairros, movimentos so­ciais urbanos e rurais (Netto, 1990).
Esses dois grandes projetos societários têm repercussões nas diversas áreas das políticas sociais. Na saúde, destacam-se o Projeto de Reforma Sanitária e o Projeto Privatista.
O Projeto de Reforma Sanitária, construído na década de 80, tem como uma de suas estratégias o Sistema Único de Saúde (SUS) e foi fruto de lutas e mobilização dos profissionais de Saúde, ar­ticulados ao movimento popular. Tem como preocupação central assegurar que o Estado atue em função da sociedade, pautando-se na concepção de Estado democrá­tico e de direito, responsável pelas políticas sociais e, por conseguin­te, pela saúde. Como fundamentos dessa concepção, destacam-se: melhor explicitação do interesse público, democratização do Estado, criação de uma esfera pública com controle social. Outros aspectos significativos da proposta são: democratização do acesso, universalização das ações, descentralização, melhoria da qualidade dos serviços com adoção de um novo modelo assistencial pautado na integralidade e eqüidade das ações (Bravo, 1996). Sua premissa bá­sica consiste na saúde como direito de todos e dever do Estado.
O Projeto de Reforma Sanitária propõe uma relação diferen­ciada do Estado com a Sociedade, incentivando a presença de novos sujeitos sociais na definição da política setorial, através de mecanis­mos como os Conselhos e Conferências de Saúde. Esses mecanis­mos constituem inovação fundamental na gestão da política de saú­de. Os Conselhos, por exemplo, não governam mas estabelecem parâmetros de interesse público para o governo, exigindo democratização das informações e transparência do uso de recursos e demais ações desenvolvidas pelos governos (Carvalho, 1997). Esse projeto, na atual conjuntura brasileira, tem sido questionado, constituindo-se numa proposta contra-hegemônica.
Próximo ao término da gestão de Collor, oito meses, observa-­se a entrada de Adib Jatene no Ministério da Saúde, certamente como tentativa de mediação para a busca de apoio, frente à crise enfrenta­da pelo governo. Entretanto, a entrada de Jatene não coincide com o redirecionamento de investimento para o setor saúde.
Apesar das questões levantadas, contudo, o setor saúde conse­gue obter alguns avanços nesse período. Em 1990, são aprovadas as leis 8.080/90 e 8.142/90, que, juntas, formam a Lei Orgânica da Saú­de.? Na época, muito se falou sobre a demora da aprovação, dificuldade esta estritamente ligada aos interesses divergentes sobre a con­cepção de política de saúde. No entanto, há que se reconhecer que, comparativamente a outras políticas, foi até pouco, frente aos enfrentamentos, por exemplo, na assistência social (regulamentada em 1993) e na educação (somente em 1996). A realização da IX Conferência Nacional.de Saúde acontece dois anos após o previsto e, não por acaso, na gestão do ministro Jatene, em meio à imensa crise que assolava o governo federal. Essa conferência sob o temário "A municipalização é o caminho" teve duas características básicas: a primeira foi a ratificação do SUS como modelo ideal para a política de saúde no país; e a segunda foi o primeiro movimento expressivo tanto do ponto de vista quantitativo quanto qualitativo, a defender o impeachment do então presidente da República.
O segundo momento refere-se à era Itamar com duas diferencia­ ações. A primeira compreende a gestão de Jamil Haddad (8.10.1992­19.8.1993), que significa um freio ao sucateamento do setor saúde, apresentando proposições de fortalecimento do SUS. Já a gestão de Henrique Santillo (30.8.1993-1°.1.1995) é marcada pela ausência de iniciativas operacionais no avanço do SUS, mas também, por outro lado, não apresenta propostas contrárias. A saída de Haddad do gover­no tem ligação com o êxito do plano real e a primazia já daí - que vai se acirrar no governo FHC - da área econômica sobre a social.
Não por acaso, a reforma começou pela da previdência que, no fundo, foi mais uma reforma da previdência do servidor pú­blico, condição essencial para a implantação do ajuste estrutural no país. Portanto, as estratégias implantadas no setor público de terceirização da mão-de-obra, flexibilização dos direitos e instabili­dade funcional são ações concretas dessa reforma.
Assim, pode-se concluir que essa proposta de reforma do Esta­do trata a crise como se fosse apenas uma crise de uma forma do Estado e não uma crise econômica e política. No entanto, pode-se afirmar que essa reforma proposta se caracteriza como uma estraté­gia de contra-reforma.


2.2. Impactos da reforma do Estado em curso na Saúde

A reforma do Estado atinge o setor saúde notadamente no ter­ceiro núcleo, já que aí incluem-se os serviços de saúde. O documen­to do Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE) – nº. 13, de 1998, em especial o artigo de Bresser Pereira, apresenta uma proposta de reforma para o setor saúde, dirigida para a assistência ambulatorial e hospitalar, afirmada no documento como uma das partes fundamentais e mais caras do SUS. Assim, são pro­postas três ações:
1ª) Uma descentralização mais rápida e decisiva, com maior definição das atribuições e do poder de decisão das três esferas de governo, mantendo-se os estágios atuais: "centralizado", "descen­tralização incipiente", "descentralização parcial" e "descentralização semiplena".
2ª) A montagem de um sistema integrado, hierarquizado e regionalizado, composto por dois subsistemas. O primeiro denomi­nado subsistema de entrada e controle, em que a porta de entrada seriam os postos de saúde e o Programa Saúde da Família (PSF), responsáveis pela integralidade das ações, encaminhamentos para atendimento de casos de maior complexidade e de especialização para a rede ambulatorial e hospitalar, através de Autorização de Internação Hospitalar, que passaria a ser distribuída pelo número de habitantes e não mais por número de leitos. O segundo, intitulado subsistema de referência ambulatorial e especializada, seria forma­ deixa subentendidos dois sistemas: um SUS para os pobres e outro sistema para os consumidores.
Segundo Bahia, Santos & Gama (2000), a agenda do debate sobre a regulamentação dos planos e seguros teve dois momentos. O primeiro, no início da década de 90, quando o debate ficou restrito aos meios de divulgação especializados com ênfase em dois pontos: a elaboração de regras para as operadoras e a abertura do setor para o capital estrangeiro. Em meados da década de 90, a agenda se amplia e aparece na mídia. As entidades médicas e de defesa do consumidor assinaram as reivindicações de ampliação da cobertura e controle de preços.
A motivação inicial deste debate, segundo as autoras citadas, era possibilitar a entrada de grandes investidores internacionais e, paralelamente, a remoção de alguns obstáculos como a existência de inúmeras pequenas empresas comercializando planos com cobertu­ras restritas e preços inferiores às empresas de maior porte, como também práticas de monopólio de algumas cooperativas médicas. Esses obstáculos seriam superados com o estabelecimento de regras econômico-financeiras que controlassem a entrada de operadoras de planos e seguros de saúde no mercado, bem como neutralizassem a ação corporativa dos médicos.
A nomeação de José Serra para o Ministério da Saúde desloca as funções da regulamentação que estavam destinadas à Superinten­dência de Seguros Privados (SUSEP), vinculada ao Ministério da Fazenda, para o Ministério da Saúde. Nesse contexto, o Ministério da Saúde transforma-se num órgão capaz de enfrentar a poderosa indústria farmacêutica, através da normatização dos remédios gené­ricos, e as empresas de planos e seguros de saúde, conseguindo apoio dos meios de comunicação e opinião pública. As ações do Ministé­rio da Saúde se ampliam, da esfera pública para o mercado, com a criação das Agências Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e Naci­onal de Vigilância Sanitária (ANVISA), instituições dotadas de au­tonomia orçamentária e decisória, previstas pelo plano diretor de re­forma do Estado, de 1995.
A criação dessas agências expressam um fortalecimento do Ministério da Saúde no sentido de ditar parâmetros para atuação dos agentes privados (regulamentação dos preços de medicamentos c planos de saúde) e uma derrota do Ministério da Fazenda; não se sabe, entretanto, qual será o desfecho. Ressalta-se, entretanto, que esse fortalecimento do Ministério da Saúde não tem contribuído para melhorar as condições de saúde da população brasileira, para deli­mitar a base social do financiamento dos planos e seguros de saúde, nem para disciplinar as relações com o setor privado (tanto o contra­tado como o autônomo). As regulamentações trazem explicitamente uma contradição, que é a regulamentação da ação do capital estran­geiro na saúde, mas ao mesmo tempo naturaliza a concepção de ci­dadão consumidor, rompendo com o conceito do Movimento da Re­forma Sanitária, em que a saúde é um direito de todos e sua presta­ção um dever do Estado. Assim, as propostas de normatizações estão coerentes com a contra-reforma em curso no Brasil.
Como afirma Neto (1997), o discurso de que o SUS "não deu certo" alardeado pela imprensa e por setores do governo é equivoca­do e mal-intencionado; entretanto, o SUS precisa começar a dar cer­to, aos olhos da população e da mídia. Para que isso ocorra, precisa-­se investir em várias frentes. Uma perspectiva fundamental nessa direção é a reorientação do processo de formação profissional e de comunicação social que aponte na direção de "consciência sanitá­ria", proposta por Berlinger (1983). Outra estratégia é a ocupação do Estado, através dos partidos políticos de oposição que tenham compro­misso com as políticas públicas e ampliação da democracia na esfera da economia, da política e da cultura.
3. Proposições para o Fortalecimento do Projeto da Reforma Sanitária

Verifica-se, na década de 90, a substituição das lutas coletivas efetivadas na década de 80 por lutas corporativas em defesa de gru­pos de interesses particulares e imediatos dos trabalhadores. As clas­ses dominantes têm desenvolvido como ideário a americanização da sociedade brasileira, com o objetivo de neutralizar os processos de resistência através de estratégias persuasivas e desmobilizadoras da ação coletiva, procurando o consentimento das classes subalternas (Werneck, 1998).
As proposições da contra-reforma na saúde pretendem que os trabalhadores sejam os novos financiadores do capital através dos planos de saúde privados, com a despolitização da esfera pública e a defesa da solidariedade interclasses. O cidadão é dicotomizado em cliente e consumidor. O cliente é objeto das políticas públicas, ou seja, do pacote mínimo para a saúde previsto pelo Banco Mundial, e o consumidor tem acesso aos servi­ços via mercado.
Nesse contexto, é fundamental, na contracorrente, a defesa da democracia, da ampliação do Estado para participação da sociedade nas políticas públicas e a socialização das informações. No embate dos dois projetos explicitados no decorrer do texto, considera-se necessário, na atual conjuntura brasileira, construir uma pauta entre os diversos sujeitos sociais preocupados com a política pública de saúde em torno de questões que possam resgatar o Projeto de Reforma Sanitária na sua totalidade e não apenas ficar restrito ao Sistema Único de Saúde, que, como afirma Neto (1997), é apenas estratégia de um projeto mais abrangente de ampliação dos direitos sociais na direção da democracia de participação alargada.
Para viabilizar a democratização na saúde, na direção das con­quistas sociais necessárias, sugere-se o aprofundamento do controle social, visando à construção de uma esfera pública de saúde. Como enfrentamento deste desafio, cada vez maior frente ao aumento da conservadorização da sociedade civil e política, propõe-se o desen­volvimento de análises teóricas sobre a temática, bem como a reali­zação de assessoria aos conselheiros de saúde e entidades que constituem forças potenciais de transformação nessa nova ordem política brasileira.
Parte-se do pressuposto que só o aprofundamento da democra­cia e a mobilização dos movimentos organizados da sociedade brasi­leira poderão fazer face ao neoliberalismo que naturaliza a questão social, enfocando-a de forma individual, personalizada e focalista (Bravo, 1998).
Para finalizar, serão reforçados alguns temas para a agenda polí­tica em defesa da saúde, inserida na concepção da seguridade social, que deve permear a pauta dos Conselhos de Saúde e ser assumida pelas entidades sindicais, movimentos populares e partidos políticos de oposição. Ressalta-se que essas propostas têm sido levantadas em fóruns de debate e discussão sobre a temática e foram aqui reagrupadas. Principais propostas para a agenda política em defesa da saúde:
§ Democratização do Estado e defesa do cidadão como sujeito histórico;
§ Luta em defesa do Projeto da Reforma Sanitária;
§ Defesa da saúde, na perspectiva da seguridade social, como direito social do cidadão;
§ Luta em defesa da ética da solidariedade e não ficar refém da política econômica;
§ Participação nas Conferências de Saúde, de forma articulada com os demais sujeitos coletivos;
§ Realização de pesquisas e socialização das informações;
§ Luta pelo financiamento articulado à seguridade social;
§ Luta por uma política de recursos humanos;
§ Inserção nos Conselhos de Saúde, de forma crítica e participativa;
§ Estabelecimento de vínculos com os setores dominados e com a massa da população excluída;
§ Criação e/ou reativação de fóruns das políticas da seguridade social;
§ Luta pela garantia de recursos públicos para a seguridade social;
§ Realização de Encontros de Saúde articulados às demais polí­ticas de seguridade social;
§ Fortalecimento do orçamento participativo.