OS NOVENTA ANOS DO MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA

OS NOVENTA ANOS DO MANIFESTO DO PARTIDO COMUNISTA ( * )
Leon Trotsky


Custa acreditar que apenas dez anos nos separam do centenário do Manifesto do Partido Comunista! Este manifesto, o mais genial entre todos os da literatura mundial, surpeeende-nos ainda hoje pela sua atualidade. Suas partes mais importantes parecem ter sido escritas ontem. Sem dúvida alguma, seus jovens autores (Marx tinha 29 anos e Engels 27) souberam antever futuro como ninguém antes e como poucos depois deles.
No prefácio à edição de 1872, Marx e Engels afirmaram que, mesmo tendo certos trechos do Manifesto envelhecido, não tinham o direito de modificar o texto original, visto que, no decorrer dos 25 anos então passados, ele já se transformara em um documento histórico. De lá para cá mais de 65 anos transcorreram. Algumas de suas partes envelheceram ainda mais. Conseqüentemente, neste prefácio apresentaremos, de forma resumida, as idéias do Manifesto que até nossos dias conservam integralmente sua força e aquelas que necessitam de sérias modificações ou complementos.
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1. A concepção materialista da História, formulada por Marx pouco tempo antes da aparição do texto e que nele se encontra aplicada com perfeita maestria, resistiu completamente à prova dos acontecimentos e aos golpes da crítica hostil. Constitui-se, atualmente, em um dos mais preciosos instrumentos do pensamento humano. Todas as outras interpretações do processo histórico não mais possuem qualquer valor científico. Podemos afirmar, com segurança, que atualmente é impossível não apenas ser um militante revolucionário, mas simplesmente um homem politicamente instruído sem que nos apropriemos da concepção materialista da História.
2. "A História de todas as sociedades até os nossos dias não foi senão a história das lutas de classes" . O primeiro capítulo do Manifesto começa por esta frase.
Esta tese, que constitui a mais importante conclusão da concepção materialista da História, em pouco tempo transformou-se em elemento da luta de classes. A teoria que trocava o "bem-estar como", "a unidade nacional" e as "verdades eternas da moral" pela luta entre interesses materiais, considerados como a força motriz da sociedade, sofreu ataques particularmente ferozes da parte de reacionários hipócritas, doutrinários liberais e democratas idealistas. A eles acrescentaram-se mais tarde, desta vez a partir do próprio movimento operário, os ataques dos revisionistas, isto é, dos partidários da revisão do marxismo em favor da colaboração e conciliação de classes. Finalmente, em nossa época, os desprezíveis epígonos da Internacional Comunista (os stalinistas) tomaram o mesmo caminho: a política daquilo a que se dá o nome de "frentes populares" decorre, inteiramente, da negação das leis da luta de classes. Entretanto, vivemos na época do imperialismo que, levando todas as contradições sociais ao seu extremo, demonstra o triunfo teórico do Manifesto do Partido Comunista.
3. A anatomia do capitalismo, visto este como um estágio determinado da evolução econômica da sociedade, foi destrinchada por Marx de forma cabal em O Capital (1867). Mas, já no Manifesto as linhas fundamentais da análise foram traçadas com clareza: a) a retribuição do trabalho na medida indispensável à produção; b) a apropriação da mais-valia pelos capitalistas; c) a concorrência como lei fundamental das relações sociais; d) a ruína das classes médias, isto é, da pequena burguesia das cidades e do campesinato; e) a concentração da riqueza nas mãos de um número cada vez mais reduzido de possuidores, em um dos pólos sociais, e o crescimento numérico do proletariado em outro; f) a preparação das condições materiais e políticas para o regime socialista.
4. A tendência do capitalismo em baixar o nível de vida dos operários, a torná-los cada vez mais pobres. Esta tese foi violentamente atacada. Os padres, os professores, os ministros, os jornalistas, os teóricos sociais-democratas e os dirigentes sindicais levantaram-se contra a teoria da "pauperização progressiva". Invariavelmente enumeravam sinais do bem-estar crescente dos trabalhadores, tomando a aristocracia operária por todo o proletariado, ou tomando uma tendência temporária por uma situação perdurável. Paralelamente, a própria evolução do mais poderoso capitalismo, o dos Estados Unidos, transformou milhões de operários em párias, sustentados às custas da caridade estatal ou privada.
5. Em oposição ao Manifesto, que descrevia as crises comercial-industriais como uma série de crescentes catástrofes, os revisionistas afirmavam que o desenvolvimento nacional e internacional dos monopólios garantiria o controle do mercado e o domínio gradual das crises. Não há dúvida de que a passagem do século passado ao atual caracterizou-se por um desenvolvimento tão impetuoso do sistema que as crises pareciam "acidentais". Mas esta época está irremediavelmente ultrapassada. Em última análise, também com respeito a esta questão, a verdade está do lado do Manifesto.
6. "O governo moderno nada mais é do que uma delegação que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa". Nesta fórmula concentrada, que para os dirigentes sociais-democratas aparecia como um paradoxo jornalístico, encontra-se, na verdade, a única teoria científica sobre o Estado. A democracia criada pela burguesia não é, como pensavam Bernstein e Kautski, uma concha vazia que se pode, tranqüilamente, encher com o conteúdo de classe desejável. A democracia burguesa só pode servir à burguesia. O governo de "Frente Popular" dirigido por Blum ou Chautemps, Caballero ou Negrin é tão somente "uma delegação que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa". Quando esta delegação se sai mal em seus negócios, a burguesia expulsa-a do poder a pontapés.
7. "Toda luta de classes é uma luta política. . . A organização dos proletários em classe e, conseqüentemente, em partido político. . ." Os sindicalistas e anarco-sindicalistas, durante muito tempo, e ainda hoje, vêm procurando fugir à compreensão dessas leis históricas. O sindicalismo "puro" recebe, atualmente, um golpe fulminante em seu principal refúgio, os Estados Unidos. O anarco-sindicalismo sofreu uma derrota irreparável em sua última cidadela, a Espanha. Como nas outras, também nesta questão o Manifesto demonstrou estar certo.
8. O proletariado não pode conquistar o poder por meio das leis promulgadas pela burguesia. "Os comunistas. . . proclamam abertamente que seus fins só podem ser atingidos pela derrubada violenta da ordem social tradicional." O reformismo tentou explicar esta tese do Manifesto pela imaturidade do movimento operário da época e pelo insuficiente desenvolvimento da democracia. A sorte das "democracias" italiana e alemã, e de muitas outras, demonstrou que se alguma coisa não estava madura eram as próprias idéias reformistas.
9. Para a transformação socialista da sociedade é necessário que a classe operária concentre em suas mãos o poder capaz de varrer todos os obstáculos políticos que se anteponham em sua trajetória até a nova ordem. "O proletariado organizado em classe dominante" , eis o que é sua ditadura. Ao mesmo tempo, trata-se da única e verdadeira democracia proletária. Sua amplidão e sua profundidade dependem das condições históricas concretas. Quanto maior for o número de Estados que se lançarem no caminho da revolução socialista, mais livre e flexíveis serão as formas da ditadura, mais ampla e profunda será a democracia operária.
10. O desenvolvimento internacional do capitalismo determina o caráter internacional da revolução proletária. Uma das primeiras condições para a emancipação da classe operária consiste em sua ação comum, pelo menos nos países civilizados. O desenvolvimento do capitalismo uniu de forma tão estreita as diversas partes de nosso planeta, as "civilizadas" e "não civilizadas", que o problema da revolução socialista adquiriu, completa e definitivamente, um caráter mundial. A burocracia soviética tentou liquidar o Manifesto nesta questão fundamental, mas a degenerescência bonapartista do Estado soviético é a mortal ilustração do engodo que significa a teoria do "socialismo em um só país".
11. "A partir do momento em que, no curso do desenvolvimento, as diferenças de classe tenham desaparecido e que toda a produção esteja concentrada nas mãos de indivíduos associados, o poder público perde seu caráter político." Em outras palavras, o Estado extingue-se. Resta a sociedade liberta de sua camisa-de-força. E é exatamente isso o socialismo. O teorema inverso: o monstruoso crescimento da imposição e violência estatais na URSS demonstra que a sociedade soviética se afasta do socialismo.
12. "Os operários não têm pátria." Esta frase do Manifesto foi freqüentemente considerada pelos filisteus como um simples trocadilho de agitação. Na verdade, ela oferece ao proletariado a única diretriz justa a respeito da "pátria" capitalista. A supressão deste princípio pela II Internacional conduziu não apenas à destruição da Europa durante quatro anos, mas também à atual estagnação da cultura mundial. Diante da nova guerra que se aproxima, cujo caminho foi aberto pela III Internacional, o Manifesto permanece, ainda hoje, o mais seguro conselheiro sobre a questão da "pátria" capitalista.
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Vemos, portanto, que esta pequena obra dos dois jovens autores continua a fornecer indicações indispensáveis a respeito das questões mais fundamentais e candentes da luta libertadora. Que outro livro poderia, mesmo que de longe, estar à altura do Manifesto do Partido Comunista? Entretanto, isso não significa, absolutamente, que, após noventa anos de desenvolvimento sem par das forças produtivas e de grandiosas lutas sociais, o Manifesto não tenha necessidades de retificações e complementos. O pensamento revolucionário nada tem em comum com a idolatria. Os programas e os prognósticos verificam-se e corrigem-se à luz da experiência, que é para o pensamento humano a suprema instância. Entretanto, mesmo correções e complementos não podem ser aplicados com sucesso se não nos servimos, do mesmo método que se encontra à base do Manifesto, como, além disso, o prova a própria experiência histórica. Mostraremos isso servindo-nos dos exemplos mais importantes.
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1. Marx ensina que nenhuma ordem social deixa a cena antes de ter esgotado suas possibilidades criadoras. O Manifesto fustiga o capitalismo porque ele bloqueia o desenvolvimento das forças produtivas. Contudo, na sua época e mesmo durante várias décadas seguintes, este entrave possuía apenas um caráter relativo. Se, na segunda metade do Século XIX, tivesse sido possível à economia se organizar sobre fundamentos socialistas, o ritmo de seu crescimento teria sido incomparavelmente mais rápido. Esta tese, teoricamente incontestável, não modifica o fato de que as forças produtivas continuaram a crescer em escala mundial, e sem interrupção, até a Primeira Guerra Mundial. Foi unicamente nos últimos vinte anos que, malgrado as mais modernas conquistas científicas e técnicas, se abriu a época da estagnação direta e da própria decadência da economia mundial. A humanidade começa a viver sobre o capital acumulado e a próxima guerra ameaça destruir por longo tempo as próprias bases da civilização. Os autores do Manifesto pensavam que o capital seria liquidado muito antes de passar de sua fase de relativo reacionarismo à sua fase de absoluto reacionarismo. Esta transformação, porém, só se consumou aos olhos da atual geração, fazendo de nossa época a época de guerras, revoluções e do fascismo.
2. O erro de Marx e Engels a respeito dos prazos históricos decorria, de um lado, da subestimação das possibilidades posteriores inerentes ao capitalismo e, de outro, da superestimação da maturidade revolucionária do proletariado. A revolução de 1848 não se transformou em revolução socialista, como o Manifesto havia previsto, mas criou, para a Alemanha, a possibilidade de um formidável desenvolvimento. A Comuna de Paris demonstrou que o proletariado não pode arrancar o poder à burguesia sem ter à sua frente um partido revolucionário experiente. Ora, o longo período de desenvolvimento capitalista que se seguiu à Comuna conduziu não à educação de uma vanguarda revolucionária, mas, contrariamente, à degenerescência burguesa da burocracia operária que se tornou, por sua vez, o principal obstáculo à vitória da revolução proletária. Esta "dialética" os autores do Manifesto não podiam prever.
3. Para o Manifesto, o capitalismo é o reino da livre concorrência. Referindo-se ao crescente desenvolvimento do capitalismo, o texto não tira deste fato a necessária conclusão a respeito dos monopólios, que se transformaram na força dominante do capital em nossa época, premissa mais importante da economia socialista. Foi apenas mais tarde, em O Capital, que Marx constatou a tendência para a transformação da livre concorrência em monopólio. A caracterização científica do capitalismo monopolista foi dada por Lênin em seu livro Imperialismo, Estágio Supremo do Capitalismo.
4. Tomando como base sobretudo o exemplo da "Revolução Industrial" inglesa, os autores viam de maneira muito retilínea o processo de liquidação das classes médias, com a proletarização completa do artesanato, do pequeno comércio e do campesinato. Na verdade, as forças elementares da concorrência ainda não finalizaram esta obra, ao mesmo tempo, progressista e bárbara. O capital arruinou a pequena burguesia bem mais rapidamente do que a proletarizou. Por outro lado, a política consciente do Estado burguês, desde muito tempo, visa conservar artificialmente as camadas pequeno-burguesas. O crescimento da técnica e a racionalização da grande produção, ao mesmo tempo em que engendram um desemprego orgânico, freiam a proletarização da pequena burguesia. Houve um extraordinário aumento do exército de técnicos, administradores, empregados de comércio, em uma palavra, daquilo a que chamamos "novas classes médias". O resultado de tudo isso é que as classes médias, cujo desaparecimento o Manifesto previa de modo tão categórico, constituem, mesmo em um país altamente industrializado como a Alemanha, quase a metade da população. Mas a conservação artificial das camadas pequeno-burguesas, desde há muito caducas, em nada atenua as contradições sociais; torna-as, pelo contrário, particularmente mórbidas. Somando-se ao exército permanente de desempregados, ela é a expressão mais nociva do apodrecimento capitalista.
5. O Manifesto, escrito para uma época revolucionária, contém, no final do 2º capítulo, dez reivindicações que respondem ao período da imediata transição do capitalismo ao socialismo. No prefácio de 1872, Marx e Engels mostraram que essas reivindicações se encontravam parcialmente superadas e que, de qualquer modo, não tinham mais que um significado secundário. Para eles as palavras-de-ordem revolucionárias transitórias davam definitivamente lugar ao "programa mínimo" da social-democracia que, como sabemos, não ultrapassava os limites da democracia burguesa.
Na verdade, os autores do Manifesto indicaram de modo preciso a principal correção a ser feita em seu programa transitório: "Não basta que a classe operária se utilize da máquina estatal para pô-la a serviço de seus próprios fins". A correção tinha em vista o fetichismo a respeito da democracia burguesa. Ao Estado burguês, Marx opôs, mais tarde, o Estado do tipo da Comuna. Este "tipo" tomou, em seguida, a forma muito mais precisa de sovietes. Em nossos dias não pode haver programa revolucionário sem sovietes e sem controle operário. Quanto ao mais, isto é, às dez reivindicações do Manifesto que, na época da pacífica atividade parlamentar, pareceram "caducar", é preciso que se diga que recobraram, hoje, toda sua antiga importância. Por outro lado, o que caducou sem apelação foi o "programa mínimo" social-democrata.
6. Para justificar a esperança de que "a revolução burguesa alemã. . . será o prelúdio da revolução proletária", o Manifesto baseia-se no fato de que as condições gerais da civilização européia de então, assim como do proletariado, eram bem mais desenvolvidas do que na Inglaterra do século XVII ou na França do século XVIII. O erro deste prognóstico não está apenas na questão do prazo. Alguns meses mais tarde, a Revolução de 1848 mostrou, precisamente, que, em presença de uma maior evolução, nenhuma das classes burguesas é capaz de levar a revolução até o fim: a grande e a média burguesia estão muito ligadas aos proprietários fundiários e muito unidas pelo medo das massas; a pequena burguesia muito dispersa e muito dependente, através de seus dirigentes, da grande burguesia. Como demonstrou a posterior evolução dos acontecimentos na Europa e na Ásia, a revolução burguesa, isoladamente, não mais pode realizar-se. A purificação da sociedade dos males feudais só é possível se o proletariado, liberto das influências dos partidos burgueses, for capaz de se colocar à frente do campesinato e estabelecer sua ditadura revolucionária. Em função disso, a revolução burguesa mescla-se com a primeira fase da revolução socialista para, nesta, dissolver-se em seguida. A revolução nacional torna-se, assim, apenas um elo da revolução proletária internacional. A transformação dos fundamentos econômicos e de todas as relações sociais adquire um caráter permanente.
Para os partidos revolucionários dos países atrasados da Ásia, América Latina e África, a compreensão clara da relação orgânica entre a revolução democrática e a revolução socialista internacional é uma questão de vida ou morte.
7. Mostrando como o capitalismo arrebanha em seu turbilhão os países atrasados e bárbaros, o Manifesto nada diz a respeito da luta dos povos coloniais e semicoloniais pela sua independência. À medida que Marx e Engels pensavam que a vitória da revolução socialista "nos países civilizados pelo menos", era uma questão a ser resolvida nos anos seguintes, o problema das colônias resolver-se-ia igualmente não como o resultado de um movimento autônomo dos povos oprimidos, mas, simplesmente, como a conseqüência da vitória do proletariado nas metrópoles capitalistas. Esta é a razão pela qual as questões da estratégia revolucionária nos países coloniais e semicoloniais nem mesmo estão esboçadas no Manifesto. Mas elas exigem soluções particulares. Desta forma, é evidente que se a "pátria nacional" se tornou o pior obstáculo à revolução proletária nos países capitalistas avançados, mantém-se ainda como um fator relativamente progressista nos países atrasados que são obrigados a lutar por sua existência nacional independente. "Os comunistas, declara o Manifesto, apoiam, em todos os países, qualquer movimento revolucionário contra a ordem social e política existente". O movimento das raças de cor contra os opressores imperialistas é um dos mais poderosos e importantes movimentos contra a ordem social existente e é esta a razão pela qual necessita do total apoio, indiscutível e sem reticências, do proletariado de raça branca. O mérito de haver desenvolvido a estratégia revolucionária dos povos oprimidos é, sobretudo, de Lênin.
8. O trecho que mais envelheceu no Manifesto - não quanto a seu método, mas quanto a seus objetivos - é a crítica da literatura "socialista" da primeira metade do Século XIX (Capítulo 3) e a definição da posição dos comunistas em relação aos diversos partidos de oposição (Capítulo 4). As tendências e os partidos enumerados pelo texto foram varridos tão radicalmente pela Revolução de 1848, ou pela contra-revolução que se seguiu, que a História já não os menciona sequer. Entretanto, mesmo com respeito a este trecho, o Manifesto encontra-se mais próximo de nós do que estava em relação à geração anterior. Na época de prosperidade da II Internacional, quando o marxismo parecia reinar absolutamente no movimento operário, as idéias do socialismo anteriores a Marx podiam ser consideradas como definitivamente ultrapassadas. Hoje isso já não é mais verdade. A decadência da social-democracia e da Internacional Comunista provoca, a cada passo, monstruosos reavivamentos ideológicos. O pensamento senil recai, por assim dizer, na infância. À procura de fórmulas salvadoras, os profetas da época de declínio geral do capitalismo redescobrem doutrinas há muito enterradas pelo socialismo científico.
No que diz respeito ao problema dos partidos de oposição, as décadas que nos separam do Manifesto provocaram as mais profundas mudanças: não apenas os velhos partidos foram há muito substituídos por novos, como também o próprio caráter dos partidos e de suas mútuas relações modificou-se radicalmente. O Manifesto, portanto, deve ser complementado pelos documentos dos quatro primeiros congressos da Internacional Comunista, pela literatura fundamental do bolchevismo e pelas decisões das conferências do Movimento pela IV Internacional.
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Lembramos acima que, segundo Marx, nenhuma ordem social deixa a cena da História antes de haver esgotado todas suas possibilidades. Entretanto, uma ordem social, mesmo já tendo caducado, não cede seu lugar sem opor resistência a uma nova ordem. A sucessão dos regimes sociais supõe a mais áspera luta de classes, isto é, a revolução. Se o proletariado, por uma razão ou por outra, se mostra incapaz de derrubar a ordem burguesa que sobrevive, não resta ao capital financeiro, em luta para manter seu domínio abalado, senão transformar a pequena burguesia, por ele levada ao desespero e à desmoralização, em um exército de terror do fascismo. A degenerescência burguesa da social-democracia e a degenerescência fascista da pequena burguesia estão entrelaçadas como causa e efeito.
Em nossos dias, a III Internacional leva a cabo, em todos os países, com uma obscenidade ainda maior, a obra de engodo e desmoralização dos trabalhadores. Golpeando a vanguarda do proletariado espanhol, os mercenários sem escrúpulos de Moscou não apenas abrem caminho para o fascismo, como também realizam uma boa parte de seu trabalho. A longa crise da revolução internacional, que cada vez mais se transforma em crise da cultura humana, reduz-se, no fundo, à crise da direção revolucionária do proletariado.
Como herdeira da grande tradição de que o Manifesto do Partido Comunista é o mais precioso elo, a IV Internacional educa novos quadros para resolver antigas tarefas. A teoria nada amais é do que a realidade generalizada. Em uma atitude honesta com respeito à teoria revolucionária exprime-se a apaixonada vontade de refundir a realidade social. O fato de que ao sul do continente negro nossos camaradas de idéias traduziram pela primeira vez o Manifesto é uma evidente confirmação de que, em nossos dias, o pensamento marxista só está vivo sob a bandeira da IV Internacional. O futuro pertence-lhe. Quando se comemorar o centenário do Manifesto do Partido Comunista, a IV Internacional será a força revolucionária determinante em nosso planeta.
( * ) Escrito por Trotsky como prefácio à primeira edição do Manifesto do Partido Comunista, publicado na língua böeres, em outubro de 1937.

SOBRE A AUTORIDADE

SOBRE A AUTORIDADE
Friedrich Engels

Alguns socialistas empreenderam ultimamente uma verdadeira cruzada contra o que chamam princípio de autoridade. Basta que se lhes diga que tal ou qual ato é autoritário para que o condenem. A tal ponto se abusa desse método sumário de proceder que não há outro remédio senão examinar a questão um pouco mais de perto. Autoridade, no sentido de que se trata, quer dizer: imposição da vontade de outrem à nossa vontade; por outro lado, autoridade pressupõe subordinação. Pois bem: por pior que soem estas duas palavras e por mais desagradável que seja para a parte subordinada a relação que elas representam, a questão está em saber se existe meio de prescindir dela, se - dadas as condições atuais da sociedade - podemos criar outro regime social em que essa autoridade já não seja necessária e no qual, portanto, deva desaparecer. Examinando as condições econômicas, industriais e agrícolas, que constituem a base da atual sociedade burguesa, concluímos que elas tendem a deslocar cada vez mais a ação isolada pela ação combinada dos indivíduos. A indústria moderna, com grandes fábricas e oficinas, nas quais centenas de operários vigiam a marcha das máquinas complexas movidas a vapor, veio ocupar o lugar do produtor isolado; as carruagens e os carros para grandes distâncias foram substituídos pelo trem, assim como as pequenas escunas e faluas, o foram pelos barcos a vapor. A própria agricultura vai gradualmente caindo sob o domínio da máquina e do vapor, que substituem, lenta mas inexoravelmente, os pequenos proprietários por grandes capitalistas que, com a ajuda de operários assalariados, cultivam grandes extensões de terra. A ação coordenada, a complexidade dos processos, subordinados uns aos outros, desloca em toda parte a ação, independente dos indivíduos. E quem diz ação coordenada diz organização. E pode-se conceber organização sem autoridade?
Suponhamos que uma revolução social houvesse derrubado os capitalistas, cuja autoridade dirige presentemente a produção e a circulação da riqueza. Admitamos - para nos colocarmos inteiramente no ponto de vista dos antiautoritários - que a terra e os instrumentos de trabalho converteram-se em propriedade coletiva dos operários que os utilizam. Teria desaparecido a autoridade, ou não teria senão mudado de forma? Vejamos.
Tomemos, a título de exemplo, uma fábrica de fios de algodão. O algodão, antes de converter-se em fio, tem que passar, pelo menos, por seis operações sucessivas executadas, em sua maior parte, em diferentes locais. Além disso, para manter as máquinas em movimento, precisa-se de um engenheiro que controle a máquina a vapor, mecânicos para as reparações diárias e, ademais, numerosos empregados destinados a transportar os produtos de um lugar para outro, etc. Todos esses operários, homens, mulheres e crianças, são obrigados a começar e terminar o seu trabalho na hora fixada pela autoridade do vapor, que zomba da autonomia individual. Portanto, o que é necessário, antes de tudo, é que os operários se ponham de acordo quanto às horas de trabalho; a esse horário, uma vez fixado, submetem-se todos, sem nenhuma exceção. Depois, em cada lugar e a cada instante, surgem problemas de detalhes sobre o modo de produção, sobre a distribuição dos materiais, etc., problemas que têm de ser resolvidos imediatamente, sob pena de parar logo toda a produção. Quer se resolvam pela decisão de um delegado posto à frente de cada ramo da produção, quer pelo voto da maioria, se isso fosse possível, a vontade de alguém terá sempre que estar subordinada; isto é, as questões serão resolvidas autoritariamente. O mecanismo automático de uma grande fábrica é muito mais tirânico do que jamais foram os pequenos capitalistas que empregam operários. Na porta dessas fábricas poder-se-ia escrever, ao menos do que se refere ao período de trabalho: Lasciate ogni autonomia, voi che entrate! Se o homem , com a ciência e o gênio inventivo, submete as forças da natureza, estas se vingam dele submetendo-o, enquanto as emprega, a um verdadeiro despotismo, independentemente de toda organização social. Querer abolir a autoridade na grande indústria, é querer abolir a própria indústria, é querer destruir as fábricas de fio a vapor para voltar à roca.
Tomemos, para dar outro exemplo, uma ferrovia. Também aqui é absolutamente necessária a cooperação de uma infinidade de indivíduos, cooperação que deve realizar-se com toda exatidão a fim de que não se verifiquem desastres. Também aqui, a primeira condição para que a empresa marche é uma vontade dominante que remova todas as questões secundárias. Essa vontade pode ser representada por um só delegado ou por um comitê encarregado de executar as decisões de uma maioria de interessados. Tanto em um como em outro caso existe uma autoridade bem evidente. Mais ainda: que se passaria com o primeiro trem que partisse se fosse abolida a autoridade dos empregados da ferrovia sobre os senhores viajantes?
Onde mais ressalta, porém, a necessidade da autoridade, e de uma autoridade imperiosa, é num barco em alto mar. Ali, no momento de perigo, a vida de cada um depende da obediência instantânea e absoluta de todos à vontade de um só.
Quando apresentei semelhantes argumentos aos mais furiosos antiautoritários não souberam eles responder-me senão isto: "Ah! isso é verdade, mas aqui não se trata de que nós demos ao delegado uma autoridade, trata-se de um encargo!" Crêem esses senhores que modificam a coisa modificando-lhe o nome. Eis aí como zombam do mundo esses profundos pensadores.
Vimos, pois, que de um lado certa autoridade, delegada de que modo for, e de outra parte certa subordinação são coisas que, independentemente de toda organização social, se nos impõem com as condições materiais nas quais produzimos e fazemos circular os produtos.
Vimos, ademais, que as condições materiais de produção e de circulação estendem-se inevitavelmente com a grande indústria, e tendem cada vez mais a ampliar o campo dessa autoridade. É absurdo, portanto, falar do princípio de autoridade como de um princípio absolutamente mau e do princípio de autonomia como um princípio absolutamente bom. A autoridade e a autonomia são coisas relativas, cujas esferas variam nas diferentes fases do desenvolvimento social. Se os autonomistas se limitassem a dizer que a organização social do futuro restringirá a autoridade até o limite estrito em que as condições da produção a tornem inevitável, poderíamos entender-nos; mas, longe disso, permanecem cegos para todos os fatos que tornam a coisa necessária e arremetem furiosamente contra a palavra.
Por que os antiautoritários não se limitam a clamar contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas estão de acordo em que o Estado político, e com ele a autoridade política, desaparecerão como conseqüência da próxima revolução social, isto é, do fato de que as funções públicas perderão seu caráter político, passando a ser simples funções administrativas, destinadas a zelar pelos verdadeiros interesses sociais. Mas os antiautoritários exigem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, mesmo antes de terem sido destruídas as condições sociais que o fizeram nascer. Exigem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade. Será que esses senhores jamais viram uma revolução? Uma revolução é, indiscutivelmente, a coisa mais autoritária que existe; é o ato através do qual uma parte da população impõe sua vontade à outra parte por meio de fuzis, baionetas e canhões, meios autoritários desde que existam; e o partido vitorioso, se não quiser ter lutado em vão, tem que manter esse domínio pelo terror que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria por acaso durado um só dia se não fosse empregada essa autoridade do povo armado frente aos burgueses? Não podemos, ao contrário, criticá-la por não se ter servido bastante dela?
Portanto, uma das duas: ou os antiautoritários não sabem o que dizem, e nesse caso não fazem senão semear a confusão; ou sabem, e nesse caso traem o movimento do proletariado. Num e noutro caso, servem à reação.
( Escrito em 1873, foi publicado em 1874 no Almanacco Republicano)

A REVOLUÇÃO SOCIALISTA E A LUTA PELA DEMOCRACIA

A REVOLUÇÃO SOCIALISTA E A LUTA PELA DEMOCRACIA
V. I. Lênin

" A revolução socialista não é um ato único, uma batalha única numa só frente, é toda uma época de agudos conflitos de classes, uma longa sucessão de batalhas em todas as frentes, isto é, em todas as questões de economia e de política, batalhas que não podem cessar senão pela expropriação da burguesia. É um erro capital pensar que a luta pela democracia é susceptível de desviar o proletariado da revolução socialista ou eclipsar esta, atenuá-la, etc. Pelo contrário, da mesma maneira que é impossível conceber um socialismo vitorioso que não realizasse a democracia integral, também o proletariado não se pode preparar para a vitória sobre a burguesia se não travar uma luta geral, sistemática e revolucionária pela democracia.
Um erro não menos grave seria o de suprimir um dos parágrafos do programa democrático, por exemplo o que concerne ao direito de as nações disporem do seu próprio destino, sob o pretexto de que esse direito seria "irrealizável" ou "ilusório" na época do imperialismo. A afirmação segundo a qual o direito das nações à autodeterminação é irrealizável no quadro do capitalismo pode ser entendida quer num sentido absoluto, econômico, quer num sentido relativo, político.
No primeiro caso, esta afirmação é fundamentalmente errônea do ponto de vista teórico. Primeiro, são irrealizáveis neste sentido, em regime capitalista, por exemplo a moeda de trabalho ou a supressão das crises, etc. mas é absolutamente falso que o direito de as nações disporem do seu próprio destino seja igualmente irrealizável. Segundo, o exemplo da separação da Noruega da Suécia, em 1905 [1], é só por si suficiente para refutar este "caráter irrealizável" entendido neste sentido. Terceiro, seria ridículo negar que uma pequena mudança da correlação de forças políticas e estratégicas, por exemplo entre a Alemanha e a Inglaterra, tornaria hoje ou amanhã perfeitamente "realizável" a formação de novos Estados: polaco, indiano, etc. Quarto, o capital financeiro, com a sua tendência para a expansão, comprará e subornará "livremente" o mais livre governo democrático e republicano e os funcionários eleitos de qualquer país, por mais "independente" que seja. A dominação do capital financeiro, como a do capital em geral, não poderá vir a ser eliminada por qualquer transformação que seja no domínio da democracia política; ora, a autodeterminação relaciona-se inteira e exclusivamente com este domínio. Mas esta dominação do capital financeiro de modo algum vai abolir a importância da democracia política como forma mais livre, mais ampla e mais clara da opressão de classe e da luta de classes. É por isso que todos os raciocínios que apresentam como "irrealizável", do ponto de vista econômico, uma das reivindicações da democracia política em regime capitalista procedem de uma definição teoricamente falsa das relações gerais e fundamentais entre o capitalismo e a democracia política em geral.
No segundo caso, esta afirmação é incompleta e inexata. Porque não é somente o direito das nações disporem do seu próprio destino, mas todas as reivindicações fundamentais da democracia política que, na época do imperialismo, não são "realizáveis" senão incompletamente, sob um aspecto truncado e a título inteiramente excepcional (por exemplo a separação da Noruega da Suécia, em 1905). A reivindicação da emancipação imediata das colônias, formulada por todos os sociais-democratas revolucionários, é, ela também, "irrealizável" em regime capitalista sem toda uma série de revoluções. Isso de modo nenhum leva, todavia, à renúncia por parte da social-democracia da mais decidida e imediata luta por todas estas reivindicações - essa renúncia faria pura e simplesmente o jogo da reação - muito pelo contrário, daí decorre a necessidade de formular todas estas reivindicações e fazê-las cumprir não como reformistas, mas como revolucionários; não contentando-nos com intervenções parlamentares e protestos verbais, mas arrastando as massas para a ação, alargando e atiçando a luta à volta de cada reivindicação democrática fundamental até que se dê o assalto direto do proletariado contra a burguesia, isto é, até à revolução socialista que exproprie a burguesia. A revolução socialista pode rebentar não apenas no seguimento de uma grande greve ou de uma manifestação de rua, ou de um motim motivado pela fome, ou de uma amotinação de tropas, ou de uma revolta colonial, mas também no seguimento de uma qualquer crise política do gênero do caso Dreyfus [2] ou do incidente de Saverne [3], ou de um referendo a propósito da separação de uma nação oprimida, etc.
O reforço da opressão nacional na época do imperialismo exige à social-democracia, não que renuncie à luta "utópica" , como pretende a burguesia, pela liberdade de separação das nações, mas, pelo contrário, que utilize o melhor possível os conflitos que surjam também neste campo, como pretexto para uma ação de massas e para manifestações revolucionárias contra a burguesia."
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[1] A separação desses dois países foi decidida por um plebiscito em 1905.
[2] Como ficou conhecido o processo forjado de alta traição movido contra o oficial judeu Dreyfus, condenado por um Conselho de Guerra à prisão perpétua. Anistiado e solto em 1899 por pressão da opinião pública, num movimento do qual participaram Emile Zola, Jean Jaurés e Anatole France, Dreyfus foi reabilitado pelo Supremo Tribunal e reintegrado às forças armadas em 1906.
[3] A cidade de Saverne na Alsácia, foi palco em novembro de 1913 de um protesto da população local francesa contra um oficial prussiano.

( Reprodução de parte do trabalho de V. I. Lênin , "A Revolução Socialista e o Direito das Nações à Autodeterminação", aparecido na revista Vorbote, n.2, de abril de 1916, publicado pelas Edições Progresso, Moscou, 1988, numa coletânea de artigos "Sobre a Libertação Nacional e Social", organizada por S. Gontcharova )