O PAPEL DO TRABALHO NA TRANSFORMAÇÃO DO MACACO EM HOMEM [ * ]

Friedrich Engels

Toda riqueza provém do trabalho, asseguram os economistas. E assim o é na realidade: a natureza proporciona os materiais que o trabalho transforma em riqueza. Mas o trabalho é muito mais do que isso: é o fundamento da vida humana. Podemos até afirmar que, sob determinado aspecto, o trabalho criou o próprio homem.
Há milhares de anos atrás, em época ainda imprecisa da formação da Terra, provavelmente no final do período que os geólogos qualificam de Terciário, vivia, em um lugar não identificado da zona tropical - talvez num e extenso continente hoje submerso nas águas profundas do Oceano Índico - uma raça de macacos antropomorfos, já em estado de extraordinário desenvolvimento. Darwin nos deixou uma descrição bastante pormenorizada destes nossos antepassados: eram animais inteiramente cobertos de pêlo, com barba, orelhas pontiagudas e que viviam nas árvores, sempre em manadas.
Devido precisamente a esta maneira de viver, em que as mãos, ocupadas para se firmarem nos galhos, desempenhavam funções diferentes das dos pés, os macacos foram, pouco a pouco, dispensando-as para o ato de caminhar no chão e assumindo desta forma uma postura cada vez mais ereta. Deu-se assim o passo decisivo na transição do macaco ao homem.
Os macacos antropomorfos de nossos dias são capazes de se manter em posição ereta e de andar apenas sobre seus pés. Só o fazem, porém, premidos pela necessidade e com enorme lentidão. Normalmente andam em posição semi-ereta, utilizando-se das mãos. Em sua grande maioria apoiam-se sobre os dedos, encolhem as pernas e projetam o corpo por entre seus compridos braços, como faz um paralítico ao usar suas muletas. Podemos, mesmo em nossos dias, observar os macacos e acompanhar as diversas fases de transição entre o caminhar a quatro patas e em posição ereta. Com a ressalva, porém, de que nenhum deles anda em posição ereta habitualmente, mas só em determinadas circunstâncias.
Pelo fato da postura ter sido, para os nossos ancestrais peludos, uma norma e depois uma necessidade, podemos inferir que naquela fase suas mãos tinham que desempenhar funções cada vez mais variadas. Portanto, a divisão de funções entre pés e mãos existe mesmo entre os macacos. Como ficou dito acima, os macacos que viviam nas árvores usavam as mãos de forma diferente do uso que faziam dos pés. As mãos são usadas basicamente para apanhar e segurar os alimentos, à semelhança do que fazem alguns mamíferos inferiores com suas patas dianteiras. Certa variedade de macacos constrói seus ninhos nas árvores com as mãos; outros tipos, como o chimpanzé, vão mais longe e constroem verdadeiros telhados sobre os galhos para se protegerem do mau tempo. É com a mão que eles empunham um pedaço de pau para se defenderem dos inimigos e lançam frutas e pedras. Quando aprisionados, conseguem realizar com as mãos muita coisa que aprendem dos homens. Mas é justamente aqui que podemos perceber a enorme diferença entre a mão primitiva do macaco, inclusive a do antropóide mais evoluído, e a mão do homem, desenvolvida através de milhares de anos de trabalho. Quanto ao número e à disposição dos ossos e músculos não há diferença entre a mão do homem e do macaco; mas se tomarmos o mais primitivos dos selvagens, ele executará com suas mãos centenas de operações que nenhum dos macacos consegue realizar. Nenhum macaco conseguiu, por exemplo, construir um machado de pedra por mais rudimentar que fosse.
Portanto, as funções que no decorrer de milhares de anos de transição do macaco para o homem foram sendo adaptadas às mãos do macaco, eram funções extremamente simples. Os selvagens mais primitivos, mesmo aqueles que se presume terem regredido a estágios próximos da pura animalidade, acompanhado por uma degenerescência física, são inegavelmente superiores aos macacos da fase de transição. Se compararmos o período que antecede o aparecimento do machado feito de lasca de sílex pela mão humana com o período histórico que conhecemos, este último torna-se insignificante diante do primeiro. Mas o passo decisivo já tinha sido dado: a mão estava livre e, daí por diante, podia evoluir em destreza e habilidade, qualidades que iriam se transmitir por hereditariedade e aumentar a cada geração.
Concluímos então que a mão não é apenas um órgão de trabalho, é também produto dele. Foi graças ao trabalho, numa fase de adaptação a novas funções e à transmissão hereditária destes aperfeiçoamentos adquiridos aos músculos e ligamentos, e mais lentamente também aos ossos; devido ao emprego sempre mais amplo, variado e complexo destas habilidades é que a mão do homem pode alcançar tal perfeição a ponto de realizar, como que por magia, os quadros de um Rafael, as estátuas de Thorwaldsen e a música de Paganini.
A mão, porém, não era uma parte independente do resto do corpo. Era membro de um organismo integrado e extremamente complexo. Os benefícios adquiridos pela mão iriam repercutir no corpo, do qual era parte, sob dois aspectos.
Primeiro, pelos reflexos da chamada correlação do crescimento, lei descoberta por Darwin. Essa lei revela que, nos seres orgânicos, determinadas formas de diferentes partes do corpo estão sempre correlacionadas com outras formas de outras partes, que aparentemente nada têm a ver com as primeiras. Para exemplificar, citemos os animais cujos glóbulos vermelhos não têm núcleos e cujo ocipital se articula com a primeira vértebra por meio de dois côndilos. Estes animais, sem exceção, dispõem de glândulas mamárias para amamentarem seus filhotes. Outro exemplo é a úngula fendida de certos mamíferos, condicionada de modo geral à presença de um estômago multiocular próprio dos ruminantes. Modificações que se verificam em determinadas formas do organismo são acompanhadas de concomitantes mudanças em outras áreas sem que possamos ainda precisar a causa de tal correlação.
Como explicar, por exemplo, o caso dos gatos inteiramente brancos e de olhos azuis que são sempre ou quase sempre surdos? O gradativo desenvolvimento da mão do homem e a correspondente adaptação dos seus pés ao andar em posição ereta acarretaram, inegavelmente, por força da lei da correlação do crescimento, conseqüências para outras partes do organismo. Dada a insuficiência dos conhecimentos atuais a respeito destes processos, só nos cabe aqui acenar para eles em termos muito vagos.
Interessa-nos mais, por se poder demonstrar concretamente, estudarmos a ação direta que a mão exerceu no desenvolvimento do organismo. Foi dito anteriormente que nossos antepassados simiescos viviam em manadas; é óbvio que não seria viável explicar-se o aparecimento do homem, o mais social dos animais, buscando-se sua origem em antepassados próximos, destituídos de instinto gregário. A cada novo progresso que representava um avanço no domínio da natureza, que havia começado com o desenvolvimento da mão, decorrente do trabalho, o homem foi alargando seus horizontes e descobrindo nas coisas outras propriedades até então desconhecidas. Por outro lado, multiplicando-se circunstâncias e contingências de atividade em comum para mútuo auxílio e as vantagens para cada indivíduo, o desenvolvimento do trabalho contribuiu enormemente para que os homens consolidassem seus laços societários. Numa palavra, os homens, num determinado momento de sua evolução, tiveram necessidade de dizer algo uns aos outros. Dessa necessidade nasceu o órgão vocal: pouco a pouco, mas sem interrupção, a laringe do macaco, em estágio apenas incipiente, foi se modificando através de modulações, que por sua vez produziam modulações mais perfeitas e as articulações da boca evoluíam no mesmo ritmo ampliando o número de sons articulados.
Uma análise comparativa entre os homens e os animais nos leva à constatação de que esta teoria da origem da linguagem a partir do trabalho e pelo trabalho é a que mais satisfaz. Tornando-se os animais, mesmo os mais evoluídos, observamos que o pouco que eles têm a se comunicar, é feito sem o emprego da palavra articulada. Os animais selvagens prescindem por completo da capacidade de falar ou de captar a linguagem humana. Porém, em se tratando de animais que foram domesticados pelo homem, a situação é bem diferente. O convívio, por exemplo, do cão e do cavalo com o homem, desenvolveu nestes animais uma percepção auditiva tão sensível à linguagem articulada que eles conseguem compreender, à sua maneira, qualquer idioma. E mais: começam a ter sentimentos que não tinham antes, como afeição ao dono, gratidão e outros. Para quem conhece bem os animais, não resta dúvida de que, em determinados casos, a impossibilidade de falar é sentida pelos animais mesmo como espécie de defeito ou carência. Defeito infelizmente incorrigível, pois seus órgãos vocais se desenvolveram exclusivamente numa só direção. Os animais que dispõem de órgãos apropriados poderão até superar, dentro de certos limites, estas deficiências. Embora as aves, como sabemos, possuam órgãos vocais radicalmente diferentes dos homens, são os únicos animais capazes de aprender a falar. O papagaio, por exemplo, apesar de sua voz estridente, é o que consegue falar melhor. Não vem ao caso dizer que o papagaio não entende o que fala. É claro que ele fica horas a fio repetindo monotonamente seu limitado vocabulário pelo simples prazer de falar e por seu instinto de sociabilidade. Note-se, contudo, que dentro do limite de suas representações, ele pode chegar até mesmo a compreender o que fala. Um papagaio ao qual se ensinou a falar palavrões - uma das distrações prediletas dos marinheiros que retornam das regiões tropicais - se é molestado e se irrita, põe-se a afalar esses palavrões, como qualquer mulher de feira e com igual fúria, e faz o mesmo quando quer guloseimas.
O trabalho, primeiro, depois a palavra articulada, constituíram-se nos dois principais fatores que atuaram na transformação gradual do cérebro do macaco em cérebro humano que, não obstante sua semelhança, é consideravelmente superior a ele quanto ao tamanho e à sua perfeição. Ao desenvolvimento do cérebro correspondeu o desenvolvimento de seus instrumentos imediatos: os órgãos sensoriais. Da mesma forma que a evolução paulatina da linguagem foi seguida da respectiva evolução do ouvido, o desenvolvimento geral do cérebro está intimamente relacionado com o aperfeiçoamento de todos os órgãos dos sentidos. A águia dispõe de uma vista, cujo alcance é imensamente superior à vista do homem, mas no homem, o olho enxerga muito mais detalhes nas coisas do que o olho da águia. O cachorro tem o olfato infinitamente mais apurado que o do homem, no entanto não chega a perceber nem a centésima parte dos odores que o homem distingue nas coisas e que lhe serve para diferenciá-las umas das outras. O sentido do tato, que no macaco é extremamente rudimentar, evolui enormemente no homem ao se desenvolver sua mão através do trabalho.
O desenvolvimento do cérebro e dos sentidos a seu serviço, a evolução da consciência cada vez mais clara, sua crescente capacidade de discernimento e abstração atuaram, por sua vez, sobre o trabalho e a palavra imprimindo-lhes um processo evolutivo maior. Mesmo após a definitiva separação do homem em relação ao macaco, tal desenvolvimento prossegue ininterruptamente, agora com diferenças de grau e de sentido entre diversos povos e diferentes épocas, freado aqui e ali temporariamente, mas, no seu todo, avançado aceleradamente com um novo impulso graças à sociedade - novo elemento surgido com o homem já plenamente caracterizado como tal.
Certamente foram necessários milhares de anos, que são menos importantes na história da Terra que um segundo apenas na vida do homem [ 1 ], para que daquelas manadas de macacos trepadores em árvores surgisse a sociedade humana. Mas finalmente ela surgiu e voltamos a questionar qual seria a característica distintiva entre a manada de macacos e a sociedade humana. E de novo respondemos: o trabalho. A manada de macacos satisfazia seu apetite devorando alimentos de uma determinada área geográfica, nos limites permitidos por outras manadas vizinhas.
Fazendo suas migrações, lutando com outras manadas, iam conquistando novos espaços de alimentação; eram, porém, incapazes de produzir novos alimentos, utilizando-se somente daquilo que a terra generosamente lhes oferecia, excetuando-se a colaboração inconsciente de adubar o solo com seus próprios excrementos. O crescimento demográfico da população simiesca foi tornando impossível a retirada do alimento necessário nas regiões por ela habituada; por essa razão o índice de crescimento dessa população não evoluía mais. Os animais são os grandes destruidores das reservas alimentares, pelo fato de acabarem com o germe de novas gerações vegetais e animais. Ao contrário do caçador, o lobo por exemplo, não respeita a vida da cabra montês, matriz geradora de novos cabritos para os anos seguintes; da mesma forma agem as cabras da Grécia ao devorarem os jovens arbustos antes que se desenvolvam, deixando nuas as montanhas do país. Essa "depredação rapace", efetuada pelos animais, desempenha um grande papel na mutação das espécies, porque a adaptação aos alimentos que são obrigados a ingerir para sua sobrevivência vai modificando a composição química de seu sangue, transformando conseqüentemente toda sua constituição física. Dessa forma, desempenha um papel importante na transformação gradual das espécies, que se sucedem umas às outras.
Essa "depredação rapace" contribuiu em alto grau para a humanização de nossos antepassados, ampliando o número e as espécies de plantas utilizadas na alimentação daquela raça de macacos mais inteligente e com maior capacidade de adaptação que as demais.
Podemos dizer simplesmente que a alimentação cada vez mais variada contribuía com diferentes substâncias para o organismo, criando novas condições químicas para a transformação desses macacos em seres humanos. Mas tudo isso não pode ser considerado trabalho, no sentido exato da palavra. Pode se falar em trabalho somente a partir do momento em que surgem instrumentos elaborados, fabricados. E o que representam os instrumentos dos homens pré-históricos, cujo restos chegaram até nós, e levando-se em consideração o gênero de vida dos povos mais antigos, registrados pela história, como também dos selvagens atuais mais primitivos? Esses instrumentos, ao nosso ver, são de caça e de pesca e os primeiros eram utilizados como armas de defesa. A caça e a pesca contribuíram para a modificação da alimentação, antes exclusivamente vegetal e agora mista. Isso representa um novo e importante passo na transformação do macaco em homem. A carne, como alimentação, trouxe ao organismo, de maneira quase acabada, os ingredientes essenciais para o seu metabolismo. Desse modo, foram simplificados os processos da digestão e outros da vida vegetativa do organismo (isto é, os processos análogos aos da vida dos vegetais), economizando tempo, materiais e estímulos para que a vida propriamente animal se manifestasse. E o homem que se formava, ia cada vez mais se afastando do reino vegetal e se elevando sobre os demais animais. Do mesmo modo que a alimentação foi convertendo pouco a pouco o gato e o cão selvagens em servidores domésticos do homem, assim também o hábito de combinar a carne com a alimentação vegetal oferecia condições excelentes para fortalecer fisicamente o homem em formação e dar-lhe independência.
Porém, foi o cérebro que mais se beneficiou com essa dieta carnívora, pois passou a receber maior quantidade de substâncias necessárias ao seu desenvolvimento e adquiria, assim, maior e mais rápido aperfeiçoamento de geração em geração. Com o perdão dos vegetarianos, devemos reconhecer que a alimentação à base de carne ajudou o homem a ser homem; e pouca importância tem hoje o fato de que, em outra época da história dos povos, o emprego da carne na alimentação tenha chegado ao canibalismo (no século X, por exemplo, os antepassados dos berlinenses, os veletabos e os vilyses devoravam seus próprios pais).
O consumo de carne na alimentação é responsável por dois novos avanços importantes e decisivos: o uso do fogo e a domesticação dos animais. O fogo reduziu ainda mais o processo digestivo, porque permitia levar à boca alimento já em parte digerido. A domesticação dos animais multiplicou as reservas de carne, por ser, ao lado da caça, mas uma nova e regular fonte de alimentação, além de favorecer a obtenção do leite e seus derivados, tão ricos na sua composição quanto a carne. Esses dois novos avanços reverteram-se assim em benefício do próprio homem como novos meios de emancipação. É impossível determo-nos aqui para um exame mais minucioso das conseqüências indiretas desses novos avanços, pois nos afastaria muito de nossa temática, mas reconhecemos a importância que tiveram para o desenvolvimento do homem na sociedade. Do mesmo modo que o homem aprendeu a usar todos os alimentos comestíveis, aprendeu também a viver em qualquer clima e o fez estendendo-se por toda a região habitável de terra, sendo o único animal com capacidade e iniciativa própria para se deslocar de um lugar para outro. Os outros animais que se mostraram capazes de se aclimatarem - os animais domésticos e os insetos parasitas - não o fizeram por vontade própria, mas sim acompanhando o homem. A mudança de climas uniformemente quentes da pátria de origem para regiões mais frias, onde o inverno e o verão são bem distintos, acarretou novas exigências que obrigaram o homem a se recolher em habitações e cobrir seu corpo protegendo-se contra o frio e umidade. Desta forma, outras modalidades de trabalho foram surgindo e com elas, novas atividades que faziam o homem distanciar-se cada vez mais dos animais.
Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada indivíduo mas na sociedade como um todo, os homens foram se desenvolvendo cada vez mais, tornando-se capazes de executar operações complexas e alcançar objetivos mais elevados. O próprio trabalho foi se diversificando, aperfeiçoando-se a cada geração e estendendo-se a novas atividades. A agricultura surgiu como alternativa para a caça e a pesca, e mais tarde a fiação e tecelagem, a manipulação de metais, a olaria e a navegação. Concomitantemente ao comércio e aos ofícios (hoje profissões) apareceram as artes e a ciência; das tribos saíram as nações e os Estados. Vieram depois o direito e a política, e a religião apareceu como o reflexo fantástico das coisas na mente do homem. Com essas criações produzidas pelo cérebro e que começavam a dominar as sociedades humanas, as produções mais simples, resultado das atividades manuais, foram deixadas em segundo plano. Na família primitiva, por exemplo - numa fase mais adiantada do desenvolvimento da sociedade - a cabeça que planejava o trabalho já era capaz de sujeitar mãos alheias a realizarem o projetado por ela. A rapidez com que a civilização progredia foi atribuída exclusivamente à cabeça, ao desenvolvimento e à atividade do cérebro. Daí os homens terem se habituado a explicar seus atos pelos seus pensamentos, em vez de entendê-los através de suas necessidades (refletidas, naturalmente, na cabeça que delas vai tomando consciência gradativamente). E assim, com o passar do tempo, essa concepção idealista do mundo foi dominando o cérebro dos homens, mormente após o desaparecimento do mundo antigo. Ainda hoje esta concepção é dominante, a ponto dos próprios naturalistas da escola darwiniana, ligados ao materialismo, não conseguirem elaborar com clareza um conceito sobre a origem do homem, porque essa influência idealista não lhes permite conceber o papel que o trabalho exerceu na evolução inicial do homem
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[ * ] Escrito por Friedrich Engels em junho de 1876, inicialmente como Introdução a um trabalho mais extenso que tinha por título "Três formas fundamentais de escravidão", que não foi adiante. "O Papel do trabalho na transformação do macaco em homem" foi publicado pela primeira vez em 1896 no Neue Zeit.[ 1 ] Sir William Thompsom, grande autoridade na matéria, calculou em pouco mais de cem milhões de anos o tempo transcorrido desde o momento em que a Terra se esfriou o suficiente para que nela pudessem viver as plantas e os animais (Nota de Engels).

Também os animais, como já mencionados, modificam a natureza exterior com suas atividades, mas em menor proporção que o homem. Essas transformações provocadas pelos animais no meio ambiente repercutiam nos próprios causadores, modificando-os também. Na natureza, nada acontece isoladamente: os fenômenos exercem entre si influências recíprocas, num movimento de interação universal, coisa geralmente esquecida pelos naturalistas, que não percebem a simplicidade com que isto se dá. Já vimos anteriormente como as cabras provocavam o desmatamento dos bosques na Grécia. As cabras e os porcos, desembarcados pelos primeiros navegantes na Ilha de Santa Helena, destruíram quase por completo a vegetação local, fazendo com que o terreno ficasse preparado para receber as plantas levadas depois por outros navegantes e colonizadores. Porém, essa influência duradoura dos animais na natureza é exercida de modo involuntário e constitui um fato acidental. Quanto mais o homem se afasta dos animais, mais ele exerce sobre a natureza uma influência intencional e planejada a fim de alcançar objetivos previamente projetados, ao passo que os animais nem se dão conta dos estragos que provocam na vegetação. No entanto, os homens, quando destroem a vegetação, o fazem para melhor utilizar a terra livre, semeando trigo, plantando árvores ou cultivando a videira, conscientes de que essa colheita será bem maior do que o semeado por eles. O homem transporta de um país para outro plantas úteis e animais domésticos, modificando a flora e a fauna de continentes inteiros. Por outro lado, as plantas cultivadas e os animais criados em condições artificiais sofrem uma influência tão grande das mãos do homem que chegam a se tornar irreconhecíveis. Dessa forma, nossas culturas de cereais não têm antepassados silvestres conhecidos. Até hoje não foi resolvida a questão da origem dos cães existentes atualmente, tão diferentes entre si; a mesma dúvida persiste em relação às diversas raças de cavalo atuais. Entenda-se bem que com isso não queremos negar aos animais a faculdade de atuarem sobre a natureza de forma planejada e premeditada. Pelo contrário, sabemos que a ação planejada já existe em germe no protoplasma ( a albumina viva) que reage, realizando determinados movimentos, embora muito simples, em resposta a certos estímulos do exterior. Tal reação se dá mesmo quando ainda não há célula de espécie alguma. As plantas comedoras de insetos, quando deles se apoderam, realizam um ato até certo ponto planejado, embora totalmente inconsciente. Os atos conscientes e premeditados são possíveis em animais que tenham um desenvolvimento do sistema nervoso mais evoluído. Nos mamíferos, o grau de consciência encontra-se em nível bastante elevado. Pode-se observar nas caçadas que se organizam na Inglaterra, como à raposa, infalivelmente se utiliza do seu perfeito conhecimento do lugar para esconder-se de seus perseguidores, mostrando conhecer e saber aproveitar as vantagens que o terreno lhe oferece para despistá-los. Nossos animais domésticos, que atingiram um grau muito alto de desenvolvimento, pelo fato de sua longa convivência com o homem, têm atos astuciosos, parecidos com os das crianças. Isso porque o desenvolvimento do feto humano no ventre da mãe é uma réplica fiel, mas abreviada, de toda a história do desenvolvimento físico de nossos antepassados do reino animal, através de milhões de anos, desde o estado larval. O mesmo acontece com o desenvolvimento espiritual da criança, que também repete, de maneira mais abreviada, o desenvolvimento intelectual desses mesmos antepassados, pelo menos dos mais próximos. Mas a marca da vontade não está impressa em nenhum ato planejado de qualquer animal. Só o homem faz uso dela.
Resumindo: os animais só podem utilizar a natureza e modificá-la apenas porque nela estão presentes. Já o homem modifica a natureza e a obriga a servi-lo, ou melhor: a domina.
Analisando mais profundamente, não há dúvida de que a diferença fundamental entre os homens e outros animais está na força do trabalho.
Porém, não nos deixemos entusiasmar apenas pelo fato de sermos vitoriosos em relação à natureza, pois a cada vitória assim conquistada, a sábia natureza prepara sua vingança. As primeiras conseqüências dessas vitórias podem ser previstas por nós, mas existem outras imprevisíveis e que freqüentemente podem anular as primeiras. Assim, os homens da Mesopotâmia, Grécia, Ásia Menor e outras regiões, ao devastarem seus bosques para cultivarem a terra, não podiam supor que estavam destruindo os centros de acumulação e reserva de umidade, assentando as bases da atual aridez dessas terras. Os italianos dos Alpes, ao destruírem os bosques de pinheiro das encostas meridionais, tão bem conservados nas encostas setentrionais, mal sabiam que assim destruíam as raízes da indústria de laticínios de sua região; muito menos podiam prever que deixavam secas as fontes da montanha durante a maior parte do ano, fazendo com que, no período das chuvas, a água devastasse as planícies. O cultivo da batata na Europa, por sua vez, favorecia, ao mesmo tempo, a difusão desse tubérculo farináceo e a expansão da escrofulose. Todos esses fatos vêm comprovar, a cada passo, que o domínio da natureza pelo homem é bem diferente do domínio de um conquistador sobre o povo conquistado. Este não é o domínio de alguém desligado da natureza, porque nossa carne, sangue, cérebro, pertencem à natureza, encontramo-nos em seu seio e nossa dominação sobre ela é bem diferente da dos outros seres, pois somos conscientes de suas leis e da forma correta de aplicá-las.
Dia a dia, aprendemos a compreender melhor as leis da natureza e a conhecer os efeitos imediatos e as conseqüências remotas de nossas interferências no curso normal de seu processo evolutivo. E agora, nesse século, com os grandes progressos das ciências naturais, somos capazes de prever e controlar cada vez mais as remotas conseqüências naturais de nossas atividades de produção, pelo menos das mais comuns.
Essa realidade leva os homens a sentir e compreender sua profunda unidade com a natureza, afastando a inconcebível, absurda e antinatural idéia da antítese entre espírito e matéria, homem e natureza, alma e corpo. Idéia que começa a se alastrar pela Europa, baseada na decadência da antigüidade clássica e intensificada ao máximo com o desenvolvimento do cristianismo.
Porém, se o homem levou milhares de anos para aprender, de certa forma, a prever as remotas conseqüências naturais relativas aos processos produtivos, mais tempo levou para aprender a calcular as longínquas conseqüências sociais desses mesmos atos. Fizemos algumas referências advindas da difusão da batata e da escrofulose. Mas que importância pode ter a escrofulose comparada à fome que se estendeu em 1847 pela Irlanda em conseqüência de uma doença provocada pela batata que matou um milhão de irlandeses, que se alimentavam exclusivamente, ou quase exclusivamente, deste tubérculo, e que obrigou outros dois milhões a emigrar para além-mar? Os árabes quando descobriram a forma de destilar o álcool, não poderiam nem de longe imaginar que estavam forjando uma das principais armas de extermínio da população indígena do continente americano ainda desconhecido. Mal sabia Colombo, ao descobrir a América, que estava fazendo ressurgir a escravidão, extinta há muito na Europa, além de estar estabelecendo novamente as bases para o tráfico dos negros. Os homens do século XVII e XVIII inventaram a máquina a vapor sem suspeitar que estavam criando um instrumento mais poderoso que qualquer outro e que haveria de subverter as condições sociais em todo mundo. Isso ocorreu principalmente na Europa, onde a riqueza era concentrada nas mãos de uma minoria e o direito de propriedade era negado à maioria, favorecendo à burguesia o domínio social e político e provocando depois a luta de classes entre a burguesia e o proletariado. Luta essa que só poderá terminar com o extermínio da burguesia e a abolição de todos os antagonismos de classe. Através da análise e do confronto, às vezes até cruel, dos fatos acontecidos na história dos tempos, vamos aprendendo, aos poucos, a conhecer as conseqüências sociais indiretas e mais remotas de nossas atividades produtivas, permitindo-nos dominar e controlar tais conseqüências. Contudo, para realizar tal controle é preciso algo mais que o simples conhecimento. É preciso revolucionar por completo o modo de produção existente até hoje a fim de transformar radicalmente a ordem social vigente.
Todos os modos de produção existentes até hoje, só visavam ao utilitarismo do trabalho, da maneira mais direta e imediata. Não se dava a mínima importância às conseqüências remotas, que só surgem mais tarde e cujos efeitos se manifestavam apenas graças a um processo de repetição e acumulação gradual. A primitiva propriedade comunitária da terra correspondia, por um lado, a um estágio de desenvolvimento dos homens em que seu horizonte era limitado às coisas mais imediatas e, por outro lado, pressupunha um certo excedente de terras livres, que possibilitava a neutralização de possíveis resultados adversos dessa economia primitiva. Quando esgotou-se o que restava de terras livres, começou a decadência da propriedade comunitária. Todos os modos mais elevados de produção surgidos depois, dividiam a população em classes diferentes: a dominante e a oprimida. Conseqüentemente, os interesses da classe dominante transformaram-se em agente propulsor da produção, limitando-se esta apenas para manter, bem ou mal, a existência miserável da classe oprimida. Isso é retratado, da maneira mais perfeita, pelo modo de produção capitalista, que prevalece ainda hoje na Europa Ocidental. Os capitalistas individuais que dominam a produção e a troca, só se ocupam da utilidade mais imediata de suas atividades. Ou seja, mesmo essa utilidade - em se tratando da utilidade da mercadoria produzida ou trocada - passa inteiramente para segundo plano, aparecendo como único inventivo, o lucro obtido na venda.
A economia política clássica, a ciência social da burguesia, dá preferência às conseqüências sociais que constituem o objetivo imediato das atividades realizadas pelos homens na produção e na troca. Essa é a expressão fiel do regime social, cuja fundamentação teórica é essa ciência. Uma vez que os capitalistas isolados produzem ou trocam com o único objetivo de obter lucros imediatos, só podem dar importância aos resultados mais próximos e imediatos. Se um industrial ou comerciante vende a mercadoria produzida ou comprada por ele e alcança o lucro desejado, ele se dá por satisfeito e não se importa de jeito nenhum com o que possa acontecer mais tarde com essa mercadoria ou com seu comprador. O mesmo acontece com as conseqüências naturais dessas mesmas atividades. Em Cuba, os plantadores espanhóis, ao queimarem os bosques das encostas das montanhas para obter adubo com cinza, a fim de fertilizar apenas uma geração de cafezais de alto rendimento, não davam a mínima importância às chuvas torrenciais dos trópicos, que varriam a camada vegetal do solo sem a proteção das árvores, e deixavam com a sua devastação apenas rochas desnudas! Essa forma atual de produção só dá prioridade aos resultados imediatos, os mais palpáveis, deixando de lado o que se refere às conseqüências naturais e sociais das atividades realizadas pelo homem. A tal ponto que chega a causar estranheza e surpresa o fato de tais conseqüências aparecerem depois, na maioria das vezes, diametralmente opostas aos resultados palpáveis. É o que verificamos, por exemplo, na lei da oferta e procura, a qual num primeiro momento, revela harmonia para se converter depois em desequilíbrio. Este fenômeno é comprovado a cada ciclo industrial de dez anos, como puderam sentir aqueles que com o crack [ 2 ] na Alemanha presenciaram um pequeno prelúdio. Outro exemplo é o da propriedade privada baseada no trabalho próprio, que acaba se transformando, com o seu desenvolvimento, na ausência de toda propriedade por parte dos trabalhadores, enquanto toda a riqueza se concentra mais e mais nas mãos dos que não trabalham. . . [ 3 ]

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[ 2 ] Referência à crise econômica de 1873/74 (N. da R.)[ 3 ] O manuscrito se interrompe aqui. (N. da R.)